CAPÍTULO 110
Onze horas e vinte e três minutos.
Vittoria estava na sacada do Castelo Sant'Angelo, ainda trêmula, o olhar na
cidade de Roma, os olhos úmidos de lágrimas. Queria muito abraçar Robert
Langdon, mas não podia. Seu corpo parecia anestesiado, reajustando-se,
acomodando o que ocorrera. O homem que matara seu pai jazia lá embaixo,
morto, e ela quase se tornara também uma vítima dele.
Quando a mão de Langdon tocou o ombro dela, a infusão de calor mágicamente
desfez aquela sensação enregelante. Seu corpo estremeceu de volta para a
vida. A névoa se levantou e ela se virou. Robert encontrava-se em um estado
lastimável, molhado, o cabelo todo emaranhado - era evidente que passara por um
verdadeiro purgatório para vir salvá-la.
- Obrigada... - ela murmurou.
Ele deu um sorriso cansado e lembrou-lhe que era ela quem merecia os
agradecimentos. Sua habilidade para praticamente deslocar os ombros acabara de
salvar ambos. Vittoria enxugou os olhos. Gostaria de ter ficado ali para sempre
com ele, mas a trégua seria breve.
- Temos de sair daqui - disse Langdon.
A mente de Vittoria estava em outro lugar. Ela olhava na direção do
Vaticano. O menor país do mundo encontrava-se a uma proximidade
perturbadora, imerso na luz branca dos refletores da imprensa. Para espanto seu,
grande parte da Praça de São Pedro ainda estava cheia de gente! A Guarda Suíça
aparentemente só conseguira isolar uns cinqüenta metros - a área diretamente
fronteira à basílica -, o que constituía menos de um terço da praça. A área restante
da praça estava compactada com os que estavam a uma distância segura
pressionando para ver melhor e encurralando os outros na parte de dentro. Estão
perto demais! Pensou Vittoria. Perto demais!
- Vou voltar para lá - disse Langdon, categórico.
Vittoria virou-se para ele, incrédula.
- Para o Vaticano?
Langdon contou-lhe sobre o Samaritano e que se tratava de um ardil. O
líder dos Illuminati, um homem chamado Janus, chegaria em pessoa para marcar a
fogo o camerlengo. Um gesto de dominação final dos Illuminati.
- Ninguém no Vaticano sabe - disse Langdon. - Não tenho como fazer
contato com eles e esse sujeito deve chegar a qualquer minuto. Preciso avisar os
guardas antes que o deixem entrar.
- Mas você não vai conseguir passar por essa multidão!
A voz de Langdon soou confiante.
- Há um jeito. Confie em mim.
Vittoria pressentiu mais uma vez que o historiador sabia de algo que ela
desconhecia.
- Também vou.
- Não. Por que nos arriscarmos os dois...
- Tenho de encontrar um modo de tirar aquela gente dali! Estão correndo
grave perigo.
No mesmo instante, a sacada começou a tremer. Um rugido ensurdecedor
abalou todo o castelo. Em seguida, uma luz branca vinda da Praça de São Pedro
cegou-os. Vittoria só pensou em uma coisa. Oh, Deus! A antimatéria aniquilou- se
antes da hora!
Em vez de um estrondo, porém, uma ruidosa saudação ergueu-se do povo.
Vittoria apertou os olhos contra a luz. Uma barreira de luz de refletores vinha da
praça e, ao que parecia, agora apontava para eles! Todos se voltavam na direção
deles, apontando e chamando. O ronco ficou mais alto. A atmosfera na praça de
repente dava a impressão de estar mais alegre.
Langdon estava desnorteado.
- Que diabos...
Um rugido ecoou pelo céu.
Por trás da torre, sem aviso, surgiu o helicóptero do Papa. Trovejou uns 15
metros acima da cabeça deles, indo em linha reta para a Cidade do Vaticano.
Quando passou, brilhando à luz dos refletores, o castelo tremeu. As luzes
acompanharam o percurso do helicóptero, deixando Langdon e Vittoria de novo
no escuro.
Vittoria teve a sensação desconfortável de estarem atrasados ao ver o
enorme aparelho deter-se acima da Praça de São Pedro. Levantando uma nuvem
de poeira, o helicóptero desceu no trecho vazio da praça, entre a multidão e a
basílica, tocando o solo na base das escadarias da basílica.
- Falando sobre entrar no Vaticano... - disse Vittoria.
Destacando-se contra o fundo de mármore branco, viu ao longe a figura
diminuta de uma pessoa sair do Vaticano e dirigir-se para o helicóptero. Nunca
teria reconhecido quem era se não fosse pela boina vermelha na cabeça.
- Recebido com tapete vermelho. É Rocher.
Langdon deu um soco na grade.
- Alguém tem de avisar a eles! - e fez meia volta para sair.
Vittoria segurou o braço dele.
- Espere!
Acabara de ver algo mais, algo em que se recusava a acreditar. Com os
dedos trêmulos, apontou para o helicóptero. Mesmo à distância, não havia engano
possível. Descendo pela prancha de desembarque vinha uma outra figura, que se
movia de maneira tão peculiar que só poderia ser um homem. Embora estivesse
sentado, ele acelerou pela praça aberta sem esforço e a uma velocidade
surpreendente.
Um rei sentado em um trono elétrico.
Era Maximilian Kohler.
CAPÍTULO 111
Kohler estava enojado com a opulência do saguão do Belvedere. Só
revestimento de ouro do teto daria para financiar um ano de pesquisas sobre o
câncer. Rocher subiu com ele uma rampa, conduzindo-o por um caminho tortuoso
ao Palácio Apostólico.
- Não tem elevador? - perguntou Kohler.
- Estamos sem luz. - Rocher mostrou as velas acesas em torno deles no
edifício escuro. - É parte de nossa estratégia de busca.
- Estratégia que certamente falhou.
Rocher concordou.
Kohler teve outro ataque de tosse e ocorreu-lhe que talvez fosse um dos
últimos de sua vida. Não era um pensamento de todo desagradável.
Ao chegarem ao andar de cima e entrarem no corredor que levava ao
escritório do Papa, quatro guardas suíços correram na direção deles com ar
preocupado.
- Capitão, o que estão fazendo aqui em cima? Pensei que esse senhor
tivesse informações que...
- Ele só vai falar com o camerlengo.
Os guardas recuaram, desconfiados.
- Avise ao camerlengo - disse Rocher, em tom enérgico - que o diretor do
CERN, Maximilian Kohler, está aqui para vê-lo. Imediatamente.
- Sim, senhor!
Um dos guardas saiu apressado para o escritório do camerlengo. Os outros
mantiveram suas posições.
Observavam Rocher com ar constrangido.
- Só um momento, capitão. Vamos anunciar seu visitante.
Kohler, porém, não se deteve. Deu uma guinada repentina e manobrou sua
cadeira, contornando os sentinelas.
Os guardas giraram e saíram trotando ao lado dele.
- Fermati! Senhor! Pare!
Kohler sentia aversão por eles. Nem a força de segurança mais elitista do
mundo estava imune à pena que todos sentiam pelos aleijados. Se Kohler fosse
um homem saudável, os guardas o teriam segurado. Os aleijados são impotentes,
pensou Kohler. Ou o mundo acredita que eles são.
Kohler sabia que dispunha de pouco tempo para levar a cabo o que tinha
vindo fazer. Sabia também que poderia morrer ali naquela noite. Ficou surpreso
ao constatar quão pouco se importava. A morte era um preço que estava pronto
para pagar. Suportara coisas demais em sua vida para que seu trabalho fosse
destruído por alguém como o camerlengo Ventresca.
- Signore! - gritaram os guardas, correndo na frente e formando uma fila de
lado a lado do corredor. - O senhor tem de parar! - Um deles puxou uma arma e
apontou-a para Kohler.
Kohler parou.
Rocher interpôs-se, contrito.
- Senhor Kohler, por favor. Só vai levar um momento. Ninguém entra no
escritório do Papa sem ser anunciado.
Kohler viu nos olhos de Rocher que não tinha escolha a não ser esperar.
Muito bem, pensou, vamos esperar.
Os guardas, por maldade talvez, tinham feito Kohler parar junto a um
espelho de moldura dourada que ia do teto ao chão. A visão de sua figura
disforme causava-lhe repulsa. A velha raiva mais uma vez veio à tona. Fortaleciao.
Estava no meio do inimigo naquele momento. Aquelas eram as pessoas que o
haviam privado de sua dignidade. Eram elas mesmas. Por causa delas, nunca
sentira o corpo de uma mulher, nunca se levantara para receber um prêmio. Qual é
a verdade que essa gente possui? Que provas, malditos sejam? Um livro de
fábulas antigas? Promessas de milagres que estão por vir? A ciência produz
milagres todos os dias!
Contemplou seus olhos de pedra. Esta noite pode ser que eu morra nas
mãos da religião, pensou. Mas não será a primeira vez.
E voltou aos seus 11 anos. Deitado em sua cama na mansão de seus pais
em Frankfurt, os lençóis que o envolviam, feitos com o melhor linho da Europa,
estavam empapados de suor. O jovem Max sentia o corpo em fogo, uma dor
inimaginável torturando-o. Ajoelhados ao lado de sua cama, de onde não saíam já
fazia três dias, estavam seu pai e sua mãe. Ambos rezavam.
Nas sombras do quarto encontravam-se três dos melhores médicos de
Frankfurt.
- Insisto que pensem melhor! - disse um dos médicos. - Olhem para o
menino! A febre está aumentando. Ele está com dores terríveis. E corre risco de
vida!
Max, todavia, sabia o que sua mãe responderia antes mesmo que ela abrisse
a boca.
- Gott wird ihn beschuetzen.
Sim, pensou Max. Deus vai me proteger. A convicção na voz de sua mãe
deu- lhe forças. Deus vai me proteger.
Uma hora mais tarde, Max sentia dores tamanhas, como se seu corpo
estivesse sendo esmagado por um carro. Sequer conseguia respirar para gritar.
- Seu filho está sofrendo demais - disse outro médico. - Deixe-me ao
menos aliviar as dores dele. Tenho na minha mala uma injeção simples de...
- Ruhe, bitte! - O pai de Max fez o médico calar-se sem ao menos abrir os
olhos, continuando a rezar.
- Papai, por favor! - Max queria gritar. - Deixe que ele faça a dor parar!
- Mas suas palavras perderam-se em um espasmo de tosse.
Uma hora depois, a dor tinha piorado ainda mais.
- Seu filho pode ficar paralítico - advertiu um dos médicos. - E até morrer!
Temos remédios que podem ajudar!
Frau e Herr Kohler não permitiram. Não acreditavam em remédios. Quem
eram eles para interferir nos planos divinos? Rezaram com maior intensidade.
Afinal, se Deus os abençoara com aquele menino, por que Deus o levaria embora?
Sua mãe sussurrou-lhe que fosse forte. Explicou que Deus o estava testando como
na história de Abraão na Bíblia, um teste de fé.
Max tentava ter fé, mas as dores eram excruciantes.
- Não agüento ver isso! - disse afinal um dos médicos, saindo às pressas do
quarto.
Ao amanhecer, Max estava semiconsciente. Todos os seus músculos
contraíam-se em espasmos de agonia. Onde está Jesus? Delirava. Ele não me
ama? Max sentia a vida esvaindo-se de seu corpo.
Sua mãe adormecera ao lado da cama, as mãos ainda entrelaçadas em cima
dele. O pai estava junto à janela, do outro lado do quarto, vendo o dia clarear.
Parecia estar em transe. Max escutava o murmúrio de suas súplicas incessantes
por misericórdia.
Nesse momento Max divisou a figura pairando acima dele. Um anjo? Ele
não enxergava direito. Seus olhos estavam muito inchados. A figura cochichou
em seu ouvido, mas não era a voz de um anjo. Max reconheceu a voz de um dos
médicos, o que estava sentado em um canto havia dois dias, sem desistir, rogando
aos pais de Max que o deixassem administrar na criança um novo remédio vindo
da Inglaterra.
- Nunca vou me perdoar - sussurrou o médico - se não fizer isso. - E, com
delicadeza, pegou o braço frágil do menino. - Gostaria de tê-lo feito mais cedo.
Max sentiu uma pequenina espetadela no braço, que mal distinguiu em
meio a tanta dor.
O médico então guardou suas coisas em silêncio. Antes de sair, pousou a
mão na testa de Max.
- Isto vai salvar sua vida. Tenho muita fé no poder da medicina.
Poucos minutos depois, Max sentiu como se uma espécie de espírito
mágico fluísse em suas veias. O calor espalhou-se por seu corpo e amorteceu a
dor. Finalmente, pela primeira vez em dias, Max dormiu.
Quando a febre cedeu, seu pai e sua mãe proclamaram que era um milagre
de Deus. Mas, quando ficou evidente que o filho estava aleijado, ficaram
melancólicos. Levaram-no à igreja em uma cadeira de rodas e pediram que um
padre os aconselhasse.
- Foi apenas pela graça de Deus - disse o padre - que esse menino
sobreviveu.
Max escutava sem dizer nada.
- Mas nosso filho não anda mais! - chorava Frau Kohler.
O padre sacudiu a cabeça, com ar triste.
- Sim. Parece que Deus o puniu por não ter fé suficiente.
- Senhor Kohler? - era o guarda suíço que correra na frente quem falava.
- O camerlengo disse que concederá uma audiência ao senhor.
Kohler resmungou algo, acelerando de novo pelo corredor afora.
- Ele está surpreso com a sua visita - disse o guarda.
- Estou certo que sim - Kohler respondeu, prosseguindo. - Gostaria de vê-lo
a sós.
- Impossível - disse o guarda. - Ninguém...
- Tenente - falou Rocher, ríspido -, a reunião será como o senhor Kohler
deseja.
O guarda olhou fixo para ele, incrédulo.
Do lado de fora do escritório do Papa, Rocher autorizou seus guardas a
tomarem as precauções de praxe antes de deixar Kohler entrar. O detector de
metais manual perdeu toda a utilidade com os inúmeros aparelhos eletrônicos
instalados na cadeira de rodas de Kohler. Os guardas o revistaram, mas sua
deficiência evidentemente os encabulou e não o fizeram como deveriam. Não
encontraram o revólver escondido sob a cadeira. Nem o outro objeto, aquele que,
Kohler sabia, fecharia de modo inesquecível a seqüência de acontecimentos
daquela noite.
Quando Kohler entrou no escritório do Papa, o camerlengo Ventresca
estava sozinho, ajoelhado, rezando ao lado do fogo quase extinto da lareira. Não
abriu os olhos.
- Senhor Kohler - disse o camerlengo. - O senhor veio para me transformar
em um mártir?
CAPÍTULO 112
O túnel estreito chamado il Passetto estendia-se em linha reta diante de
Langdon e Vittoria enquanto os dois corriam rumo à Cidade do Vaticano. A tocha
na mão de Langdon só produzia claridade para que enxergassem uns poucos
metros adiante. As paredes eram muito próximas e o teto era baixo. Havia um
cheiro desagradável de umidade no ar. Langdon avançava depressa pela escuridão
com Vittoria seguindo-o de perto.
O túnel inclinava-se de modo acentuado ao sair do Castelo Sant'Angelo,
prosseguindo em sentido ascendente por dentro da parte inferior de um bastião de
pedra semelhante a um aqueduto romano. Ali, o túnel se estabilizava e continuava
seu percurso secreto na direção da Cidade do Vaticano.
No caminho, os pensamentos sucediam-se como um caleidoscópio de
imagens confusas na cabeça de Langdon - Kohler, Janus, o Hassassin, Rocher,
uma sexta marca? Você já ouviu falar da sexta marca, dissera o matador. A mais
brilhante de todas. Langdon tinha certeza de que não ouvira. Nem nas teorias
conspiratórias havia qualquer referência a uma sexta marca, real ou imaginária.
Sabia de boatos sobre barras de ouro e sobre um diamante Illuminati sem qualquer
jaça, mas nunca ouvira menção alguma a uma sexta marca.
- Kohler não pode ser Janus! - afirmou Vittoria, correndo pelo túnel atrás
de Langdon. - É impossível!
Impossível era uma palavra que Langdon deixara de usar naquela noite.
- Não sei - gritou ele para trás, sem parar. - Kohler tinha um ressentimento
sério e também exerce uma grande influência.
- Esta crise fez o CERN parecer monstruoso! Max nunca faria nada para
prejudicar a reputação do CERN!
Por um lado, Langdon sabia que o CERN ficara desacreditado naquela
noite devido à insistência dos Illuminati em fazer daquilo tudo um espetáculo
público. Por outro, ponderava o quanto de fato o CERN teria sido prejudicado. As
críticas da Igreja não eram novidade para o CERN. Na verdade, quanto mais
Langdon pensava a respeito, mais achava que a crise iria na realidade beneficiar o
CERN. Se o negócio era publicidade, a antimatéria ganhara o grande prêmio da
loteria naquela noite. No planeta inteiro só se falava dela.
- Sabe o que dizia o promotor P. T. Barnum? - disse Langdon por cima do
ombro. - "Não me importo que falem mal de mim, contanto que escrevam meu
nome certo!" Aposto como já deve ter uma fila de gente interessada em obter a
licença da tecnologia da antimatéria. E depois que virem o que ela é capaz de
fazer à meia-noite de hoje...
- Não tem lógica - disse Vittoria. - Fazer publicidade de avanços
tecnológicos não é mostrar seu poder destrutivo! Isto é terrível para a antimatéria,
acredite!
A tocha de Langdon estava quase no fim.
- Então deve ser mais simples do que isso. Talvez Kohler tenha apostado
que o Vaticano manteria segredo sobre a antimatéria para não fortalecer os
Illuminati. Kohler esperava que o Vaticano se comportasse com a sua reserva de
costume sobre a ameaça, mas o camerlengo mudou as regras.
Vittoria ficou calada enquanto prosseguiam.
Aos poucos, as coisas foram fazendo mais sentido para Langdon.
- É isso! Kohler não contava com a reação do camerlengo. O camerlengo
quebrou a tradição de segredo do Vaticano e foi a público falar da crise. Ele foi
tremendamente franco. Chegou a pôr a antimatéria na TV! Foi uma reação
brilhante, Kohler jamais a esperava. E a ironia de tudo é que o tiro dos Illuminati
saiu pela culatra. Sem querer, produziu um novo líder da Igreja na pessoa do
camerlengo. E agora Kohler está chegando para matá-lo!
- Max é um canalha - declarou Vittoria -, mas não é um assassino. E nunca
estaria envolvido no assassinato do meu pai.
Na mente de Langdon, foi a própria voz de Kohler que respondeu:
Leonardo era considerado perigoso por muitos puristas do CERN. Unir ciência e
Deus é a suprema heresia científica.
- Talvez Kohler tenha descoberto sobre o projeto da antimatéria há
semanas e não tenha ficado satisfeito com as implicações religiosas.
- E matado meu pai por causa disso? Ridículo! Além do mais, Max Kohler
não sabia que o projeto existia.
- Enquanto você estava fora, talvez seu pai tenha sucumbido e consultado
Kohler, pedindo orientação.
Você mesma disse que seu pai estava preocupado com as implicações
morais de criar uma substância tão mortal.
- Pedir orientação moral a Maximilian Kohler? - desdenhou Vittoria. -
Acho que não!
O túnel desviava-se ligeiramente para oeste. Quanto mais depressa
corriam, mais fraca se tornava a luz da tocha. Langdon começou a temer que
ficasse totalmente escuro, como se tivessem apagado a luz. Trevas totais.
- Além disso, por que Kohler teria se incomodado em ligar para você hoje
de manhã cedo para pedir ajuda se ele próprio estivesse por trás de tudo?
Langdon já tinha considerado a possibilidade.
- Ao ligar para mim, Kohler estava cobrindo suas bases. Daí em diante,
ninguém poderia acusá-lo de omissão em um momento de crise.
Provavelmente não contava que fôssemos tão longe.
A idéia de ter sido "usado" por Kohler irritou Langdon. Seu envolvimento
dera credibilidade aos Illuminati.
Suas qualificações e seus trabalhos publicados haviam sido citados a noite
inteira pela imprensa e, por mais ridículo que fosse, a presença de um professor de
Harvard na Cidade do Vaticano de certa forma afastara a possibilidade de que
toda aquela situação pudesse ser um delírio paranóide, também convencendo os
céticos do mundo todo de que a fraternidade dos Illuminati não era apenas um fato
histórico, mas uma força a ser levada em conta.
- Aquele repórter da BBC - disse Langdon - acha que o CERN é o novo
refúgio dos Illuminati.
- O quê! -Vittoria tropeçou atrás dele. Pôs-se de pé e alcançou-o. - Ele
disse isso?!
- No ar. Comparou o CERN às lojas maçônicas. Uma organização inocente
abrigando a fraternidade dos Illuminati dentro dela.
- Meu Deus, isso vai destruir o CERN.
Langdon não tinha tanta certeza. De qualquer maneira, a teoria agora
parecia mais coerente. O CERN era o supremo paraíso científico, onde viviam
cientistas de mais de dez países. Aparentemente, dispunham de inesgotável
financiamento privado. E Maximilian Kohler era o diretor.
Kohler é Janus.
- Se Kohler não está envolvido - argumentou Langdon -, o que veio fazer
aqui?
- Provavelmente tentar impedir que essa loucura continue. Demonstrar
apoio. Talvez ele esteja realmente agindo como o Samaritano! Pode ter descoberto
quem sabia sobre o projeto da antimatéria e veio trazer informações.
- O matador disse que ele viria para marcar o camerlengo a fogo.
- Preste atenção no que está dizendo! Isto seria uma missão suicida. Max
jamais sairia vivo daqui.
Langdon refletiu. Talvez seja esta a questão.
Os contornos de um portão de ferro delinearam-se à frente bloqueando-lhes
a passagem. O coração de Langdon quase parou. Quando se aproximaram,
entretanto, encontraram o velho cadeado solto. O portão podia ser aberto à
vontade.
Langdon suspirou aliviado, percebendo, como já desconfiava, que o velho
túnel fora usado. Recentemente. Naquele mesmo dia. Agora não tinha dúvidas de
que quatro cardeais aterrorizados haviam sido conduzidos por ali secretamente
horas antes.
Continuaram a correr. Dava para ouvir agora o som do caos à esquerda.
Era a Praça de São Pedro. Estavam chegando.
Passaram por outro portão, este mais pesado e também destrancado. O
barulho na Praça de São Pedro diminuiu de intensidade atrás deles e Langdon
calculou que tinham ultrapassado o muro externo da Cidade do Vaticano.
Perguntava-se onde terminaria aquela antiga passagem. Nos jardins? Na basílica?
Na residência do Papa?
Então, inesperadamente, o túnel chegou ao fim.
A incômoda porta que lhes obstruía o caminho era uma grossa muralha de
ferro rebitado. Mesmo à luz bruxuleante da tocha, agora em seus últimos
lampejos, dava para ver que a porta era inteiriça - sem maçaneta, sem puxadores,
sem buraco de fechadura, sem dobradiças. Sem jeito de entrar.
Sentiu uma onda de pânico. Em linguagem de arquiteto, aquele raro tipo de
porta era chamado de senza chiave: uma passagem de sentido único, usada para
fins de segurança, só operável de um dos lados - do outro lado, no caso. As
esperanças de Langdon apagaram-se junto com a tocha em sua mão.
Olhou para o relógio. Mickey brilhava no escuro.
11h29.
Com um grito de frustração, Langdon atirou longe a tocha e começou a
esmurrar a porta.
CAPÍTULO 113
Algo estava errado.
O tenente Chartrand encontrava-se do lado de fora do escritório do Papa e,
pela postura constrangida do soldado que montava guarda com ele, percebia que
ambos partilhavam a mesma ansiedade. O encontro particular que estavam
protegendo, dissera Rocher, poderia salvar o Vaticano da destruição. Portanto,
Chartrand não compreendia por que motivo seu instinto de preservação estava tão
aguçado. E por que Rocher estaria agindo de modo tão estranho?
Decididamente, algo estava errado.
O capitão Rocher encontrava-se à direita de Chartrand, olhando fixo para a
frente, seu olhar arguto estranhamente distante. Chartrand mal reconhecia o
capitão. Rocher nem parecia o mesmo naquela última hora. As decisões dele não
faziam sentido.
Alguém tinha de estar presente lá dentro durante este encontro, pensou
Chartrand. Escutara Maximilian Kohler trancar a porta depois de entrar. Por que
Rocher permitira aquilo?
Mas havia muito mais coisas incomodando Chartrand. Os cardeais. Os
cardeais ainda estavam trancados na Capela Sistina. Isso era uma insanidade total.
O camerlengo queria que eles tivessem saído 15 minutos antes! Rocher passara
por cima da decisão e não informara o camerlengo. Chartrand demonstrara
preocupação e Rocher quase arrancara a cabeça dele. A cadeia de comando nunca
era questionada na Guarda Suíça, e agora quem mandava era Rocher.
Meia hora, pensou Rocher, discretamente verificando seu cronômetro suíço
à luz mortiça do candelabro que iluminava o saguão. Por favor, apressem-se.
Chartrand gostaria de poder escutar o que estava acontecendo do outro lado
das portas. Ainda assim, sabia que ninguém melhor do que o camerlengo para
lidar com aquela crise. O homem passara por provas duríssimas naquela noite sem
esmorecer. Enfrentara o problema de cabeça erguida - verdadeiro, franco,
brilhando, um exemplo para todos. Chartrand estava sentindo orgulho de ser
católico. Os Illuminati tinham cometido um engano ao desafiarem o camerlengo
Ventresca.
Naquele momento, porém, os pensamentos de Chartrand foram abalados
por um som inesperado. Batidas.
Vinham do fundo do corredor. As batidas soavam distantes e abafadas, mas
incessantes. Rocher levantou a cabeça. O capitão fez um sinal para Chartrand.
Chartrand compreendeu, ligou sua lanterna e foi investigar.
As batidas soavam mais desesperadas agora. Chartrand percorreu 30
metros do corredor até um cruzamento. O barulho parecia vir de algum ponto
depois da curva, além da Sala Clementina. Chartrand estava perplexo. Só havia
um aposento ali - a biblioteca particular do Papa, que estava trancada desde a
morte de Sua Santidade. Não podia haver ninguém lá!
Chartrand entrou depressa no segundo corredor, dobrou mais uma esquina
e correu para a porta da biblioteca. O pórtico de madeira era diminuto, mas surgia
no escuro como uma austera sentinela. As batidas vinham de dentro. Chartrand
hesitou. Nunca estivera antes na biblioteca particular. Poucos tinham estado.
Ninguém tinha autorização para entrar ali a não ser acompanhado pelo próprio
Papa. Tateando, encontrou a maçaneta e virou-a. Como previra, a porta estava
trancada. Encostou a orelha na porta. As batidas ficaram mais altas. Então, ouviu
mais alguma coisa. Vozes! Alguém chamando!
Não distinguia as palavras, mas notava o pânico nos gritos. Alguém estaria
preso na biblioteca? Será que a Guarda Suíça não evacuara completamente o
prédio? Chartrand estava indeciso, sem saber se deveria voltar e consultar Rocher.
Ora, ele que se danasse. Chartrand fora treinado para tomar decisões e era o que
faria agora. Tirou a arma da cintura e deu um único tiro no trinco. A madeira
estourou e a porta se abriu.
Lá dentro, Chartrand só viu escuridão. Apontou a lanterna. A sala era
retangular - tapetes orientais, altas estantes de carvalho cheias de livros, um sofá
de couro e uma lareira de mármore. Chartrand ouvira histórias sobre aquele lugar
- três mil livros antigos lado a lado com centenas de revistas e jornais modernos,
qualquer coisa que Sua Santidade solicitasse. A mesa baixa de centro estava
coberta de publicações especializadas sobre ciência e política.
As batidas estavam mais nítidas agora. Chartrand dirigiu o foco da lanterna
para o lado oposto, de onde vinha o som. Na parede do fundo, além do conjunto
de sofá e cadeiras, havia uma enorme porta de aço. De aparência tão impenetrável
quanto a de um cofre. Tinha quatro fechaduras colossais. O que estava escrito em
letras pequeninas bem no centro da porta tirou o fôlego de Chartrand.
IL PASSETTO
Chartrand estava boquiaberto. A saída secreta do Papa! Já escutara
comentários sobre o Passetto, é claro, e até ouvira falar que antigamente existia
uma entrada ali, pela biblioteca, mas não se usava o túnel havia séculos! Quem
poderia estar do outro lado?
O rapaz pegou a lanterna e bateu com ela na porta. Soou uma exclamação
abafada de alegria do outro lado.
As batidas cessaram e as vozes gritaram mais alto. Chartrand não
distinguia direito as palavras através da barreira.
- Kohler... mentira... camerlengo...
- Quem está aí? - gritou Chartrand.
- .. .ert Langdon... Vittoria Ve...
Chartrand compreendeu, mas não assimilou logo o que ouviu. Pensei que
estivessem mortos!
- .. . a porta - gritaram as vozes. - Abra...!
Chartrand olhou para a porta de aço e achou que seria preciso usar
dinamite para abri-la.
- Impossível! - gritou de volta. - Grossa demais!
- . . .encontro . . .impedir . . .erlengo... perigo...
A despeito de seu treinamento sobre os riscos do pânico, o guarda foi
acometido por uma onda de medo ao ouvir as últimas palavras. Será que
compreendera direito? Com o coração acelerado, virou-se para voltar correndo
para o escritório. Ao fazê-lo, porém, estacou. Seu olhar parou em algo na porta -
algo mais impressionante ainda do que a mensagem que vinha do outro lado.
Presas em todos os buracos das enormes fechaduras da porta havia chaves. As
chaves estavam ali? Como? Ele piscava, estático, sem acreditar. As chaves
daquela porta supostamente deveriam estar guardadas em algum cofre! Aquela
passagem nunca era usada - não nos últimos séculos!
Chartrand pousou sua lanterna no chão. Virou a primeira chave. O
mecanismo estava enferrujado e duro, mas ainda funcionava. Alguém o abrira
recentemente. Abriu a segunda fechadura. E a seguinte. Quando a última lingüeta
se soltou, ele puxou a porta. O bloco de aço abriu-se com um rangido. Ele pegou a
lanterna e dirigiu-a para a entrada.
Robert Langdon e Vittoria Vetra tinham o aspecto de duas aparições ao
entrarem cambaleantes na biblioteca. Ambos estavam em frangalhos e cansados,
mas bem vivos.
- O que houve? - perguntou Chartrand. - O que está acontecendo? De onde
vocês vieram?
- Onde está Max Kohler? - perguntou Langdon.
Chartrand apontou.
- Em um encontro particular com o camer...
Langdon e Vittoria passaram por ele e correram para a porta da biblioteca.
Chartrand, por instinto, levantou o revólver para as costas deles. Mas logo
abaixou a arma e foi atrás dos dois. Rocher provavelmente os ouviu se
aproximando porque, quando chegaram à porta do escritório do Papa, ele se
posicionara com as pernas afastadas e apontava-lhes o revólver.
-Alto!
- O camerlengo está em perigo! - berrou Langdon, levantando os braços e
parando. - Abra a porta! Max
Kohler vai matar o camerlengo!
Rocher parecia zangado.
- Abra a porta! - disse Vittoria. - Depressa!
Mas era tarde demais.
De dentro do escritório do Papa veio um grito pavoroso. Era o camerlengo.
CAPÍTULO 114
O confronto durou apenas alguns segundos.
O camerlengo Ventresca ainda estava gritando quando Chartrand passou
por Rocher e arrebentou a porta do escritório do Papa com um tiro. Os guardas
entraram correndo, com Langdon e Vittoria atrás deles.
A cena com que se depararam era estarrecedora.
O aposento só contava com a iluminação de velas e do fogo quase apagado
da lareira. Kohler estava perto da lareira, de pé, desajeitado, junto à sua cadeira de
rodas. Brandia uma pistola, apontada para o camerlengo, que jazia no chão a seus
pés, contorcendo-se de dor. A batina do camerlengo estava rasgada e seu peito nu
fora marcado a fogo. Langdon, do outro lado da sala, não conseguiu distinguir o
símbolo, mas um grande ferro de marcar quadrado encontrava-se no chão perto de
Kohler. O metal ainda estava em brasa.
Dois guardas suíços agiram sem vacilar. Abriram fogo. As balas
penetraram no peito de Kohler, jogando-o para trás. Kohler caiu em sua cadeira de
rodas, o sangue jorrando. O revólver resvalou pelo chão.
Langdon, aturdido, não passou da porta.
Vittoria ficou paralisada.
- Max... - murmurou.
O camerlengo, ainda se revirando no chão, rolou o corpo na direção de
Rocher e, tendo no rosto a expressão de terror exaltado dos primeiros caçadores
de bruxas, apontou o dedo indicador para Rocher e berrou uma única palavra:
- ILLUMINATUS!
- Seu canalha - disse Rocher, correndo para ele. - Seu canalha hipócrita...
Dessa vez foi Chartrand quem reagiu por instinto, metendo três balas nas
costas de Rocher. O rosto do capitão bateu primeiro no piso de azulejos e ele
escorregou inerte em seu próprio sangue. Chartrand e os guardas correram então
para o camerlengo, que se contraía todo, com dores atrozes.
Os guardas soltaram exclamações horrorizadas ao verem o símbolo
marcado no peito do camerlengo. O segundo guarda viu a marca de cabeça para
baixo e recuou cambaleante, cheio de medo. Chartrand, igualmente perturbado
pelo símbolo, puxou a batina rasgada do camerlengo para cima da queimadura,
escondendo-o.
Langdon teve a sensação de estar delirando ao cruzar o aposento. Em meio
à bruma de insanidade e violência, ele tentava entender o que estava presenciando.
Um cientista aleijado, num gesto final de autoridade simbólica, voara até a
Cidade do Vaticano para marcar a fogo o personagem mais eminente da Igreja. Há
coisas pelas quais vale a pena morrer, dissera o Hassassin. Langdon se perguntava
como um deficiente físico poderia ter dominado o camerlengo. Mas Kohler estava
armado. Não importava como o fizera! Kohler cumprira sua missão!
Langdon aproximou-se da cena medonha. O camerlengo já estava sendo
assistido e Langdon foi atraído pelo ferro fumegante caído perto da cadeira de
Kohler. A sexta marca? Quanto mais olhava, menos compreendia. A marca
parecia ser um quadrado perfeito, bastante grande e seguramente viera do sagrado
compartimento central da arca que estava no refúgio dos
Illuminati. A sexta marca, dissera o Hassassin. A mais brilhante de todas.
Langdon ajoelhou-se ao lado de Kohler e estendeu a mão para pegar o
objeto. O metal ainda irradiava calor. Segurou o cabo de madeira e levantou-o.
Não sabia o que esperava ver, mas decerto não era isso.
Olhou fixamente para a peça durante um longo e confuso momento. Nada
fazia sentido. Por que os guardas tinham gritado, apavorados, ao ver a marca? Era
um quadrado de rabiscos incompreensíveis. A mais brilhante de todas? Era
simétrica, dava para notar ao girá-la na mão, mas era um deboche.
Ao sentir a mão de alguém em seu ombro, Langdon ergueu a cabeça,
pensando que era Vittoria.
A mão, porém, estava coberta de sangue. Pertencia a Maximilian Kohler,
que a estendia de sua cadeira de rodas.
Langdon deixou cair o ferro de marcar e levantou-se apressadamente.
Kohler ainda estava vivo!
O corpo afundado na cadeira, o diretor agonizava mas ainda estava
respirando, embora com dificuldade, arquejante. Seus olhos encontraram os de
Langdon com a mesma expressão dura que o recebera no CERN horas antes.
Parecia ainda mais severa na hora da morte, com a aversão e a animosidade vindo
à tona.
O corpo do cientista ainda se agitava em leves convulsões e Langdon
achou que ele estava tentando se mexer. Todos na sala se concentravam no
camerlengo naquele momento. Langdon quis chamar alguém, mas não foi capaz
de reagir. Fascinava-o a intensidade que emanava de Kohler nos segundos finais
de sua vida, O diretor, com esforço, trêmulo, levantou o braço e tirou um pequeno
objeto do braço de sua cadeira.
Do tamanho de uma caixa de fósforos. Segurou-o no ar, oscilante. Langdon
chegou a pensar que Kohler tivesse uma arma. Mas era outra coisa.
- Em... trague... - a voz não passava de um sussurro entrecortado. - Em...
trague isto... à imprensa.
Kohler tombou, imóvel, e o aparelho caiu em seu colo.
Abalado, Langdon olhou para o aparelho. Era eletrônico. As palavras
SONY RUVI estavam impressas na frente. Tratava-se de uma dessas pequenas
câmeras de vídeo em miniatura que cabem na palma da mão.
Que audácia desse sujeito, pensou. Kolher provavelmente gravara alguma
mensagem suicida e queria que a imprensa a divulgasse - sem dúvida algum
sermão sobre a importância da ciência e os malefícios da religião. Langdon
decidiu que já fizera demais pela causa daquele homem naquela noite. Antes que
Chartrand visse a pequenina câmera, Langdon enfiou-a no bolso mais fundo de
seu paletó. A mensagem final de Kohler que vá para o inferno!
Foi a voz do camerlengo que quebrou o silêncio. Ele tentava se sentar.
- Os cardeais - disse ele a Chartrand, ofegante.
- Ainda estão na Capela Sistina! - exclamou Chartrand. - O capitão Rocher
ordenou...
- Faça-os sair agora. Todos.
Chartrand despachou às pressas um dos outros guardas para soltar os
cardeais.
O camerlengo fez uma careta de dor.
- O helicóptero.., aí na frente... para me levar para um hospital.
CAPÍTULO 115
Na praça em torno dele era tão grande que a barulheira abafava o som de
seus rotores ligados. Aquela não era certamente uma daquelas vigílias solenes à
luz de velas. Não sabia como ainda não havia acontecido um tumulto pior.
Faltavam menos de 25 minutos para a meia-noite e as pessoas ainda
estavam amontoadas lá, umas rezando, outras chorando pela Igreja, algumas
gritando obscenidades e proclamando que era isso mesmo o que a Igreja merecia,
outras entoando versículos apocalípticos da Bíblia.
A cabeça do piloto latejava mais quando os focos de luz das emissoras
passavam pelo seu pára-brisa, ofuscando-o. Apertava os olhos para a massa
turbulenta. Cartazes e faixas eram agitados pela multidão.
A ANTIMATERIA É O ANTICRISTO!
CIENTISTAS- SATANISTAS,
ONDE ESTÁ SEU DEUS AGORA?
O piloto gemia, a cabeça piorando. Ponderava se deveria cobrir o párabrisa
com a proteção de vinil para não ver nada, mas achava que iria levantar vôo
em questão de minutos. O tenente Chartrand acabara de falar com ele pelo rádio
dando notícias graves. O camerlengo fora atacado por Maximilian Kohler e estava
seriamente ferido. Chartrand, o americano e a mulher iriam sair com o camerlengo
para que ele fosse levado a um hospital.
O piloto sentia-se pessoalmente responsável pelo ataque. Censurava-se por
não ter agido com mais audácia. Pouco antes, ao pegar Kohler no aeroporto,
percebera algo estranho nos olhos mortos do cientista. Não sabia definir, mas não
gostara nada. Não que isso importasse. Rocher era quem mandava e ele insistira
que era aquele sujeito. Pelo jeito, enganara-se.
Um novo clamor ergueu-se da multidão. O piloto levantou os olhos e viu
uma fila de cardeais indo solenemente do Vaticano para a Praça de São Pedro. O
alívio dos cardeais por saírem da zona de risco era rapidamente superado pelas
expressões de espanto diante do espetáculo que se desenrolava fora da igreja.
O alarido intensificou-se mais ainda. A cabeça do piloto latejava. Precisava
de uma aspirina. Talvez de três.
Não gostava de voar depois de tomar remédios, mas a aspirina seria
decerto menos debilitante do que aquela dor de cabeça furiosa. Pegou o estojo de
primeiros-socorros, guardado junto com diversos mapas e manuais em uma caixa
presa entre os dois bancos dianteiros. Quando tentou abri-lo, porém, estava
trancado. Olhou em torno procurando a chave e finalmente desistiu. Aquela não
era mesmo a sua noite de sorte. Voltou a massagear as têmporas.
Dentro da basílica às escuras, Langdon, Vittoria e os dois guardas
avançavam, ofegantes, para a saída principal. Sem conseguirem encontrar nada
mais adequado, os quatro transportavam o camerlengo ferido em cima de uma
mesa estreita, o corpo inerte equilibrado entre eles como em uma maca. Lá fora, o
ruído distante da aglomeração humana tornou-se audível. O camerlengo
encontrava-se à beira da inconsciência.
O tempo estava se esgotando.
CAPÍTULO 116
Eram 11h39 quando Langdon saiu com os outros da Basílica de São Pedro.
Uma claridade ofuscante atingiu-o. A iluminação da imprensa refletia-se na
brancura do mármore como a luz do sol na tundra coberta de neve. Langdon
apertou os olhos, procurando refugiar-se atrás das enormes colunas da fachada,
mas a luz vinha de todas as direções. Na sua frente, uma coleção de enormes telas
de vídeo destacava-se acima da multidão.
Do alto da magnífica escadaria que se projetava para a praça, Langdon
sentiu-se um ator relutante no maior palco do mundo. Em algum ponto além das
luzes ofuscantes, ouviu um motor de helicóptero ligado e o rumor de milhares de
vozes. À esquerda, a procissão dos cardeais continuava seguindo para a praça.
Todos pararam, visivelmente pesarosos com a cena que naquele momento
se desenrolava nas escadarias.
- Com cuidado, agora - recomendou Chartrand, concentrado, quando o
grupo começou a descer as escadas a caminho do helicóptero.
Langdon tinha a sensação de que se moviam debaixo d'água. Seus braços
doíam com o peso do camerlengo e da mesa. Perguntava a si mesmo se poderia
haver momento mais constrangedor do que aquele. E logo teve a resposta. Os dois
repórteres da BBC, que deviam estar atravessando a praça para voltar à área da
imprensa, tinham mudado de idéia ao ouvir o vozerio das pessoas. Glick e Macri
vinham correndo na direção deles, a câmera de Macri funcionando. Lá vêm os
abutres, pensou Langdon.
- Alt! - gritou Chartrand. - Para trás!
Mas os repórteres não se detiveram. Langdon calculou que as outras
emissoras levariam uns seis segundos para também começar a transmitir aquela
cena ao vivo. Estava errado. Levaram dois. Como se unidas por uma espécie de
consciência universal, todas as telas na piazza interromperam a transmissão das
imagens da bomba de antimatéria e das opiniões de seus especialistas em
Vaticano e passaram a mostrar a mesma coisa - uma seqüência oscilante das
escadarias da basílica. Agora, para qualquer ponto que se olhasse, via-se o corpo
inerte do camerlengo em dose colorido.
Isto não está certo!, pensou Langdon, com vontade de descer as escadas e
intervir, mas sem poder. Não teria ajudado nada, porém. Se foi a algazarra do
povo ou o ar frio da noite a causa de tudo o que se seguiu,
Langdon jamais saberia, mas o fato é que, naquele momento, o
inconcebível aconteceu.
Como se o camerlengo acordasse de um pesadelo, seus olhos se abriram de
repente e ele se sentou ao mesmo tempo. Tomados inteiramente de surpresa,
Langdon e os outros atrapalharam-se com o deslocamento do peso. A parte da
frente da mesa tombou e o camerlengo começou a deslizar. Eles tentaram
recuperar o equilíbrio colocando a mesa no chão, mas já era tarde demais. O
camerlengo escorregou para a frente. Inacreditavelmente, ele não caiu. Seus pés
apoiaram-se no mármore, ele oscilou um pouco e depois se aprumou. Permaneceu
parado um instante, meio desorientado, e então, antes que alguém pudesse
impedir, precipitou-se escada abaixo, as passadas incertas, na direção de Macri.
- Não! - Langdon gritou.
Chartrand correu, tentando segurar o camerlengo, que, entretanto, se virou
para ele dizendo com ar desvairado, enlouquecido:
- Largue-me!
Chartrand deu um pulo para trás.
A cena foi de mal a pior. A batina rasgada do camerlengo, que Chartrand
apenas puxara para cima de seu peito, abriu-se e começou a cair. Por um segundo,
Langdon pensou que a roupa fosse agüentar, mas o segundo passou. A batina se
rompeu, descendo pelos ombros dele até a cintura.
A exclamação que veio da multidão pareceu percorrer o mundo inteiro e
voltar em um instante. As câmeras rodaram, os flashes espocaram. Nas telas de
televisão de todos os lugares projetou-se a imagem do peito do camerlengo
marcado a fogo, ampliado e em horríveis detalhes. Algumas telas chegaram a
congelar a imagem e girá-la 180 graus.
A suprema vitória dos Illuminati.
Langdon viu a marca nas telas de televisão. Apesar de ser a impressão
produzida pelo ferro quadrado que tivera nas mãos pouco antes, o símbolo agora
fazia sentido. Completo. O poder impressionante da marca atingiu-o com o
impacto de um trem.
Direção. Langdon esquecera a primeira regra da simbologia. Quando é que
um quadrado não é um quadrado? Também esquecera que os ferros de marcar,
assim como os carimbos de borracha, nunca se parecem com a marca que
produzem. São invertidos. Langdon olhara para o negativo da marca!
À medida que aumentava o caos na praça, uma velha citação dos Illuminati
ecoou em sua mente com um novo significado: "Um diamante sem jaça, nascido
dos antigos elementos com tamanha perfeição, que todos os que o viam ficavam
extasiados."
Agora sabia que o mito era verdadeiro.
Terra, Ar, Fogo, Água.
O diamante Illuminati.
CAPÍTULO 117
Robert Langdon não duvidava que o caos e a histeria que se alastraram
pela Praça de São Pedro naquela ocasião tivessem suplantado tudo o que o
Vaticano já vira. Nenhuma batalha, crucificação, peregrinação ou visão mística -
nada na história de dois mil anos do santuário poderia se igualar às dimensões e à
dramaticidade daquele momento.
Enquanto a tragédia se desenrolava, Langdon sentia-se estranhamente
distante, como se pairasse ali ao lado de Vittoria no alto da escadaria. A ação
pareceu distender-se como uma deformação do tempo, toda aquela insanidade
passando cada vez mais devagar.
O camerlengo marcado a fogo, delirando para o mundo inteiro ver.
O diamante Illuminati revelado em toda a sua diabólica engenhosidade.
A contagem regressiva do relógio da antimatéria registrando os últimos 20
minutos da história do Vaticano.
O drama, porém, estava apenas começando.
O camerlengo, como se estivesse vivendo um transe pós-traumático,
mostrou-se repentinamente cheio de vigor, possuído por demônios. Balbuciava,
murmurava coisas para espíritos invisíveis, olhando para o céu e levantando os
braços para Deus.
- Fale! - gritou ele para os céus. - Sim, estou escutando!
E Langdon compreendeu. Foi como se um peso caísse dentro dele.
Vittoria também compreendera. Ficou pálida.
- Ele está em estado de choque - disse. - Está tendo alucinações. Acha que
está falando com Deus.
Alguém tem de impedir que isso continue, pensou Langdon. Era um final
lamentável, embaraçoso. Levem esse homem para um hospital!
Ao pé da escadaria, Chinita Macri instalara-se em um ponto ideal e estava
filmando tudo. As imagens apareciam instantaneamente nas enormes telas atrás
dela na praça, como filmes intermináveis de cinema ao ar livre, mostrando a
mesma tragédia angustiante.
A cena toda tinha um tom épico. O camerlengo, a batina rasgada, a marca
da queimadura no peito, parecia uma espécie de paladino ferido que tivesse
ultrapassado todos os círculos do inferno por aquele momento de revelação. Ele
bradava para os céus.
- Ti sento, Dio! Estou ouvindo, Deus!
Chartrand recuou, o rosto cheio de temor.
Um silêncio espalhou-se pela multidão, instantâneo, absoluto. E foi como
se o planeta inteiro mergulhasse no mesmo silêncio. Todas as pessoas ficaram
rígidas diante de suas televisões, prendendo a respiração em conjunto.
O camerlengo parou nas escadas, diante do mundo, e abriu os braços. Igual
a Cristo, despido e machucado. Levantou os braços e, olhando para cima,
exclamou:
- Grazie! Grazie, Dio!
Nenhum ruído rompeu o silêncio.
- Grazie, Dio! - repetiu o camerlengo. Como a luz do sol passando através
de nuvens de tempestade, uma expressão de alegria indizível de repente iluminou
o rosto dele. - Grazie, Dio!
Obrigado, Deus? Langdon assistia à cena, sem compreender.
O camerlengo mostrava-se radiante agora, a misteriosa transformação já
completa. Ainda olhava para o céu, sacudindo a cabeça, arrebatado. Gritou para o
céu.
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!"
Langdon conhecia a frase, mas não entendia por que o camerlengo a
pronunciara.
O camerlengo voltou-se para o povo e gritou outra vez para dentro da
noite.
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!" - E, com os braços erguidos,
riu alto, repetindo uma vez mais: - Grazie,
Dio! Grazie!
O homem indiscutivelmente enlouquecera.
O mundo assistia, hipnotizado.
O climax de tudo aquilo, entretanto, foi algo que ninguém esperava.
Com um exultante brado final, o camerlengo deu meia-volta e disparou
para dentro da Basílica de São Pedro.
CAPÍTULO 118
11h42.
Langdon nunca imaginou que fosse um dia fazer parte de uma comitiva
frenética como a que se lançou atrás do camerlengo, muito menos que fosse ele a
sair na frente. Era ele quem estava mais próximo da porta e acabou agindo por O
camerlengo vai morrer aqui, pensou Langdon, correndo para o interior escuro da
basílica.
- Camerlengo! Pare!
A escuridão com que Langdon se deparou era absoluta. Suas pupilas
estavam contraídas por causa da claridade do lado de fora e seu campo de visão
limitava- se a alguns metros. Ele parou. Em algum ponto lá dentro ouviu o
farfalhar do tecido da batina do camerlengo, que corria às cegas para o fundo da
basílica.
Vittoria e os guardas vieram logo atrás. As lanternas foram acesas, mas as
luzes já estavam fracas e não bastavam para alcançar as profundezas do templo.
Os fachos de luz iam e vinham, mostrando apenas colunas e o chão vazio. Não se
via o camerlengo em parte alguma.
- Camerlengo! - gritou Chartrand, com medo na voz. - Espere! Signore!
Um tumulto na porta atrás deles fez todos se virarem. O volumoso vulto de
Chinita Macri assomou na entrada. Uma luz vermelha brilhando na câmera
apoiada no ombro dela revelava que ainda estava transmitindo tudo. Glick vinha
correndo atrás, microfone na mão, gritando-lhe que fosse mais devagar.
Aqueles dois eram inacreditáveis. Não é hora disso, pensou Langdon.
- Fora! - exclamou Chartrand. - Isto não é para os seus olhos!
Mas Macri e Glick não pararam.
- Chinita! - a voz de Glick soava amedrontada. - Isto é suicídio! Vou
voltar!
Macri não fez caso dele. Apertou um botão em sua câmera. O projetor em
cima dela acendeu-se, ofuscando todos.
Langdon protegeu o rosto com a mão e abaixou a cabeça, zonzo. Droga!
Quando a levantou, porém, a igreja estava iluminada uns 30 metros em torno
deles.
A voz do camerlengo ecoou em algum ponto distante:
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!"
Macri direcionou sua câmera para o som. Lá longe, na área cinzenta além
do alcance da luz do projetor, viu-se ondular um tecido escuro, revelando uma
forma conhecida que corria pela nave principal.
Seguiu-se um instante fugaz de hesitação enquanto todos os olhos
acompanhavam a imagem bizarra. Depois, rompeu-se o dique. Chartrand passou
por Langdon e lançou-se no encalço do camerlengo. Langdon foi logo atrás.
Depois, os guardas e Vittoria.
Macri fechava a retaguarda iluminando o caminho de todos e transmitindo
a caçada sepulcral para o mundo. Glick praguejava em voz alta enquanto a
acompanhava a contragosto, assustado.
A nave central da Basílica de São Pedro, calculara certa vez o tenente
Chartrand, era mais comprida do que um campo de futebol. Naquela noite dava a
impressão de ser o dobro. Correndo atrás do camerlengo, o guarda se perguntava
para onde ele estaria indo. O homem estava em choque, seguramente, abalado
pelo trauma físico e por ter presenciado aquele massacre terrível no escritório do
Papa.
Mais além, depois do trecho iluminado pelo projetor da BBC, a voz do
camerlengo soava jubilosa:
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja!"
Chartrand sabia que ele estava citando a Bíblia - Mateus, 16:18, se não se
enganava. Sobre esta pedra edificarei minha igreja. Uma inspiração quase cruel de
tão inadequada - a igreja em questão estava prestes a ser destruída. O camerlengo
com certeza enlouquecera.
Ou ele?
Por um momento, a alma de Chartrand alçou vôo. Sempre tinha
considerado as visões celestes e as divinas mensagens como ilusões, o produto de
mentes excessivamente zelosas que ouviam o que desejavam ouvir. Deus não
interagia diretamente!
Logo em seguida, contudo, como se o próprio Espírito Santo descesse para
persuadi-lo de Seu poder, Chartrand teve uma visão.
Uns 50 metros à frente, no centro da igreja, um fantasma apareceu, um
vulto diáfano, reluzente. A figura pálida era a do camerlengo seminu. O espectro
parecia transparente, irradiando luz. Chartrand estacou, com um aperto no
estômago. O camerlengo está brilhando! O corpo passou a reluzir mais ainda.
Então, começou a afundar, mais e mais, até desaparecer, como por um passe de
mágica, no chão escuro.
Langdon também vira o fantasma. E, por uma fração de segundo, também
pensou ter tido uma visão mágica. No entanto, ao passar pelo aturdido Chartrand
em direção ao ponto onde o camerlengo desaparecera, percebeu o que havia
acontecido. O camerlengo chegara ao Nicho dos Pálios - a câmara rebaixada e
iluminada por 99 lamparinas de óleo. As lamparinas dentro do nicho iluminaramno
como um fantasma, de baixo para cima. Depois, quando o camerlengo desceu
as escadas no meio da luz das lamparinas, pareceu desaparecer sob o chão.
Langdon chegou ofegante à borda do recinto rebaixado. Olhou para baixo,
para as escadas. No fundo, sob a luminosidade amarelada das lamparinas de óleo,
viu o camerlengo atravessar a câmara de mármore rumo às portas de vidro que
levavam ao aposento onde fica a famosa arca dourada.
O que ele está fazendo, perguntou-se Langdon. Será que acha que a arca
dourada...
O camerlengo escancarou as portas e entrou. Entretanto, não tomou
conhecimento da arca dourada, passando direto por ela. Mais ou menos um metro
e meio depois da arca, caiu de joelhos e começou a tentar levantar uma grade de
ferro presa no chão.
Langdon assistia a tudo estarrecido, percebendo aonde o camerlengo queria
ir.
Deus do céu, não! E desceu depressa as escadas ao encontro dele.
- Padre! Não!
Assim que Langdon abriu as portas de vidro e correu para o camerlengo,
este suspendeu a grade de ferro, que, ao girar nas dobradiças, caiu, abrindo-se
com um estrondo ensurdecedor e revelando uma abertura estreita com uma escada
quase a prumo. Quando o camerlengo já se encaminhava para a abertura, Langdon
segurou seus ombros nus e puxou-o de volta. A pele estava escorregadia de suor,
mas Langdon conseguiu detê-lo.
O camerlengo virou-se rapidamente para ele, espantado.
- O que está fazendo!
Langdon surpreendeu-se quando seus olhos se encontraram. O camerlengo
não tinha mais aquela expressão de quem está em transe. Estava alerta, cheio de
lúcida determinação. O aspecto da queimadura em seu peito era aflitivo.
- Padre - instou Langdon com toda a calma possível -, o senhor não pode
entrar aí. Temos de sair da basílica.
- Meu filho - disse o camerlengo, a voz extraordinariamente sensata -,
acabei de receber uma mensagem. Eu sei que...
- Camerlengo! - Chartrand e os outros tinham chegado. Desceram correndo
as escadas sob a luz da câmera de Macri.
Quando Chartrand viu a grade aberta no chão, seu rosto se encheu de
medo. Fez o sinal-da-cruz e lançou um olhar agradecido a Langdon por ter
impedido o camerlengo. Langdon compreendeu. Lera o suficiente sobre a
arquitetura do Vaticano para saber o que havia depois da grade. Era o local mais
sagrado da cristandade. Terra Santa. Solo sagrado. Alguns chamavam-no de
Necrópole. Outros, de Catacumbas.
Segundo os relatos dos poucos religiosos que ao longo do tempo haviam
descido ali, a Necrópole era um labirinto escuro de criptas subterrâneas que
poderia engolir um visitante se ele se perdesse. Não era um bom lugar para correr
atrás do camerlengo.
- Signore - suplicou Chartrand -, o senhor está em estado de choque.
Temos de sair daqui. Não pode descer aí. É suicídio.
O camerlengo pareceu estóico de repente. Estendeu o braço e pousou a
mão com serenidade no braço de Chartrand.
- Obrigado por sua preocupação e seus préstimos. Não sei como lhe dizer.
Nem tenho como lhe dizer o quanto o compreendo. Mas tive uma revelação. Sei
onde está a antimatéria.
Todos olhavam para ele, estáticos.
O camerlengo voltou-se para o grupo.
- "Sobre esta pedra edificarei minha igreja." Esta foi a mensagem. O
significado é claro.
Langdon ainda não Conseguia compreender a convicção do camerlengo de
que falara com Deus e muito menos de que decifrara a mensagem divina. Sobre
esta pedra edificarei minha igreja? As palavras que Jesus proferira ao escolher
Pedro como seu primeiro apóstolo. O que tinham a ver com a situação?
Macri aproximou-se para conseguir um ângulo melhor. Glick estava mudo,
como quem tomou um grande susto.
O camerlengo falava rapidamente, explicando.
- Os Illuminati colocaram seu instrumento de destruição na própria pedra
angular desta igreja. Nas suas fundações. - Fez um gesto para as escadas abaixo.
- Na pedra sobre a qual esta igreja foi construída. E eu sei onde essa pedra
está. Langdon achava que chegara a hora de subjugar o camerlengo e sair dali.
Por mais que parecesse lúcido, o padre não estava dizendo coisa com coisa.
Uma pedra? A pedra angular das fundações? Aqueles degraus não levavam às
fundações, mas à Necrópole!
- A citação é uma metáfora, senhor. Não existe uma pedra de verdade!
O rosto do camerlengo ficou estranhamente triste.
- Existe uma pedra, sim, filho - e apontou para a abertura. - Pietro é la
pietra.
Langdon congelou. Tudo ficou claro.
A austera simplicidade daquilo deu-lhe arrepios. Ali, de pé com os outros,
olhando para a longa escada que descia, percebeu que havia de fato uma pedra
enterrada nas trevas sob aquela igreja.
Pietro é la pietra. Pedro é a pedra.
Pedro tinha uma fé tão sólida em Deus que Jesus o chamava de "a rocha" -
o discípulo resoluto sobre cujos ombros Jesus construiria sua igreja. Naquele lugar
exato, a Colina Vaticana, Pedro fora crucificado e enterrado. Os primeiros cristãos
ergueram um pequeno santuário em cima de sua tumba. À medida que o
cristianismo se espalhava, o santuário foi crescendo pouco a pouco, culminando
com aquela colossal basílica. A fé católica fora construída, de modo bastante
literal, em cima de São Pedro. Da rocha. Da pedra.
- A antimatéria está na tumba de São Pedro - disse o camerlengo com voz
cristalina.
A despeito da suposta origem sobrenatural da informação, Langdon
reconhecia que havia lógica nela.
Colocar a antimatéria na tumba de São Pedro agora parecia dolorosamente
óbvio. Os Illuminati, num gesto de desafio simbólico, tinham escondido a
antimatéria no âmago da cristandade, literal e figurativamente. A suprema
infiltração.
- E se vocês precisarem de provas concretas - disse o camerlengo, agora
impaciente -, acabei de encontrar esta grade destrancada - e mostrou a grade
aberta no chão. - Nunca fica destrancada. Alguém esteve aqui embaixo
recentemente.
Todos olharam para dentro da abertura.
No instante seguinte, com insuspeitada agilidade, o camerlengo pegou uma
das lamparinas e desceu as escadas.
CAPÍTULO 119
Os degraus de pedra seguiam em declive acentuado para dentro da terra.
Vou morrer lá embaixo, pensou Vittoria, segurando o corrimão feito de
corda pesada ao enveredar pela passagem estreita atrás dos outros. Embora
Langdon tivesse feito um movimento para impedir que o camerlengo entrasse na
abertura da escada, Chartrand interferira segurando Langdon. Pelo jeito, o jovem
guarda convencera-se de que o camerlengo sabia o que estava fazendo.
Depois de uma breve luta, Langdon soltara-se e seguira o camerlengo, com
Chartrand em seus calcanhares. Instintivamente, Vittoria fora atrás de ambos.
Agora precipitava-se por uma descida íngreme em que qualquer passo em
falso poderia causar uma queda fatal. Bem abaixo, distinguia o brilho dourado da
lamparina de óleo do camerlengo. Na retaguarda, ouvia os repórteres da BBC, que
se apressavam para chegar perto deles. O refletor da câmera lançava sombras
retorcidas nas profundezas, iluminando Chartrand e Langdon. Era inacreditável
que o mundo estivesse testemunhando aquela loucura. Desligue a maldita câmera!
Mas logo depois admitia que sem a luz da câmera nenhum deles saberia aonde
estava indo.
Enquanto aquela corrida louca prosseguia, os pensamentos de Vittoria
agitavam-se, tempestuosos. O que o camerlengo poderia fazer ali embaixo?
Mesmo que encontrasse a antimatéria? Não havia mais tempo!
Vittoria surpreendeu-se ao descobrir sua intuição lhe dizendo que o
camerlengo provavelmente tinha razão.
Colocar a antimatéria tão fundo dentro da terra era uma opção quase nobre
e misericordiosa. Àquela profundidade - tal como no laboratório do CERN -, o
aniquilamento da antimatéria seria parcialmente contido. Não haveria o
deslocamento de ar quente nem os fragmentos voando para ferir as pessoas, só
uma abertura bíblica da terra e uma gigantesca basílica desmoronando dentro de
uma cratera.
Teria sido este o único gesto de generosidade de Kohler? Poupar vidas?
Vittoria ainda não compreendia o envolvimento do diretor. Aceitava que
tivesse ódio da religião, mas aquela conspiração apavorante não combinava com
ele. Será que a aversão fora assim tão profunda? A ponto de destruir o Vaticano?
De contratar um assassino? E planejar os assassinatos do pai dela, do Papa e de
quatro cardeais? Parecia impensável. E como teria Kohler induzido toda aquela
traição dentro dos muros do Vaticano? Rocher era o contato de Kohler, pensou
Vittoria. Rocher era um Illuminatus. Devia ter as chaves de todos os lugares - dos
aposentos do Papa, do Passetto, da Necrópole, da tumba de São Pedro, de tudo.
Ele próprio poderia ter colocado a antimatéria na tumba de São Pedro - um local
altamente restrito - e depois ter recomendado que seus guardas não perdessem
tempo procurando nas áreas restritas do Vaticano. Rocher sabia que ninguém
jamais encontraria a antimatéria.
Mas Rocher não contava com a mensagem que o camerlengo recebera do
alto.
A mensagem. Vittoria ainda lutava para acreditar nela. Deus teria
realmente se comunicado com o camerlengo? Em seu íntimo, Vittoria dizia que
não e, todavia, a sua especialidade como cientista era a física do entanglement, ou
emaranhamento - a da interconexão. Presenciava comunicações milagrosas todos
os dias - ovos gêmeos de tartarugas marinhas separados e colocados em
laboratórios a quilômetros de distância um do outro que eclodiam no mesmo
instante, milhares de águas-vivas dentro d'água pulsando no mesmo ritmo como se
fossem uma só. Existem linhas invisíveis de comunicação em toda parte, refletiu.
Mas também entre Deus e o homem?
Vittoria desejou que seu pai estivesse ali para dar-lhe fé. Ele certa vez
explicara-lhe a divina comunicação em termos científicos e fizera com que
acreditasse. Ainda lembrava que o vira rezando e perguntara:
- Pai, por que se dá ao trabalho de rezar? Deus não pode responder.
Leonardo Vetra interrompera suas meditações e olhara para ela com um
sorriso paternal.
- Minha filha cética. Quer dizer que você não acredita que Deus fale com o
homem? Deixe que lhe explique com uma linguagem que você compreende. -
Pegou um modelo do cérebro humano em uma prateleira e colocou na frente dela.
- Como já deve saber, Vittoria, os seres humanos normalmente utilizam
apenas uma parcela muito pequena de sua capacidade cerebral. Contudo, se forem
expostos a situações emocionalmente intensas, como traumas físicos, alegria ou
medo extremos, meditação profunda, de repente seus neurônios começam a se
acelerar como loucos, o que resulta em um aumento enorme de clareza mental.
- E daí? - argumentou Vittoria. - Só porque alguém pensa com clareza não
significa que fale com Deus.
- Ah! - exclamou Vetra. - No entanto, soluções extraordinárias para
problemas supostamente impossíveis costumam ocorrer nesses momentos de
clareza. É o que os gurus chamam de consciência elevada. Os biólogos, de estados
alterados. Os psicólogos, de superpercepção - e ele fez uma pausa. - E os cristãos,
de preces atendidas. - Com um sorriso largo, acrescentou: - Às vezes, a revelação
divina significa simplesmente adaptar seu cérebro para escutar o que seu coração
já sabe.
Agora, descendo as escadas sombrias, sentia que talvez seu pai tivesse
razão. Seria tão difícil assim acreditar que o trauma sofrido pelo camerlengo
tivesse posto a mente dele em um estado que lhe permitira "perceber" a
localização da antimatéria?
Cada um de nós é um Deus, dissera Buda. Cada um de nós sabe tudo.
Precisamos apenas abrir nossas mentes para escutar nossa sabedoria.
Naquele momento de clareza, descendo ao fundo da terra, Vittoria sentiu
sua mente se abrir, sua sabedoria vir à tona.
Sabia agora sem sombra de dúvida quais eram as intenções do camerlengo.
Aquela conscientização fez Vittoria sentir um medo tão grande como nunca
experimentara antes.
- Camerlengo, não! - gritou. - O senhor não está entendendo! - Vittoria
lembrou da multidão em torno da Cidade do Vaticano e seu sangue gelou nas
veias. - Se levar a antimatéria para cima, toda aquela gente vai morrer!
Langdon descia pulando de três em três degraus, ganhando terreno. A
passagem era apertada, mas ele não sentia claustrofobia. Seu antigo medo
paralisante fora sobrepujado por um terror mais profundo.
- Camerlengo! - Langdon ia diminuindo a distância que o separava do
brilho da lamparina. - O senhor tende deixar a antimatéria onde está! Não há outro
jeito!
Ao mesmo tempo em que pronunciava aquelas palavras, Langdon custava a
acreditar no que dizia. Não só aceitara como verdadeira a revelação divina ao
camerlengo da localização da antimatéria, como estava argumentando a favor da
destruição da Basílica de São Pedro - uma das maiores proezas arquitetônicas da
Terra e de toda a arte que ela continha.
Mas há pessoas do lado de fora, é o único jeito.
Parecia uma cruel ironia que a única forma de salvar as pessoas fosse a
destruição da igreja. Langdon imaginava que os Illuminati estivessem achando
graça no simbolismo.
O ar que subia do fundo do túnel era frio e úmido. Em algum ponto lá
embaixo ficava a sagrada Necrópole, onde tinham sido enterrados São Pedro e
inúmeros outros primeiros cristãos. Langdon sentiu um calafrio, esperando que
aquela não fosse uma missão suicida.
Subitamente, a lamparina do camerlengo parou. Langdon logo o alcançou.
Os degraus terminavam abruptamente. Um portão de ferro batido com três
caveiras em relevo fechava a base das escadas. O camerlengo empurrou o portão e
o abriu. Langdon pulou na frente e o fechou, bloqueando o caminho do
camerlengo. Os outros vieram descendo às carreiras, fazendo barulho, todos
fantasmagóricos sob a luz branca do refletor da BBC, sobretudo Glick, cada vez
mais lívido.
Chartrand puxou Langdon.
- Deixe o camerlengo passar!
- Não! - exclamou Vittoria, ofegante. - Temos de abandonar este lugar
agora mesmo! O senhor não pode tirar a antimatéria daqui! Se levá-la para cima,
todos os que estão lá fora vão morrer!
A voz do camerlengo estava extraordinariamente calma.
- Todos vocês têm de ter confiança. Temos pouco tempo.
- O senhor não entendeu - disse Vittoria. - Uma explosão ao nível do chão
seria muito pior do que uma explosão aqui embaixo!
O camerlengo olhou para ela, os olhos verdes resplandecentes e firmes.
- Quem falou de explosão ao nível do chão?
Vittoria espantou-se.
- O senhor vai deixá-la aqui?
A convicção do camerlengo era hipnótica.
- Não haverá mais mortes esta noite.
- Padre, mas...
- Por favor, tenham um pouco de fé - a voz dele adquiriu um tom de
quietude irresistível. - Não estou pedindo a ninguém que me acompanhe. Sintamse
todos livres para ir embora. Só peço que não interfiram com a vontade de Deus.
Deixem que eu faça o que me foi determinado fazer - o olhar do camerlengo ficou
mais intenso. - Tenho de salvar esta igreja. E posso fazê-lo. Juro por minha
própria vida.
O silêncio que se seguiu teve o mesmo efeito de uma trovoada.
CAPÍTULO 120
11h51.
Necrópole significa literalmente "cidade dos mortos".
Nada do que Robert Langdon lera sobre aquele lugar o havia preparado
para o que encontrou. A colossal cavidade subterrânea estava repleta de
mausoléus em ruínas, como pequenas casas dentro de uma caverna. O ar cheirava
a ausência de vida. Uma canhestra rede de caminhos serpenteava entre os
monumentos deteriorados, a maior parte deles feita de tijolos fragmentados e
placas de mármore.
Semelhantes a colunas feitas de pó, inúmeros pilares de terra não escavada
erguiam-se para apoiar um céu também de pó, que se estendia, pesado e baixo,
sobre o pequeno povoado imerso na penumbra.
Cidade dos mortos, repetiu Langdon, dividido entre o deslumbramento
acadêmico e o medo puro e simples. Ele e os outros enveredaram correndo pelas
trilhas sinuosas. Será que fiz a opção errada?
Chartrand tinha sido o primeiro a sucumbir ao fascínio do camerlengo,
escancarando o portão e declarando que confiava nele. Glick e Macri, por
sugestão do camerlengo, tinham nobremente concordado em fornecer luz para a
busca, embora, levando-se em conta os louvores que os esperavam caso saíssem
vivos dali, suas motivações fossem no mínimo suspeitas. Vittoria fora quem
mostrara menos entusiasmo e Langdon vira nos olhos dela uma cautela que se
parecia um bocado com uma inquietante intuição feminina.
Agora é tarde, pensou, enquanto ele e Vittoria corriam junto com os outros.
Já estamos envolvidos.
Vittoria ia calada, mas ele sabia que ambos pensavam a mesma coisa. Nove
minutos não bastam para sair da Cidade do Vaticano se o camerlengo estiver
errado.
Rodeando os mausoléus, Langdon começou a sentir as pernas cansadas,
notando com surpresa que o grupo esta'a subindo uma elevação acentuada. Ao
perceber o motivo, sentiu arrepios. A topografia sob seus pés era a do tempo de
Cristo. Estavam subindo a Colina Vaticana original! Já ouvira especialistas em
Vaticano afirmar que a tumba de São Pedro ficava quase no alto da Colina
Vaticana e sempre se perguntara como eles poderiam saber. Agora compreendia.
A maldita colina ainda existe!
Tinha a impressão de estar percorrendo páginas de um livro de história. Em
algum ponto adiante encontrava-se a tumba de São Pedro - a relíquia cristã por
excelência. Era difícil conceber que a sepultura original tivesse sido assinalada de
início apenas com um modesto santuário. Não mais. À medida que se espalhou a
importância de São Pedro, novos santuários foram construídos por cima do antigo
e agora a homenagem prolongava-se quase 135 metros para o alto, até o topo do
domo de Michelangelo, cujo ápice fora posicionado diretamente acima da tumba
original com uma insignificante margem de erro.
A subida tortuosa continuava. Langdon olhou o relógio. Oito minutos.
Começava a achar que ele e Vittoria em breve fariam companhia permanentemente
àqueles mortos.
- Cuidado! - Glick gritou atrás deles. - Buracos de cobra!
Langdon viu-os a tempo. Uma sucessão de pequenos orifícios pontilhava o
caminho à frente. Deu um pulo, esquivando-se.
Vittoria pulou também, quase pisando nos buracos. Perguntou, inquieta,
enquanto seguiam adiante:
- Buracos de cobra?
- Não exatamente - disse Langdon. - Tenho certeza de que não vai querer
saber o que são.
Os orifícios eram tubos de libações. Os primeiros cristãos acreditavam na
ressurreição da carne e usavam aqueles buracos para literalmente "alimentar os
mortos", derramando leite e mel nas criptas sob o chão.
O camerlengo sentiu-se fraco.
Mas não se deteve, as pernas encontrando forças no cumprimento de seu
dever a Deus e aos homens. Quase chegando. Sentia dores incríveis. A mente
pode causar muito mais dor do que o corpo. Ainda assim, sentia-se cansado. Sabia
que dispunha de muito pouco tempo.
- Vou salvar sua igreja, meu Pai. Juro.
Apesar da luz da BBC atrás dele, pela qual era grato, o camerlengo levava
sua lamparina de óleo com o braço levantado. Sou um farol na escuridão. Sou a
luz. O óleo balançava conforme ele corria e, por um instante, receou que o líquido
inflamável se derramasse e o queimasse. Sua carne já fora queimada demais por
uma noite.
Quando se aproximou do alto da colina, estava encharcado de suor, com a
respiração difícil. Ao atingir o topo, entretanto, sentiu-se renascer. Parou
cambaleante sobre o trecho plano de terra onde já estivera muitas vezes. O
caminho terminava ali. A Necrópole chegava abruptamente ao final em uma
parede de terra. Um marco diminuto trazia a inscrição: Mausoleum 5.
La tomba di San Pietro.
Havia uma abertura na parede que lhe chegava à cintura. Sem nenhuma
placa dourada. Sem ostentação. Somente uma simples cavidade na parede, além
da qual havia uma pequena gruta e um sarcófago pobre, esfacelando-se. O
camerlengo lançou um olhar lá dentro e deu um sorriso cansado. Ouvia os outros
se aproximando. Pousou sua lamparina de óleo no chão e ajoelhou-se para rezar.
Obrigado, meu Deus. Está quase acabando.
Do lado de fora, na praça, rodeado pelos cardeais atônitos, o cardeal
Mortati acompanhava pela tela grande o drama que se desenrolava na cripta. Não
sabia mais em que acreditar. Será que o mundo inteiro vira o mesmo que ele?
Deus teria mesmo falado com o camerlengo? Será que a antimatéria iria de fato
aparecer na Basílica de São...
- Olhem! - o povo prendeu a respiração.
- Está lá! - todos apontavam para a tela. - É um milagre!
Mortati olhou para cima. A câmera não estava firme, mas a imagem era
bem clara. E inesquecível.
Filmado de trás, o camerlengo estava rezando ajoelhado no chão de terra.
Na frente dele, um buraco tosco cavado na parede. Dentro, em meio a pedregulhos
e terra acumulados pelo tempo, havia um caixão de terracota. Mortati vira-o
apenas uma vez na vida, mas sem dúvida sabia o que continha.
San Pietro.
Mortati não era ingênuo a ponto de achar que os gritos de alegria e espanto
que ressoavam pela praça eram de exaltação por contemplarem uma das mais
sagradas relíquias do cristianismo. As pessoas não estavam caindo de joelhos em
orações e agradecimentos espontâneos por causa da tumba de São Pedro, mas por
causa do objeto que se encontrava em cima da tumba.
O tubo de antimatéria. Lá estava, no mesmo lugar onde estivera escondido
o dia todo: na escuridão da Necrópole.
Sorrateiro. Incansável. Mortal. A revelação do camerlengo estava certa.
Mortati olhava perplexo para o cilindro transparente. O glóbulo de líquido
pairava no meio dele. A gruta que o continha refletiu a luz vermelha intermitente
do contador marcando os cinco minutos finais das baterias.
Também pousada dentro da tumba, a centímetros de distância do cilindro,
encontrava-se a câmera sem fio da Guarda Suíça, que apontara para o tubo e
transmitira sua imagem todo aquele tempo.
Mortati benzeu-se com o sinal-da-cruz, certo de que se tratava da imagem
mais assustadora que vira em toda a sua vida. Um momento mais tarde, porém,
percebeu que estava prestes a ficar ainda pior.
O camerlengo levantou-se repentinamente. Agarrou o tubo de antimatéria
e virou-se para os outros, o rosto completamente em foco. Passou pelos outros e
começou a descer a Necrópole do mesmo modo como subira, correndo ladeira
abaixo.
A câmera pegou Vittoria Vetra paralisada de terror.
- Onde o senhor está indo? Camerlengo! O senhor não disse que...
- Tenha fé! - exclamou ele, sempre correndo.
Vittoria dirigiu-se a Langdon.
- O que fazemos agora?
Robert Langdon tentou barrar o caminho do camerlengo, mas Chartrand
agora o protegia, aparentemente confiante na decisão dele.
A seqüência que vinha da câmera da BBC ficou igual à de uma corrida de
montanha-russa, sacudindo, subindo e descendo, fazendo voltas. Surgiam de vez
em quando lampejos de confusão e pavor enquanto o cortejo excêntrico voltava
aos tropeções para a entrada da Necrópole.
Na praça, Mortati deixou escapar uma exclamação amedrontada.
- Ele vai trazê-la aqui para cima?
Nas televisões do mundo todo, em tamanho grande, o camerlengo saía a
toda a velocidade da Necrópole segurando o recipiente da antimatéria nos braços
estendidos.
- Não haverá mais mortes esta noite!
Mas o camerlengo estava enganado.
CAPÍTULO 121
Exatamente às 11 h56 o camerlengo irrompeu pelas portas da Basílica de
São Pedro para o espaço aberto. Vacilou à claridade estonteante dos holofotes,
carregando a antimatéria nas duas mãos estendidas como se fosse uma oferenda
divina. Seus olhos ardiam, mas ele via sua própria figura, semi-nua e ferida, em
proporções gigantescas nas telas das redes de emissoras espalhadas pela praça. O
clamor que se ergueu da multidão na Praça de São Pedro foi algo que ele nunca
tinha ouvido antes - choros, gritos, ladainhas, rezas, uma mistura de veneração e
terror.
Livrai-nos do mal, ele murmurou.
Sentia-se completamente esgotado por sua corrida para sair da Necrópole.
Aquela saída quase terminara em desastre. Robert Langdon e Vittoria Vetra
tinham tentado interceptá-lo e levar o tubo de volta ao esconderijo subterrâneo,
pretendendo depois correr para fora e se abrigar. Tolos, cegos!
O camerlengo via agora, com assustadora clareza, que jamais teria vencido
aquela corrida em qualquer outra noite. Naquela, porém, Deus estivera com ele
mais uma vez. Robert Langdon quase o alcançara, mas fora impedido por
Chartrand, sempre confiante e leal aos seus rogos para que tivessem fé. Os
repórteres, evidentemente, estavam enfeitiçados demais e sobrecarregados com
muito equipamento para interferirem.
O Senhor trabalha de maneira misteriosa.
O camerlengo ouvia os outros vindo atrás dele agora - via-os nas telas,
aproximando-se. Reuniu o resto de suas forças e levantou a antimatéria acima da
cabeça. Então, endireitou os ombros nus, num gesto de desafio à marca dos
Illuminati em seu peito, e desceu depressa as escadas.
Ainda haveria um ato final.
Vou com Deus! Vou com Deus!
Quatro minutos...
Langdon pouco enxergou assim que saiu da basílica. Mais uma vez o mar
de luzes agrediu suas retinas. Só vislumbrava a silhueta indistinta do camerlengo,
direto à sua frente, descendo depressa as escadas. Por um instante, refulgente com
seu halo de luzes, o camerlengo pareceu celestial, uma espécie de divindade
moderna. A batina caíra-lhe até a cintura e envolvia-o como um sudário. O corpo
tinha sido queimado e ferido pelos inimigos e mesmo assim ele resistia. Corria
para as massas com o corpo ereto, exortando o mundo a ter fé, levando a arma de
destruição.
Langdon seguiu-o. O que ele está fazendo? Vai matar toda essa gente!
- A obra de Satã - gritava o camerlengo - não tem lugar na Casa de Deus!
E corria na direção das pessoas, agora apavoradas.
- Padre! - chamava Langdon atrás dele. - Não há mais para onde ir!
- Olhe para o céu! Esquecemos de olhar para o céu!
Ao entender para onde o camerlengo se encaminhava, Langdon sentiu
aquela magnífica verdade invadi-lo. Embora as luzes dos refletores não o
deixassem enxergar, sabia que a salvação estava justamente acima deles.
No céu da Itália repleto de estrelas.
O helicóptero que o camerlengo solicitara para levá-lo ao hospital estava
esperando ali perto, o piloto na cabine, as pás zumbindo em ponto morto.
Correndo atrás do camerlengo, Langdon foi tomado por uma repentina e
avassaladora alegria.
Uma enxurrada de pensamentos passou-lhe rapidamente pela cabeça.
Primeiro, veio a imagem do espaço aberto do mar Mediterrâneo. A que
distância ficava dali? Oito quilômetros? Quinze? Sabia que a praia em Fiumicino
ficava somente a uns sete minutos de trem. Mas de helicóptero, a mais de 400
quilômetros por hora, sem paradas... Se conseguissem levar o tubo bem longe
acima do mar e jogá-lo do helicóptero... Havia outras opções ainda, lembrou,
sentindo-se quase sem peso enquanto corria. La Cava Romana! As pedreiras de
mármore ao norte da cidade ficavam a menos de cinco quilômetros de distância.
Qual era o tamanho delas? Cinco quilômetros quadrados? Deviam estar desertas
àquela hora! Jogar o tubo de antimatéria ali...
- Para trás! - berrava o camerlengo. Seu peito doía enquanto ele corria.
- Saiam daí! Agora!
A Guarda Suíça postada em torno do helicóptero olhava boquiaberta para o
camerlengo que se aproximava.
- Saiam! - o padre gritava.
Os guardas se afastaram.
Com o mundo inteiro assistindo embasbacado, o camerlengo contornou o
aparelho até a porta do piloto e a escancarou.
- Saia daí, meu filho! Já!
O piloto pulou fora.
O camerlengo avaliou a altura do assento da cabine e percebeu que,
exausto como estava, precisaria das duas mãos para subir. Virou-se para o piloto,
trêmulo a seu lado, e pôs o cilindro de antimatéria nas mãos dele.
- Segure isto. Me entregue quando eu estiver sentado.
Ao subir, o camerlengo ouviu Langdon gritando com grande excitação
chegando perto do helicóptero.
Agora você compreendeu, pensou o camerlengo. Agora você tem fé!
O camerlengo acomodou-se no assento, ajustou algumas alavancas que já
conhecia e debruçou-se para pegar o cilindro.
O piloto, porém, estava de mãos vazias.
- Ele o pegou! - exclamou.
O camerlengo sentiu um baque no coração.
-Quem?
O piloto apontou.
-Ele!
Robert Langdon surpreendeu-se ao verificar como o tubo era pesado.
Correu para o outro lado do helicóptero e pulou para o compartimento traseiro
onde ele e Vittoria tinham sentado poucas horas antes.
Deixou a porta aberta e afivelou o cinto de segurança. E gritou para o
camerlengo no banco da frente.
- Decole, padre!
O camerlengo virou a cabeça para Langdon, o rosto branco de susto.
- O que vai fazer?
- O senhor pilota! Eu jogo o tubo! - vociferou Langdon. - Não há tempo!
Faça o bendito helicóptero levantar vôo!
O camerlengo pareceu momentaneamente paralisado, a iluminação forte
penetrando na cabine e acentuando os vincos em seu rosto.
- Posso fazer isto sozinho - murmurou. - Tenho de fazer isto sozinho.
Langdon não lhe deu ouvidos. Decole!, ouviu-se gritar. Agora! Estou aqui
para ajudar! Olhou para o cilindro e sua garganta se apertou ao ver os números.
- Três minutos, padre! Três!
O número fez o camerlengo voltar a si. Sem titubear, voltou-se para os
controles. Com um rugido, o helicóptero levantou vôo.
Através de uma nuvem de poeira, Langdon viu Vittoria chegar correndo.
Seus olhos se encontraram e depois ela sumiu, como uma pedra que afunda na
água.
CAPÍTULO 122
Dentro do aparelho, o barulho do motor e a ventania que entrava pela porta
aberta assaltaram os sentidos de Langdon com um caos ensurdecedor. Firmou-se
contra a força ampliada da gravidade à medida que o camerlengo acelerava o
helicóptero para cima em linha reta. O brilho da Praça de São Pedro encolheu
abaixo deles até se transformar em uma elipse luminosa, radiante no mar de luzes
da cidade.
O tubo de antimatéria era como um peso morto nas mãos de Langdon.
Segurava-o com força, as palmas das mãos escorregadias de suor e sangue. Dentro
do cilindro, o glóbulo de antimatéria oscilava calmamente, pulsando sob a luz
vermelha do relógio em contagem regressiva.
- Dois minutos! - gritou Langdon, tentando adivinhar onde o camerlengo
pretendia jogar o tubo.
As luzes da cidade lá embaixo espalhavam-se por todas as direções. Para
oeste, ao longe, ele avistava o contorno cintilante da costa do Mediterrâneo - uma
orla pontilhada de luminescências, além da qual estendia-se uma infindável e
escura extensão de nada. O mar parecia mais longínquo agora do que Langdon
imaginara. Além disso, a concentração de luzes na costa era um lembrete amargo
de que, mesmo bem longe, uma explosão no mar poderia ter conseqüências
devastadoras. E ele nem chegara a considerar os efeitos de uma onda gigantesca
de dez quilotons atingindo o litoral.
Ao olhar para a frente, através da janela da cabine de comando, ficou mais
esperançoso. As sombras ondulantes dos contrafortes de Roma surgiam no meio
da noite, salpicadas de luzes - as villas dos muito ricos -; entretanto, a pouco mais
de um quilômetro ao norte, as colinas ficavam escuras. Não havia nenhuma luz
ali, só um enorme espaço negro. Nada mais.
As pedreiras! Langdon pensou. La Cava Romana!
Avaliando o trecho estéril de terreno, Langdon achou que seria grande o
bastante. E parecia próximo, além disso. Mais próximo do que o mar. Animado,
achou que era de fato para lá que o camerlengo planejava levar a antimatéria! O
helicóptero estava apontado para aquela direção! As pedreiras! O estranho, porém,
é que os motores faziam um ruído cada vez mais alto, o helicóptero movia-se no
ar, mas as pedreiras não ficavam mais próximas.
Desconcertado, lançou um olhar pela porta lateral para se localizar. O que
viu transformou sua animação em pânico. Diretamente abaixo deles, distantes,
brilhavam as fortes luzes da imprensa na Praça de São Pedro.
Ainda estamos sobrevoando o Vaticano!
- Camerlengo! - chamou ele, engasgado de aflição. - Vá em frente! Já
subimos bastante! Temos de começar a seguir em frente! Não podemos jogar o
tubo de volta na Cidade do Vaticano!
O camerlengo não respondeu. Aparentemente, concentrava-se em pilotar o
aparelho.
- Temos menos de dois minutos! - gritou Langdon, levantando o cilindro.
- Estou vendo daqui! La Cava Romana! Uns dois quilômetros ao norte!
Não temos...
- Não - disse o camerlengo -, é perigoso demais. Sinto muito. - O
helicóptero continuou subindo, O camerlengo virou-se e deu um sorriso triste para
Langdon.
- Preferia que não tivesse vindo, meu amigo. Você fez o supremo
sacrifício.
Langdon olhou para o rosto cansado do camerlengo e então compreendeu.
Seu sangue congelou.
- Mas deve haver algum lugar para onde possamos ir!
- Para cima - respondeu o camerlengo, a voz resignada. - É a única
alternativa garantida.
Langdon mal conseguia pensar. Interpretara de modo completamente
errado o plano do camerlengo. Olhe para o céu!
O céu, só agora entendia, era literalmente para onde estavam indo, O
camerlengo nunca tivera a intenção de lançar fora a antimatéria. Estava
simplesmente se afastando o máximo possível da Cidade do Vaticano.
Aquela era uma viagem sem volta.
CAPÍTULO 123
Na Praça de São Pedro, Vittoria olhava para cima. O helicóptero não
passava de um pontinho agora que as luzes dos refletores não o alcançavam mais.
Até o barulho dos rotores transformara-se em um zumbido distante. Parecia que o
mundo inteiro se concentrava no alto, emudecido antecipadamente, os rostos de
todos voltados para o céu - todas as pessoas, de todas as crenças, todos os
corações batendo como se fossem um só.
As emoções de Vittoria eram um turbilhão de agonias. Quando o
helicóptero desapareceu, ela lembrou o rosto de Robert, afastando-se dentro dele.
O que será que ele pensou? Será que não compreendeu?
Em torno da praça, as câmeras de televisão sondavam a escuridão,
esperando. Milhares de rostos voltavam-se para o céu, unidos em uma contagem
silenciosa. Todos os telões mostravam a mesma cena tranqüila: o céu romano
pontilhado de estrelas brilhantes. Vittoria sentiu as lágrimas começarem a brotar.
Atrás dela, na escadaria de mármore, 161 cardeais olhavam para cima em
silenciosa reverência. Alguns tinham as mãos juntas em oração. A maioria
permanecia imóvel, aturdida. Alguns choravam. Os segundos passavam.
Nas casas das pessoas, em bares, escritórios, aeroportos, hospitais do
mundo todo, os espíritos se uniam em testemunho universal. Homens e mulheres
davam-se as mãos. Outros seguravam seus filhos. Como se o tempo pairasse no
limbo, as almas suspensas em uníssono.
Então, cruelmente, os sinos de São Pedro começaram a tocar.
Vittoria deixou as lágrimas virem.
E, com o mundo inteiro assistindo, o tempo se esgotou.
O silêncio mortal do acontecimento foi seu aspecto mais aterrorizante.
Muito acima do Vaticano, um ponto de luz apareceu no céu. Por um
instante fugaz, um novo corpo celeste nasceu, uma centelha de luz pura e branca
como nunca se vira.
Depois, tudo começou.
Um lampejo. O ponto luminoso encapelou-se, como se alimentasse de si
mesmo, desenrolando-se pelo céu em um raio que se dilatava, de um branco
ofuscante. Projetou-se para todas as direções, acelerando com indizível rapidez,
devorando sofregamente a escuridão. À medida que a esfera de luz crescia,
também se intensificava, como o rebento de um demônio preparando-se para
consumir o céu inteiro. Correu para baixo, na direção deles, ganhando velocidade.
Estarrecidos, os milhares de rostos iluminados pela luz implacável
arquejaram juntos, as mãos protegendo os olhos, todos deixaram escapar um grito
estrangulado de medo.
A luz se propagou em todas as direções e, súbito, deu-se o inimaginável.
Como se fosse contido pela própria vontade de Deus, o raio crescente pareceu
bater em uma parede, como se de alguma forma a explosão ficasse retida dentro
de uma gigantesca esfera de vidro. A luz ricocheteou, aguçando-se, ondulando
sobre si mesma. A onda parecia ter alcançado um diâmetro predeterminado e
pairava ali. Durante aquele instante, uma perfeita e silenciosa esfera de luz brilhou
sobre Roma. A noite virou dia.
Então houve o impacto.
A concussão foi profunda e surda - uma estrondosa onda de choque vinda
de cima. Desceu sobre eles como a ira do inferno, sacudindo as fundações de
granito da Cidade do Vaticano, golpeando o ar para fora dos pulmões das pessoas,
fazendo-as cambalear. A reverberação percorreu a colunata, seguida por uma
repentina lufada de ar quente. O vento se abateu sobre a praça, soltando um
gemido sepulcral ao sibilar entre as colunas e fustigar as paredes. A poeira
redemoinhava no ar, as pessoas se encolhiam, testemunhas do Armagedon.
Em seguida, tão depressa quanto surgira, a esfera implodiu, sugando-se a si
própria, comprimindo-se, retornando ao diminuto ponto de luz de onde viera.
CAPÍTULO 124
Nunca antes tantos tinham ficado em silêncio ao mesmo tempo.
Os rostos na Praça de São Pedro, um a um, desviaram os olhos do céu
escuro e voltaram-se para baixo, cada pessoa em seu momento particular de
assombro. Os refletores da imprensa fizeram o mesmo, baixando seus focos
luminosos para a terra, como em reverência pelas trevas que se instalavam acima
deles. Parecia que o mundo inteiro curvava a cabeça junto.
O cardeal Mortati ajoelhou-se para rezar e os outros cardeais
acompanharam-no. A Guarda Suíça baixou suas longas lanças e imobilizou-se.
Ninguém falava. Ninguém se mexia. Em toda parte, emoções espontâneas
abalavam os corações. Consternação. Medo. Espanto. Crença. E um respeito
temeroso pelo novo e impressionante poder cuja manifestação tinham acabado de
presenciar.
Vittoria Vetra permanecia, trêmula, ao pé das amplas escadarias da
basílica. Ela fechou os olhos. Através da tempestade de emoções que percorriam
seu corpo, uma única palavra soava triste como o dobrar de um sino distante.
Intacta. Cruel. Ela tentava afastá-la, mas a palavra voltava e voltava. A dor
era grande demais. Vittoria procurou ocupar-se com as imagens que inflamavam
as mentes das outras pessoas - o poder inquietante da antimatéria, a salvação do
Vaticano, o camerlengo, gestos de bravura, milagres, desprendimento.
E a palavra ainda ecoava, soando através do tumulto com uma amargura
pungente.
Robert.
Ele fora atrás dela no Castelo Sant'Angelo.
Ele a salvara.
E agora fora destruído pela criação dela.
Enquanto rezava, o cardeal Mortati conjeturava se ele também ouviria a
voz de Deus como o camerlengo tinha ouvido. Temos de acreditar em milagres
para vivenciá-los? Mortati era um homem moderno que pertencia a uma antiga
religião. Os milagres nunca tinham representado qualquer papel em sua crença.
Sua religião sem dúvida falava de milagres - chagas nas mãos, ascensão
dos mortos, marcas em sudários - e, contudo, a mente racional de Mortati sempre
explicara esses relatos como parte do mito. Eram simplesmente o resultado da
maior fraqueza do homem - sua necessidade de provas. Os milagres eram nada
mais que histórias a que nos apegávamos porque desejávamos que fossem
verdade.
No entanto...
Será que sou tão moderno que não consigo aceitar o que acabei de ver com
meus próprios olhos? Foi um milagre, não foi? Sim! Deus, ao sussurrar umas
poucas palavras no ouvido do camerlengo, interferiu e salvou Sua Igreja. Por que
seria assim tão difícil de acreditar? O que teríamos a dizer sobre Deus se Deus não
tivesse feito nada? Que o Todo-Poderoso não se importa conosco? Que Ele não
tinha poder para impedir a desgraça? Um milagre era a única resposta possível!
Mortati ajoelhou-se, reverente, e rezou pela alma do camerlengo. Deu
graças pelo jovem camarista que, apesar da pouca idade, abrira os olhos de um
velho para os milagres da fé inquestionável.
Mortati jamais poderia suspeitar, porém, até que ponto sua fé seria testada.
O silêncio na Praça de São Pedro foi quebrado por um leve ruído a
princípio, que se transformou em murmúrio. E, então, repentinamente, em
bramido. Sem aviso, a multidão gritava a uma só voz.
- Olhem! Olhem!
Mortati abriu os olhos e voltou-os para o povo. Todos apontavam para um
mesmo lugar atrás dele, na fachada da Basílica de São Pedro. Estavam pálidos.
Alguns caíram de joelhos. Alguns desmaiaram. Outros desataram a chorar.
- Olhem! Olhem!
Mortati, atarantado, acompanhou com o olhar as mãos estendidas que
mostravam o nível mais alto da basílica, o terraço no telhado onde imensas
estátuas de Cristo e dos apóstolos velavam pelo povo.
Ali, à direita de Jesus, com os braços estendidos para o mundo, estava o
camerlengo Carlo Ventresca.
CAPÍTULO 125
Robert Langdon não estava mais caindo.
Acabara-se o pavor. E a dor. E o som sibilante do vento. Havia apenas o
barulho suave da água, como se ele estivesse confortavelmente dormindo em uma
praia.
Num paradoxo de autoconsciência, Langdon pressentiu que aquilo era a
morte. Ficou contente.
Deixou-se levar pelo entorpecimento que tomava conta dele. Deixou que o
levasse para onde tivesse de ir. Sua dor e seu medo tinham sido anestesiados e ele
não os queria de volta de jeito nenhum. A última lembrança que tinha só poderia
ter sido conjurada no inferno.
Leve-me. Por favor...
Mas o barulho da água que o acalentava com uma longínqua sensação de
paz também estava trazendo-o de volta. Tentava despertá-lo de um sonho. Não!
Deixe-me! Ele não queria acordar.
Entrevia demônios que o aguardavam nas fronteiras de sua bemaventurança,
insistindo em despedaçar sua beatitude. Imagens imprecisas giravam.
Vozes gritavam. O vento agitava tudo.
Não, por favor! Quanto mais lutava, mais a fúria se infiltrava através de
sua consciência.
Então, duramente, reviveu tudo...
...
O helicóptero prosseguia em sua subida vertiginosa. Ele estava preso lá
dentro. Pela porta aberta via as luzes de Roma distanciando-se mais a cada
segundo. Seu instinto de sobrevivência dizia-lhe para lançar fora o cilindro
imediatamente. Langdon sabia que levaria menos de 20 segundos para o tubo cair
uns 800 metros . Só que cairia em uma cidade cheia de gente.
Mais alto! Mais alto!
Calculava a que altura estariam. Jatos pequenos costumavam voar a
altitudes de cerca de seis mil metros. Aquele helicóptero já devia estar a uma boa
parcela disto. Três mil metros?
Quatro? Ainda havia uma chance. Se calculasse a queda perfeitamente, o
tubo cairia só parte do caminho para a terra e explodiria a uma distância segura
acima do solo e longe do helicóptero. Langdon olhou para a cidade que se
espalhava lá embaixo.
- E se você calcular errado? - disse o camerlengo.
Langdon espantou-se. O camerlengo nem estava olhando para ele e
provavelmente lera seus pensamentos vendo seu reflexo esbranquiçado no párabrisa.
Estranhamente, o camerlengo não estava mais ocupado com os controles.
Suas mãos nem seguravam mais o manete. O helicóptero devia estar funcionando
com o piloto automático, subindo sempre. O camerlengo levantou a mão para o
teto da cabine e tirou de um compartimento de cabos uma chave, presa ali fora da
vista.
Langdon viu desnorteado o camerlengo destrancar rapidamente a caixa
metálica instalada entre os assentos. Tirou de lá um grande embrulho de náilon
preto, que colocou no assento a seu lado. As idéias de Langdon se embaralharam.
Os movimentos do camerlengo eram calmos e deliberados, como se ele já tivesse
uma solução.
- Passe o cilindro para mim - disse, com um tom de voz sereno.
Langdon não sabia mais o que pensar. Entregou o cilindro.
- Noventa segundos!
O que o camerlengo fez com a antimatéria pegou Langdon completamente
de surpresa. Segurando o cilindro com cuidado, ele o colocou dentro da caixa
metálica. Depois, fechou a tampa pesada e trancou-a.
- O que está fazendo?! - perguntou Langdon.
- Afastando de nós a tentação - e jogou a chave pela janela aberta.
A chave mergulhou na escuridão da noite e Langdon sentiu sua alma
caindo junto.
O camerlengo então pegou o embrulho de náilon e enfiou os braços nas
alças. Fechou a presilha de uma outra tira que lhe envolveu o estômago e ajustou
tudo como se fosse uma mochila. Finalmente, disse a um estupefato Robert
Langdon:
- Sinto muito. Não era para acontecer desta maneira.
Em seguida, abriu a porta e atirou-se no espaço.
A imagem queimava no inconsciente de Langdon e com ela vinha a dor.
Dor de verdade. Dor física.
Atormentando-o. Penetrante. Ele suplicou que fosse levado para que a dor
terminasse, mas, com o som da água mais alto em seus ouvidos, novas imagens
relampejavam em sua cabeça. O inferno apenas começara. Via pedaços dele,
cenas esparsas de puro pânico. Encontrava-se entre a morte e o pesadelo,
implorando para ser libertado, mas as imagens ficavam mais nítidas em sua
mente.
O tubo de antimatéria estava trancado e inacessível. A contagem de seu
relógio diminuía ao mesmo tempo que o helicóptero aumentava a altitude.
Cinqüenta segundos. Mais alto. Mais alto. Langdon agitava-se loucamente dentro
da cabine, tentando compreender o que acabara de presenciar. Quarenta e cinco
segundos. Procurou outro pára-quedas debaixo dos assentos. Quarenta segundos.
Não havia mais nenhum! Trinta e cinco segundos. Foi para a porta aberta do
helicóptero, exposto ao vento furioso, e olhou para as luzes de Roma embaixo.
Trinta e dois segundos.
Então, tomou sua decisão.
A incrível decisão.
Sem pára-quedas, Robert Langdon pulou do helicóptero. À medida que a
noite engolia seu corpo, tinha a impressão de que o helicóptero subia como um
foguete acima dele, o som de seus rotores dissipando-se no ruído ensurdecedor de
sua própria queda livre.
Na descida a prumo para terra, Langdon sentiu algo que não vivenciava
desde o tempo em que praticava salto de plataforma - a inexorável atração da
gravidade durante um mergulho. Quanto mais rápido caía, mais a terra parecia
puxá-lo, sugá-lo. Desta vez, porém, o mergulho não era de 15 metros dentro de
uma piscina, mas de milhares de metros em uma cidade - uma extensão infindável
de concreto e asfalto.
Em meio ao vento e ao desespero, a voz de Kohler ecoava do túmulo com
as palavras que ele dissera naquela mesma tarde junto ao túnel de queda livre do
CERN: Um metro quadrado de algo que ofereça resistência ao ar retarda a queda
de um corpo em quase 20 por cento. Vinte por cento, Langdon constatava, nem
chegava perto do que seria necessário para alguém sobreviver a uma queda como
aquela. De qualquer modo, mais por inércia do que por esperança, apertou nas
mãos com força a única coisa que agarrara ao pular do helicóptero. Era uma
lembrança esquisita, mas que por um instante fugaz dera-lhe alguma esperança.
A lona protetora do pára-brisa estava jogada na traseira do aparelho. Era
um retângulo que se amoldava à forma côncava do pára-brisa do helicóptero - de
uns quatro metros por dois - semelhante a um grande lençol, o mais tosca- mente
parecido com um pára-quedas que se possa imaginar. Não tinha arneses, só alças
elásticas em cada extremidade para ajustá-lo à curvatura do vidro. Langdon
pegara a lona, enfiara as mãos nas alças e saltara no vazio.
Seu último grande gesto de desafio juvenil.
Não tinha mais ilusões sobre a vida além daquele momento.
Langdon caía como uma pedra. Pés primeiro. Braços esticados para cima.
Mãos agarradas nas alças. A lona ondulava acima de sua cabeça com o formato de
um cogumelo. O vento se deslocava com grande velocidade em torno dele.
Durante a queda, deu-se a explosão no alto. Mais longe do que ele
esperava. Quase instantaneamente a onda de choque atingiu-o. O impacto
comprimiu seus pulmões. Um calor repentino espalhou-se pelo ar em torno dele.
Langdon lutou para não largar a lona. Uma parede quente veio de cima para
baixo. O topo da lona começou a arder, mas não se rompeu.
Langdon descia a toda a velocidade, no limiar de um véu ondulante de luz,
sentindo-se como um surfista que tenta sair da frente de uma onda de quilômetros
de altura. De repente, porém, o calor retrocedeu e ele voltou a mergulhar na fria
escuridão.
Por um instante, teve esperança. No momento seguinte, entretanto, a
esperança se foi, tal e qual a onda de calor. Apesar de seus braços estendidos
garantirem-lhe que a lona desacelerava sua queda, o vento ainda passava por seu
corpo com uma velocidade espantosa. Ele não tinha qualquer dúvida de que
estivesse indo depressa demais para sobreviver à queda. Seria esmagado quando
batesse no chão.
Cálculos matemáticos embaralhavam-se em sua cabeça, ele estava
entorpecido demais para organizá-los - um metro quadrado de algo que ofereça
resistência ao ar... quase 20 por cento de redução de velocidade. O máximo que
conseguia raciocinar é que a lona acima de sua cabeça era grande o bastante para
retardá-lo mais do que 20 por cento. Infelizmente, pela velocidade do vento, ele
deduzia que a lona não bastava, por melhor que fosse. Estava caindo depressa
demais, não sobreviveria ao impacto no mar de concreto que o esperava.
Lá embaixo, as luzes de Roma espalhavam-se para todos os lados. A
cidade parecia um enorme céu estrelado no qual Langdon iria cair, só
interrompido por uma faixa escura que dividia a cidade em dois - uma fita larga e
não iluminada que serpenteava por entre os pontos de luz como uma cobra gorda.
Langdon olhou para os meandros escuros ao longe.
E, como a crista de uma onda inesperada, surgiu outra vez uma esperança.
Com um vigor quase maníaco, Langdon deu puxões fortes na lona com a
mão direita. A lona agitou-se mais, ondulando, procurando o ponto à direita, de
menor resistência.
Langdon sentiu-se deslizar de lado. Puxou de novo, com mais força, sem
fazer caso da dor na palma de sua mão. A lona inflou-se e Langdon notou que seu
corpo voava para o lado. Não muito. Mas um pouco!
Olhou de novo para baixo, para a sinuosa serpente negra. Ficava bem para
a direita, mas ele ainda estava bastante alto. Será que tinha esperado demais?
Puxou com toda a força que pôde e daí em diante aceitou que estava nas mãos de
Deus. Concentrou-se na parte mais larga da serpente e, pela primeira vez em sua
vida, rezou por um milagre.
O resto não passou de uma lembrança nebulosa.
A escuridão se fechando por cima dele, os reflexos do mergulhador
voltando, o instintivo posicionamento da coluna e das pontas dos pés, os pulmões
se inflando para proteger os órgãos vitais, as pernas flexionando-se para funcionar
como um aríete e, finalmente, a gratidão pelo ondulante rio Tibre estar cheio e
revolto, o que tornava suas águas espumantes e cheias de ar três vezes mais
macias do que a água parada.
Depois houve o impacto e as trevas.
Foi o barulho trovejante da lona batendo que fez o grupo tirar os olhos da
bola de fogo no alto. O céu de Roma estivera cheio de visões naquela noite: um
helicóptero subindo em linha reta como um foguete, uma enorme explosão e agora
aquele estranho objeto que mergulhara nas águas agitadas do rio Tibre, ao largo
da pequenina ilha que havia no rio, a Isola Tiberina.
Desde o tempo em que a ilha fora usada para manter doentes de quarentena
durante a praga que assolou Roma em 1656, dizia-se que possuía propriedades
curativas místicas. Por esta razão, mais tarde fora ali instalado o Hospital Tiberina
de Roma.
O corpo estava bastante machucado quando foi puxado para a margem. O
homem ainda tinha uma leve pulsação, o que era espantoso, pensaram.
Especularam se não teria sido a lendária reputação da Isola Tiberina para a cura
que de alguma forma teria mantido o coração dele batendo. Minutos depois,
quando o homem começou a tossir e a lentamente recuperar a consciência, o
grupo concluiu que a ilha devia ser mesmo mágica.
CAPÍTULO 126
O cardeal Mortati sabia que não existiam palavras em nenhuma língua
capazes de acrescentar o que quer que fosse ao mistério daquele momento. O
silêncio da visão no alto da Praça de São Pedro era mais eloqüente do que um
coro de anjos.
Quando levantou os olhos para o camerlengo Ventresca, Mortati sentiu um
choque paralisante entre seu coração e sua mente. A visão parecia real, tangível.
E, no entanto, como era possível?
Todos tinham visto o camerlengo entrar no helicóptero. Todos tinham
testemunhado a presença da bola de luz no céu. E agora, sem que se soubesse
como, o camerlengo estava no terraço da basílica. Transportado por anjos?
Reencarnado pela mão de Deus?
Isso é impossível...
O coração de Mortati queria acreditar, mas sua mente exigia razões. E os
cardeais que o cercavam, evidentemente vendo o mesmo que ele via, olhavam
para cima imóveis, deslumbrados.
Era o camerlengo. Sem sombra de dúvida. Mas ele parecia de certa forma
diferente. Divino.
Como se tivesse sido purificado. Um espírito? Um homem? Sua carne
branca brilhava à luz dos refletores com uma leveza incorpórea.
Na praça havia choro, vivas, aplausos espontâneos. Um grupo de freiras
caiu de joelhos e entoou saetas. Um ruído ritmado elevou-se da multidão. Súbito,
a praça inteira repetia o nome do camerlengo. Os cardeais, alguns com lágrimas
rolando nas faces, uniram-se ao povo. Mortati olhou em torno de si e tentou
compreender. Isto realmente está acontecendo?
O camerlengo Carlo Ventresca, do terraço no telhado da Basílica de São
Pedro, contemplava os milhares de pessoas voltadas para ele. Estava acordado ou
sonhando? Sentia-se transformado, sobrenatural. Pensava se teria sido seu corpo
ou somente seu espírito que tinha descido flutuando do céu para a maciez e a
penumbra dos Jardins do Vaticano, pousando como um anjo silencioso nos
gramados desertos, seu pára-quedas negro protegido da loucura pela sombra
imponente da Basílica de São Pedro. Pensava se teria sido seu corpo ou seu
espírito que tivera forças para subir a antiga Escadaria dos Medalhões até o
terraço onde agora se encontrava.
Sentia-se leve como um fantasma. Embora as pessoas lá embaixo
estivessem entoando seu nome, sabia que não era ele quem estavam saudando.
Saudavam por um mero impulso de alegria, a mesma alegria que ele sentia todos
os dias de sua vida quando meditava sobre o Todo-Poderoso. Vivenciavam o que
todos sempre tinham desejado: uma garantia do alto, uma comprovação do poder
do Criador.
O camerlengo Ventresca rezara toda a sua vida por esse momento e, ainda
assim, nem ele conseguia acreditar inteiramente que Deus encontrara uma forma
para torná-lo manifesto. Queria gritar para as pessoas. Seu Deus é um Deus vivo!
Atentem para todos os milagres que as cercam!
Permaneceu um pouco ali, entorpecido e ao mesmo tempo sentindo tudo
com mais intensidade do que jamais sentira. Quando afinal a disposição de
espírito o fez mover-se, curvou a cabeça e recuou, afastando-se da beirada do
terraço.
Sozinho, ajoelhou-se e rezou.
CAPÍTULO 127
Imagens imprecisas rodeavam-no, indo e vindo. Os olhos de Langdon
lentamente começaram a vê-las em foco. Suas pernas doíam e seu corpo parecia
ter sido atropelado por um caminhão. Estava deitado de lado no chão. Algo
cheirava mal, como bílis. Ainda ouvia o ruído incessante de água. Não lhe soava
tranqüilo como antes. Havia outros sons - gente falando perto dele. Entreviu
vultos brancos, embaçados. Todos estavam vestidos de branco? Langdon concluiu
que devia estar em um hospício ou então no céu.
Pelo ardor em sua garganta, achou que não poderia ser o céu.
- Ele parou de vomitar - disse um homem em italiano. - Virem-no. - A voz
era firme e profissional.
Langdon sentiu mãos virarem seu corpo devagar para deitá-lo de costas.
Sua cabeça girava. Tentou sentar-se, mas as mãos delicadamente o forçaram a
permanecer deitado. Seu corpo submeteu-se. Então, sentiu alguém examinando
seus bolsos, tirando coisas de dentro deles.
Depois, perdeu por completo os sentidos.
O doutor Jacobus não era um homem religioso. A medicina fizera-o deixar
de ser já fazia muito tempo.
Contudo, os acontecimentos daquela noite na Cidade do Vaticano tinham
posto em teste sua lógica sistemática. Agora caem corpos do céu?
O doutor Jacobus tomou o pulso do homem sujo e molhado que tinham
retirado do rio Tibre. O médico admitiu que o próprio Deus entregara em mãos e
em segurança aquele homem. O impacto com a água pusera-o inconsciente e, se
não fosse Jacobus e sua equipe estarem na beira do rio assistindo ao espetáculo no
céu, essa alma caída não teria sido notada e com certeza teria se afogado.
- É americano - disse uma enfermeira, revirando a carteira do homem
depois de o terem levado para terra firme.
Americano? Os romanos costumavam caçoar que havia tantos americanos
em Roma que os hambúrgueres deveriam passar a ser a comida oficial italiana.
Mas americanos caindo do céu?
Jacobus piscou a luz de uma pequena lanterna nos olhos do homem para
testar a dilatação da pupila.
- Senhor? Está ouvindo? Sabe onde está?
O homem estava inconsciente outra vez. Jacobus não se surpreendeu.
Vomitara muita água depois que Jacobus lhe aplicara a ressuscitação
cardiorrespiratória.
- Si chiama Robert Langdon - disse a enfermeira, lendo a carteira de
motorista da vítima.
Todo o grupo reunido no cais parou de repente.
- Impossibile! - declarou Jacobus.
Robert Langdon era o homem da televisão - o professor americano que
vinha ajudando o Vaticano.
Jacobus vira o senhor Langdon, poucos minutos antes, entrar em um
helicóptero na Praça de São Pedro e voar quilômetros pelo ar. Jacobus e os outros
tinham saído correndo para o cais para ver a explosão da antimatéria - uma
fantástica esfera de luz, diferente de tudo o que já tinham visto. Como poderia ser
a mesma pessoa?
- É ele mesmo! - exclamou a enfermeira, afastando-lhe da testa o cabelo
molhado. - Estou reconhecendo o casaco de lã dele!
Subitamente, alguém gritou da entrada do hospital. Era uma das pacientes.
A mulher berrava, parecia enlouquecida, segurando seu rádio portátil no braço
estendido para o alto e dando graças a Deus. Dizia que o camerlengo Ventresca
acabara de aparecer miraculosamente no telhado do Vaticano.
O doutor Jacobus decidiu que, quando seu plantão terminasse, às 8h, ele
iria direto para a igreja.
As luzes acima da cabeça de Langdon eram mais brilhantes agora, frias.
Ele se encontrava em uma espécie de mesa de exame. Sentia o cheiro de
desinfetantes, de estranhos produtos químicos. Alguém lhe dera uma injeção e
tinham tirado suas roupas.
Decididamente, não são ciganos, concluiu ele em seu delírio
semiconsciente. Extraterrenos, talvez?
Já ouvira falar de coisas assim. Felizmente, esses seres não lhe fariam mal.
Só queriam os seus...
- De jeito nenhum! - Langdon sentou-se abruptamente, abrindo os olhos.
- Attento! - gritou uma das criaturas, segurando-o. Usava um pequeno
crachá onde estava escrito "Doutor Jacobus" Parecia bastante humano.
Langdon gaguejou:
- Eu... pensei...
- O senhor está em um hospital.
A névoa começou a se dissipar. Langdon sentiu uma onda de alívio.
Detestava hospitais, mas decerto menos do que extraterrenos prestes a extrair seus
testículos.
- Meu nome é doutor Jacobus - disse o homem. Explicou o que acabara de
acontecer. - Tem muita sorte por estar vivo.
Langdon não se sentia muito sortudo. Mal concatenava suas próprias
lembranças - o helicóptero, o camerlengo. Seu corpo doía todo. Deram-lhe um
pouco de água e fizeram um curativo na palma de sua mão.
- Onde está a minha roupa? - perguntou. Estava vestido com uma túnica de
papel.
Uma das enfermeiras mostrou-lhe um amontoado de pedaços rasgados de
tecido cáqui e lã tweed pingando de cima de um balcão.
- Estavam encharcadas. Tivemos de cortar tudo para tirá-las do senhor.
Langdon olhou para seu tweed Harris em frangalhos e franziu a testa.
- O senhor tinha uma porção de lenços de papel em seu bolso - disse a
enfermeira.
Só então Langdon notou os fragmentos de pergaminho espalhados pelo
forro do paletó. O fólio do Diagramma de Galileu. O último exemplar do mundo
se dissolvera. Ele estava abalado demais para saber como reagir. Ficou parado,
apenas, olhando fixo para o balcão.
- Conseguimos salvar seus objetos pessoais - ela lhe estendeu uma caixa
plástica. - Carteira, câmera portátil de vídeo e caneta. Sequei a câmera o melhor
que pude.
- Não tenho nenhuma câmera de vídeo.
A enfermeira levantou as sobrancelhas e deu-lhe a caixa. Langdon olhou
para os objetos que continha.
Junto com sua carteira e sua caneta havia uma pequena câmera de vídeo
Sony. Agora se lembrava. Kohler entregara-a a ele, pedindo que a mostrasse à
imprensa.
- Nós a encontramos em seu bolso. Acho que o senhor vai precisar de uma
nova. - A enfermeira abriu a tela de duas polegadas na parte de trás da câmera.
- A tela está rachada. - Então, seu rosto se animou. - Mas o som ainda
funciona! Mais ou menos. - Encostou a máquina no ouvido. - Fica repetindo a
mesma coisa sem parar. - Escutou mais um pouco e depois ficou séria,
entregando-a a Langdon. - São dois sujeitos discutindo, acho.
Intrigado, Langdon pegou a câmera e aproximou-a do ouvido. As vozes
soavam anasaladas, metálicas, mas eram discerníveis. Uma, perto. A outra, longe.
Langdon reconheceu ambas.
Sentado ali, vestido com a túnica descartável do hospital, Langdon escutou
espantado toda a conversa.
Apesar de não poder ver o que estava acontecendo, deu graças por ter sido
poupado da parte visual ao ouvir o final chocante.
Meu Deus!
Com a conversa recomeçando do início, Langdon abaixou a câmera de seu
ouvido e continuou sentado, impressionado, estupefato. A antimatéria, o
helicóptero... A mente de Langdon começou a funcionar.
Então, isso quer dizer que...
Teve vontade de vomitar outra vez. Agitado, com uma raiva crescente, ele
desceu da mesa e ficou de pé, as pernas bambas.
- Senhor Langdon! - disse o médico, tentando impedi-lo.
- Preciso de umas roupas - pediu Langdon, sentindo a corrente de ar em seu
traseiro por causa da túnica aberta atrás.
- Mas o senhor precisa descansar.
- Estou saindo. Agora. Preciso de roupa.
- Mas o senhor...
- Agora!
Todos se entreolharam, desconcertados.
- Não temos roupas - disse o médico. - Talvez amanhã algum amigo seu
possa trazê-las para o senhor.
Langdon respirou fundo com uma expressão paciente e encarou o médico.
- Doutor Jacobus, vou sair por aquela porta agora mesmo. Preciso de
roupas. Vou para a Cidade do Vaticano. Ninguém pode ir para o Vaticano de
bunda de fora. Deu para entender?
O doutor Jacobus engoliu em seco.
- Dêem-lhe alguma coisa para vestir.
Quando Langdon saiu mancando do Hospital Tiberina, sentia-se como um
lobinho, um escoteiro-mirim, só que crescido. Usava um macacão azul de
paramédico com zíper na frente, enfeitado com distintivos de pano que
aparentemente indicavam as numerosas qualificações do dono.
A mulher que o acompanhava era robusta e usava um macacão igual ao
dele. O médico garantira a Langdon que ela o levaria ao Vaticano em tempo
recorde.
- Molto traffico - disse Langdon, lembrando-lhe que a área em torno do
Vaticano estaria congestionada por carros e pessoas.
A mulher não se mostrou preocupada. Apontou orgulhosa para um dos seus
distintivos.
- Sono conducente di ambulanza.
- Ambulanza? - Então estava explicado. Langdon achou que um passeio de
ambulância viria a calhar.
A mulher conduziu-o para a parte lateral do edifício. Em um aforamento de
terra acima da água havia um deque de cimento onde o veículo a esperava.
Quando Langdon o viu, parou. Era um velho helicóptero de transporte médico. Na
carcaça estava escrito Aero-Ambulanza.
Ele baixou a cabeça.
A mulher sorriu.
- Voar Cidade do Vaticano. Muito rápido.
CAPÍTULO 128
O Colégio dos Cardeais estava em ebulição ao voltar para a Capela Sistina.
Mortati, ao contrário, sentia crescer dentro de si uma confusão tão grande que
quase poderia levantá-lo do chão e carregá-lo. Acreditava nos antigos milagres
das Escrituras e, todavia, o que acabara de testemunhar era algo que não
conseguia compreender. Depois de uma vida inteira de devoção, 79 anos, Mortati
sabia que tais acontecimentos deveriam despertar nele uma piedosa exuberância,
uma fé ardorosa e viva. No entanto, só sentia um constrangimento espectral e cada
vez maior. Havia algo errado.
- Signore Mortati! - gritou um guarda suíço aproximando-se às pressas.
- Fomos ao telhado da basílica como o senhor pediu. O camerlengo é de
carne e osso! É um homem de verdade! Não é um espírito! É exatamente a pessoa
que conhecemos!
- Ele falou com vocês?
- Está ajoelhado rezando em silêncio! Ficamos com medo de tocar nele!
Mortati estava perdido.
- Digam a ele que seus cardeais estão esperando.
- Signore, por ele ser mesmo um homem... - o guarda hesitou.
- O que é?
- O peito dele... ele está queimado. Podemos fazer um curativo na ferida?
Ele deve estar sentindo dor.
Mortati refletiu. Nada em todo o seu tempo de serviço à Igreja o preparara
para aquela situação.
- Ele é um homem, portanto tratem dele como se trata de um homem.
Lavem-no. Cuidem de suas feridas.
Dêem-lhe roupas limpas. Esperamos por ele na Capela Sistina.
O guarda saiu correndo.
Mortati seguiu para a capela. O resto dos cardeais já se encontrava lá
dentro. Caminhando pelo corredor, viu Vittoria Vetra sozinha, com ar abatido,
sentada em um banco ao pé da Escadaria Real. A dor e a solidão da perda eram
visíveis no rosto dela e Mortati teve vontade de ir ao seu encontro, mas sabia que
isso teria de esperar. Tinha trabalho a fazer, embora não tivesse a menor idéia de
qual pudesse ser esse trabalho.
Mortati entrou na capela. Havia uma excitação ruidosa no ambiente.
Fechou a porta. Que Deus me ajude.
A Aero-Ambulanza de dois rotores do Hospital Tiberina contornava a
Cidade do Vaticano por trás, e Langdon cerrava os dentes, jurando por Deus que
aquela seria a última viagem de helicóptero de sua vida.
Depois de convencer a mulher que fazia as vezes de piloto de que as regras
que regiam o espaço aéreo do Vaticano eram o que menos preocupava a cidade do
Papa naquele momento, ele a guiou, sem serem vistos, por cima do muro de trás,
até a aterrissagem no heliporto do Vaticano.
- Grazie - disse ele, descendo penosamente. Ela lhe soprou um beijo e
decolou rápido, desaparecendo dentro da noite na direção de onde viera.
Langdon respirou fundo, tentou clarear a mente, procurando entender o que
estava prestes a fazer. Com a câmera na mão, embarcou no mesmo carrinho de
golfe em que andara mais cedo naquele mesmo dia. Não tinha sido recarregado e
o medidor indicava que a bateria estava no final. Ele dirigiu com os faróis
apagados para economizar energia.
Também preferia que ninguém o visse chegar.
Nos fundos da Capela Sistina, o cardeal Mortati parou atordoado diante do
pandemônio que se formara.
- Foi um milagre! - um dos cardeais gritava. - Foi obra de Deus!
- Sim! - exclamavam outros. - Deus manifestou sua vontade!
- O camerlengo será nosso Papa! - gritou outro. - Ele não é cardeal, mas
Deus enviou um sinal milagroso!
- Sim! - concordou alguém. - As leis do conclave são leis do homem. A
vontade de Deus está diante de nós! Solicito uma eleição imediatamente!
- Uma eleição? - perguntou Mortati, caminhando na direção deles. - Acho
que esta é minha função.
Todos se viraram.
Mortati notou que os cardeais o examinavam. Pareciam distantes,
desnorteados, ofendidos com a sua sobriedade. Mortati desejava muito que seu
coração também fosse arrebatado por aquela miraculosa exaltação que via nos
rostos que o cercavam. Mas não conseguia. Sentia uma dor inexplicável em seu
íntimo, uma dolorosa tristeza que não sabia definir. Havia jurado dirigir aqueles
procedimentos com pureza de alma e sua hesitação era algo que não podia negar.
- Meus amigos - disse Mortati, subindo ao altar. Quase não reconhecia a
própria voz. - Acho que até o fim dos meus dias vou debater comigo mesmo o
significado daquilo que testemunhamos hoje. E, no entanto, o que sugerem com
relação ao camerlengo não pode ser de jeito algum a vontade de Deus.
Fez-se silêncio na capela.
- Como pode dizer isso? - perguntou afinal um dos cardeais. - O
camerlengo salvou a Igreja. Deus falou diretamente ao camerlengo! O homem
sobreviveu à própria morte! De que outro sinal precisamos mais?
- O camerlengo virá ao nosso encontro aqui - disse Mortati. - Vamos
esperar. Vamos escutá-lo antes de fazer uma eleição. Pode haver uma explicação.
- Uma explicação?
- Como seu Grande Eleitor, jurei preservar as leis do conclave. Todos sem
dúvida estão cientes de que, pela Santa Lei, o camerlengo é inelegível para o
papado. Ele não é cardeal. É um padre, um camarista. Há também a questão de
sua idade inadequada. - Mortati notou olhares mais duros. - Ao consentir que se
realizasse uma eleição, eu estaria permitindo que os senhores aprovassem um
homem que a Lei Vaticana considera inelegível. Estaria pedindo a cada um que
quebrasse um juramento sagrado.
- Mas o que aconteceu aqui esta noite - alguém disse, titubeante -
certamente transcende as nossas leis!
- Será mesmo? - Mortati replicou, cheio de autoridade, sem ao menos saber
de onde vinham suas palavras.
- Será que é a vontade de Deus que deixemos de lado as regras da Igreja?
Será que Deus quer que abandonemos a razão e nos entreguemos ao delírio?
- Mas o senhor não viu o que nós vimos? - um outro o desafiou, irritado.
- Como pode se atrever a questionar um poder como aquele?
A voz de Mortati projetou-se então com uma ressonância que ele jamais
conhecera.
- Não estou questionando o poder de Deus! Foi Deus quem nos concedeu
razão e circunspeção! É a Deus que servimos exercendo a prudência!
CAPÍTULO 129
Sentada em um banco junto à base da Escadaria Real, no corredor do lado
de fora da Capela Sistina, Vittoria Vetra parecia entorpecida. Quando avistou a
figura que entrava pela porta dos fundos, pensou que estivesse vendo outro
espírito. Ele estava enfaixado, mancando e vestido com uma espécie de uniforme
médico.
Ela se levantou, incapaz de acreditar na visão.
- Ro... bert?
Ele nem respondeu. Caminhou direto para ela e a envolveu em seus braços.
Apertou seus lábios contra os dela em um beijo impulsivo, longamente desejado,
cheio de gratidão.
Vittoria sentiu as lágrimas chegando.
- Oh, Deus.., oh, obrigada, meu Deus...
Ele a beijou de novo, um beijo mais apaixonado, e ela comprimiu seu
corpo contra o dele, perdendo-se no abraço. Seus corpos se uniram como se já se
conhecessem há anos. Ela esqueceu o medo e a dor e fechou os olhos, a alma leve,
naquele momento perfeito.
- É a vontade de Deus! - alguém gritava, a voz ecoando na Capela Sistina.
- Quem mais além do escolhido poderia ter sobrevivido àquela explosão
diabólica?
- Eu - uma voz reverberou do fundo da capela.
Mortati e os outros viraram-se espantados para a figura maltratada que se
aproximava pelo centro da nave.
- Senhor Langdon?!
Sem uma palavra, Langdon encaminhou-se devagar para a frente da capela.
Vittoria Vetra entrou também.
Logo depois, dois guardas surgiram apressados empurrando um carrinho
com uma grande televisão em cima. Langdon esperou enquanto eles ligavam o
aparelho, a tela voltada para os cardeais. Então, Langdon fez sinal para que os
guardas se retirassem. Eles o fizeram, fechando as portas atrás de si. Agora era
entre Langdon, Vittoria e os cardeais. Langdon conectou a câmera Sony à
televisão e apertou o botão play.
A tela se acendeu.
A cena que se materializou diante dos cardeais passava-se no escritório do
Papa. O vídeo fora filmado de forma desajeitada, como se a câmera estivesse
escondida. Descentrado na tela, o camerlengo aparecia meio na penumbra, em
frente à lareira acesa. Embora parecesse estar falando diretamente para a câmera,
logo ficou evidente que estava falando com alguém - a pessoa que filmava.
Langdon disse aos cardeais que o vídeo fora filmado por Maximilian Kohler, o
diretor do CERN. Apenas uma hora antes, Kohler filmara secreta- mente seu
encontro com o camerlengo usando a minúscula câmera de vídeo que trazia
disfarçada sob um dos braços de sua cadeira de rodas.
Mortati e os cardeais assistiam a tudo perplexos. A conversa já começara,
mas Langdon não se deu ao trabalho de rebobinar a fita. O que ele queria que os
cardeais vissem ainda estava por vir....
- Leonardo Vetra mantinha um diário? - dizia o camerlengo. - Imagino que
isso seja uma boa notícia para o CERN. Se os diários contêm seus processos para
criar antimatéria...
- Não contêm - disse Kohler. - Vai ser um alívio para o senhor saber que
esses processos morreram com Leonardo. No entanto, os diários falam de um
assunto diferente. Do senhor.
O camerlengo pareceu perturbar-se.
- Não compreendo.
- Descrevem um encontro que Leonardo teve no mês passado. Com o
senhor.
O camerlengo hesitou, depois olhou para a porta.
- Rocher não deveria ter autorizado sua entrada sem me consultar. Como
chegou aqui?
- Rocher sabe da verdade. Telefonei antes de vir e contei a ele o que o
senhor fez.
- O que eu fiz? Seja qual for a história que contou a ele, Rocher é da
Guarda Suíça e fiel demais a esta Igreja, não acreditaria mais em um cientista
amargo do que em seu camerlengo.
- Na realidade, ele é fiel demais para não acreditar. É tão fiel que, apesar da
prova de que um dos seus leais guardas traiu a Igreja, ele se recusou a aceitar o
fato. O dia inteiro vem procurando outra explicação.
- Que o senhor deu a ele.
- A verdade. Por mais chocante que fosse.
- Se Rocher tivesse acreditado no senhor, teria me prendido.
- Não. Eu não deixei. Ofereci a ele o meu silêncio em troca deste encontro.
O camerlengo deu uma risada estranha.
- O senhor pretende chantagear a Igreja com uma história em que ninguém
vai acreditar?
- Não preciso fazer chantagem nenhuma. Quero simplesmente ouvir a
verdade de sua boca. Leonardo Vetra era meu amigo.
O camerlengo nada disse. Limitou-se a olhar para Kohler.
- Vejamos, então - começou Kohler, áspero. - Há cerca de um mês,
Leonardo Vetra entrou em contato com o senhor solicitando uma audiência
urgente com o Papa. Uma audiência que o senhor concedeu porque o Papa
admirava o trabalho de Leonardo e porque Leonardo disse que era uma
emergência.
O camerlengo voltou-se para o fogo da lareira. Não disse nada.
- Leonardo veio ao Vaticano em absoluto segredo. Estava traindo a
confiança de sua filha ao vir aqui, um fato que o perturbava grandemente, mas ele
achava que não tinha opção. Suas pesquisas haviam criado um profundo conflito
em seu íntimo e ele sentia necessidade de orientação espiritual da Igreja. Em um
encontro particular, contou ao Papa que havia feito uma descoberta científica com
profundas implicações religiosas. Havia provado que o Gênese era fisicamente
possível e que intensas fontes de energia, que Vetra chamava de Deus, poderiam
reproduzir o momento da Criação.
Silêncio.
- O Papa ficou entusiasmado - Kohler continuou. - Queria que Leonardo
divulgasse a experiência. Sua Santidade achava que essa descoberta poderia
começar a aproximar a ciência da religião, um dos sonhos da vida do Papa. Então,
Leonardo explicou ao senhor o aspecto negativo da descoberta, o motivo pelo
qual ele solicitara a orientação da Igreja. Parecia que sua experiência da Criação,
exatamente como a Bíblia relata, produzia tudo aos pares. Opostos. Luz e trevas.
Além do processo de criação da matéria, Vetra descobriu o da criação da
antimatéria. Devo prosseguir?
O camerlengo manteve-se calado. Inclinou-se para atiçar as brasas da
lareira.
- Depois que Leonardo Vetra veio aqui - disse Kohler -, o senhor foi ao
CERN ver o trabalho dele. Os diários de Leonardo dizem que o senhor fez uma
visita pessoal ao laboratório dele.
O camerlengo levantou a cabeça.
Kohler foi em frente.
- O Papa não poderia viajar sem atrair a atenção da mídia, por isso mandou
o senhor. Leonardo levou-o para uma excursão secreta pelo laboratório. Fez uma
demonstração de aniquilamento de antimatéria, o Big-
Bang, o poder da Criação. Também lhe mostrou um grande espécime que
mantinha escondido e que provava que seu novo método poderia produzir
antimatéria em larga escala. O senhor ficou assombrado.
Voltou para a Cidade do Vaticano para contar ao Papa o que tinha
presenciado.
O camerlengo suspirou.
- E é isso que o incomoda? Que eu tenha respeitado a confiança de
Leonardo ao fingir perante o mundo esta noite que nada sabia sobre a antimatéria?
- Não! O que me incomoda é que Leonardo Vetra praticamente provou a
existência de seu Deus e o senhor fez com que ele fosse assassinado!
O camerlengo voltou-se para ele afinal, o rosto impenetrável.
O único som era o estalar do fogo.
Súbito, a câmera balançou e o braço de Kohler apareceu no
enquadramento. Ele se curvou para a frente, tentando alcançar algo preso debaixo
de sua cadeira de rodas. Quando endireitou o corpo, segurava uma pistola. O
ângulo da câmera era arrepiante: visto por trás, o braço estendido apontava o
revólver direto para o camerlengo.
Kohler disse:
- Confesse os seus pecados, padre. Agora.
O camerlengo parecia assustado.
- Não vai sair vivo daqui.
- A morte seria um alívio bem-vindo para o sofrimento pelo qual sua
religião me faz passar desde que eu era criança - Kohler segurava o revólver com
as duas mãos agora. - Estou lhe dando uma chance. Confesse os seus pecados ou
morra agora mesmo.
O camerlengo olhou de soslaio para a porta.
- Rocher está lá fora - desafiou-o Kohler. - Ele também está preparado para
matá-lo.
- Rocher jurou proteger a Ig...
- Rocher deixou que eu entrasse aqui. Armado. Está enojado com as suas
mentiras. O senhor tem uma única opção. Confessar-se a mim. Tenho de ouvir
tudo de sua própria boca.
O camerlengo hesitou.
Kohler levantou a arma.
- Realmente duvida que eu vá matá-lo?
- Não importa o que lhe conte - disse o camerlengo - um homem como o
senhor nunca entenderia.
- Experimente.
O camerlengo permaneceu imóvel por um instante, uma silhueta dominante
em meio à vaga luminosidade do fogo. Quando falou, suas palavras ecoaram com
uma dignidade mais apropriada a uma gloriosa narrativa de altruísmo do que a
uma confissão.
- Desde o princípio dos tempos - disse o camerlengo -, a Igreja lutou contra
os inimigos de Deus. Às vezes com palavras. Outras vezes com espadas. E sempre
sobrevivemos.
O camerlengo irradiava convicção.
- Os demônios do passado - continuou ele - eram demônios de fogo e
abominação. Esses eram inimigos contra os quais podíamos lutar, inimigos que
inspiravam medo. Mas Satã é astuto. Com o passar do tempo, abandonou sua
fisionomia diabólica e assumiu uma nova face: a face da pura razão. Transparente
e insidiosa, mas também sem alma. - A voz do camerlengo enraiveceu-se de modo
inesperado, numa transição quase insana. - Diga-me, senhor Kohler, como pode a
Igreja condenar o que faz sentido, o que é lógico para nossas mentes? Como
podemos censurar o que hoje é o próprio fundamento de nossa sociedade? Cada
vez que a Igreja levanta a voz para fazer uma advertência, vocês gritam mais alto
e nos chamam de ignorantes. De paranóicos. De controladores! E assim a sua
maldade cresce. Encoberta por um véu de virtuoso intelectualismo. Espalha-se
como um câncer. Santificada pelos milagres de sua própria tecnologia.
Deificando-se a si mesma! Até se dissipar a nossa desconfiança e passarmos a
achar que é pura bondade. A ciência chegou para nos salvar de nossas doenças, de
nossa fome e de nosso sofrimento! Eis a ciência, o novo Deus de infinitos
milagres, onipotente e benevolente! Ignorem as armas e o caos. Esqueçam a
solidão dilacerada e os perigos intermináveis! A ciência está aqui! - O camerlengo
deu um passo na direção do revólver. - Mas eu vi o rosto de Satã à espreita, vi o
perigo.
- O que é que está dizendo! A ciência de Vetra praticamente provou a
existência de seu Deus! Ele era seu aliado!
- Aliado? A ciência e a religião não andam juntas nisso! Não buscamos o
mesmo Deus, você e eu! Quem é seu Deus? Um Deus de prótons, massa e cargas
de partículas? Como o seu Deus inspira seus fiéis?
Como é que o seu Deus chega ao coração do homem para lembrar-lhe que
ele é explicável por um poder maior? Ou que ele é responsável por seus
semelhantes? Vetra estava desencaminhado. Seu trabalho não era religioso, era
sacrílego! O homem não pode colocar a Criação de Deus dentro de um tubo de
ensaio e exibi-la para o mundo! Isto não glorifica Deus, isto desmerece Deus!
O camerlengo, a essa altura, apertava o próprio corpo com as mãos em
garra, a voz enlouquecida.
- E por isso mandou matar Leonardo Vetra!
- Pela Igreja! Por toda a humanidade! Que loucura era aquela! O homem
não está preparado para ter o poder de Deus em suas mãos. Deus em um tubo de
ensaio? Uma gotinha de líquido que pode desintegrar uma cidade inteira? Ele
tinha de ser detido!
O camerlengo calou-se abruptamente. Parecia estar considerando suas
opções.
As mãos de Kohler levantaram o revólver.
- Você confessou. Não tem mais escapatória.
O camerlengo riu um riso triste.
- Então não sabe que confessar os pecados é a forma de escapar? - Olhou
para a porta. - Quando Deus está do nosso lado, temos opções que um homem
como você não é capaz de compreender.
Com essas palavras ainda ressoando no ar, o camerlengo agarrou a sua
batina pela gola e rasgou-a com violência, deixando seu peito nu.
Kohler fez um movimento brusco, obviamente espantado.
- O que está fazendo?
O camerlengo não respondeu. Deu um passo para trás, para junto da
lareira, e tirou um objeto das brasas reluzentes.
- Pare! - ordenou Kohler, a arma ainda levantada. - O que está fazendo?
Quando o camerlengo se virou, segurava um ferro de marcar em brasa. O
diamante Illuminati. O homem tinha uma expressão desvairada.
- Pretendia fazer isto sozinho - falava com uma intensidade selvagem -,
mas agora vejo que Deus queria que você estivesse aqui. Você é minha salvação.
Antes que Kohler pudesse esboçar qualquer reação, o camerlengo fechou
os olhos, arqueou as costas e comprimiu o ferro em brasa no centro do próprio
peito. Sua carne chiou.
- Mãe Maria! Mãe Bendita! Olhe seu filho! - e gritou alto de dor. Kohler
surgiu no enquadramento mal se equilibrando nas pernas, o revólver agitando-se
descontroladamente.
O camerlengo gritou mais alto, o corpo oscilando. Ele lançou o ferro de
marcar aos pés de Kohler e caiu no chão, contorcendo-se em agonia.
O que aconteceu em seguida foi difícil de distinguir.
Houve um grande tremor na imagem da tela quando a Guarda Suíça
irrompeu na sala. Ouviu-se o som de tiroteio. Kohler dobrou os braços no peito,
foi lançado para trás, sangrando, e caiu da cadeira de rodas.
- Não! - gritou Rocher, tentando impedir seus guardas de atirarem em
Kohler.
O camerlengo, ainda se contorcendo no chão, girou o corpo e apontou
freneticamente para Rocher:
- Illuminatus!
- Canalha! - berrou Rocher, correndo para ele. - Seu canalha santarrão...
Chartrand abateu-o com três tiros. Rocher caiu morto no chão da sala.
Então, os guardas correram para o camerlengo ferido, rodeando-o. Ao
mesmo tempo que eles se reuniam, o vídeo pegava o rosto estarrecido de Robert
Langdon, ajoelhado perto da cadeira de rodas, olhando para o ferro de marcar.
Depois, a imagem sacudiu fortemente. Kohler recuperara a consciência e estava
soltando a pequenina câmera do suporte localizado debaixo do braço de sua
cadeira. Em seguida, tentava estender a mão com a câmera para Langdon.
- Ent. . .tregue... - arquejou Kohler -, en. . .tregue isto... à imprensa.
E a tela ficou branca.
CAPÍTULO 130
O camerlengo começou a sentir a névoa de exaltação e de adrenalina se
dissipar. Enquanto a Guarda Suíça o ajudava a descer a Escadaria Real para ir
para a Capela Sistina, o camerlengo escutou cânticos na Praça de
São Pedro e soube que montanhas haviam sido removidas.
Grazie Dio.
Ele rezara pedindo forças e Deus as concedera. Nos momentos em que
duvidara, Deus falara. Tua missão é Santa, Deus dissera. Dar-te-ei forças. Mesmo
com a força de Deus, o camerlengo sentira medo, questionara a correção de seu
caminho.
Se não fores tu, Deus o desafiara, QUEM o fará?
Se não for agora, QUANDO será?
Se não for assim, COMO será?
Jesus, Deus lembra-lhe, salvara-os todos, salvara-os da própria apatia. Com
dois atos, Jesus abrira-lhes os olhos. Horror e Esperança. A crucificação e a
ressurreição. Ele mudara o mundo.
Mas isto acontecera havia milênios. O tempo corroera o milagre. As
pessoas haviam se esquecido. Tinham se voltado para os falsos ídolos -
tecnodivindades e milagres da mente. E quanto aos milagres do coração?
O camerlengo sempre rezava para que Deus lhe mostrasse como fazer os
homens acreditarem outra vez.
Mas Deus permanecia em silêncio. Foi somente no momento mais sombrio
que Deus veio ao encontro do camerlengo. Ah, que noite terrível!
O camerlengo ainda se lembrava de estar deitado no chão com a roupa de
dormir em frangalhos cravando as unhas na própria carne, tentando purgar sua
alma do sofrimento provocado por uma verdade infame que descobrira pouco
antes. Não pode ser!, gritara. Entretanto, sabia que era. O engano queimava-o
como o fogo do inferno. O bispo que o acolhera, o homem que fora como um pai
para ele, o religioso ao lado de quem o camerlengo sempre ficara enquanto ele
subia até chegar ao papado, era uma fraude. Um pecador comum. Mentindo para o
mundo sobre um ato tão traiçoeiro em sua essência que o camerlengo duvidava
que o próprio Deus pudesse perdoá-lo.
- Seu juramento! - o camerlengo gritara para o Papa. - O senhor quebrou
seu juramento a Deus! Logo o senhor, entre todos os homens!
O Papa tentou se explicar, mas o camerlengo não lhe deu ouvidos. Saiu
correndo, cambaleando às cegas pelos corredores, vomitando, rasgando a própria
pele até dar por si ensangüentado e sozinho, caído no chão de terra diante da
tumba de São Pedro. Mãe Maria, o que faço agora? Foi naquele momento de dor e
traição, quando o camerlengo estava prostrado na Necrópole, rezando para Deus
levá-lo deste mundo sem fé, que Ele veio.
A voz em sua cabeça ressoou como um trovão.
Juraste servir teu Deus?
- Sim! - bradou o camerlengo.
Morrerias por teu Deus?
- Sim! Leve-me agora!
Morrerias por tua Igreja?
- Sim! Liberte-me, por favor!
Mas morrerias pela humanidade?
No silêncio que se seguiu, o camerlengo sentiu-se despencando no abismo.
Cada vez mais fundo, cada vez mais depressa, sem controle. No entanto, sabia a
resposta. Sempre soubera.
- Sim! - gritou em meio à loucura. - Eu morreria pelos homens! Como Teu
filho, morreria por eles!
Horas depois, o camerlengo ainda tiritava caído no chão. Viu o rosto de sua
mãe. Deus tem planos para você, ela dizia. O camerlengo mergulhou mais ainda
no desvario. Então, Deus falou de novo. Desta vez, com silêncio. Mas o
camerlengo compreendeu. Restaure a fé dos homens.
Se não fosse eu, quem seria?
Se não fosse agora, quando seria?
Quando os guardas destrancaram a porta da Capela Sistina, o camerlengo
Ventresca sentiu o poder fluindo em suas veias, exatamente como quando ele era
menino. Deus o escolhera. Muito tempo antes.
Seja feita a Sua vontade.
O camerlengo sentia-se renascido. A Guarda Suíça encarregara-se de
enfaixar seu peito, de banhá-lo e vestir nele uma batina limpa de linho branco.
Tinham-lhe dado também uma injeção de morfina para a dor da queimadura. O
camerlengo desejara não ter tomado analgésico algum. Jesus suportou Suas dores
durante três dias na cruz! Já sentia a droga lhe amortecendo os sentidos, uma
vertigem que o arrastava.
Ao entrar na capela, não se surpreendeu nada com os olhares admirados
dos cardeais para ele. É uma admiração reverente por Deus, lembrou a si mesmo.
Não por mim, mas pela maneira como Deus trabalha ATRAVÉS da minha
pessoa. Enquanto caminhava pelo centro da nave, via perplexidade em todos os
rostos. A cada rosto por que passava, porém, percebia algo mais no olhar. O que
seria? O camerlengo imaginara antes como eles o receberiam naquela noite. Com
alegria? Com respeito? Tentou ler seus olhos e não encontrou neles nenhuma
dessas duas emoções.
Foi então que o camerlengo olhou para o altar e viu Robert Langdon.
CAPÍTULO 131
O camerlengo Cano Ventresca parou entre as fileiras de cadeiras, no meio
da Capela Sistina. Os cardeais estavam todos de pé, próximos da frente da igreja,
olhando para ele. Robert Langdon estava no altar ao lado de uma televisão ligada,
onde se desenrolava uma cena que o camerlengo reconhecia mas não podia
imaginar como fora parar ali. Vittoria Vetra encontrava- se junto de Langdon, o
rosto tenso.
O camerlengo fechou os olhos por um momento, esperando que tudo fosse
uma alucinação causada pela morfina e que, quando os reabrisse, a cena pudesse
ser diferente. Mas não era.
Eles sabiam.
Curiosamente, não sentiu medo. Mostre-me o caminho, Pai. Dê-me as
palavras para fazê-los ver a Sua visão, pediu.
Mas o camerlengo não obteve resposta.
Pai, chegamos longe demais para fracassar agora.
Silêncio.
Eles não compreendem o que Nós fizemos.
O camerlengo não soube de quem era a voz que ele escutou em sua própria
mente, mas a mensagem era brutalmente simples.
E a verdade o libertará...
...
E foi assim que o camerlengo Ventresca manteve a cabeça erguida ao
avançar pela Capela Sistina. Andando na direção dos cardeais, nem a difusa
luminosidade das velas suavizava os olhares penetrantes que eles lhe lançavam.
Explique-se, diziam os rostos. Dê sentido a esta loucura. Diga que nossos temores
são infundados!
A verdade, disse o camerlengo a si mesmo. Só a verdade. Havia segredos
demais entre aquelas paredes, um deles tão sombrio que o levara à loucura. Mas
da loucura viera a luz.
- Se pudessem dar sua própria alma para salvar milhões - disse ele,
enquanto andava -, não o fariam?
Os rostos na capela limitaram-se a olhar para ele. Ninguém se mexia.
Ninguém falava. Além das paredes, trechos alegres de cânticos vinham da praça.
O camerlengo caminhava para eles.
- Qual é o maior pecado? Matar o inimigo? Ou ficar inativo enquanto seu
verdadeiro amor é esmagado?
Eles estão cantando na Praça de São Pedro! - O camerlengo parou por um
instante e contemplou o teto da Capela Sistina. O Deus de Michelangelo, na
abóbada obscurecida, olhava para baixo e parecia satisfeito.
- Eu não podia ficar parado - disse o camerlengo. Cada vez mais próximo
dos cardeais, ainda assim não encontrou nenhum lampejo de compreensão nos
olhares deles. Será que não enxergavam a radiante simplicidade de seus atos? Não
percebiam a sua necessidade absoluta?
Haviam sido tão puros.
Os Illuminati. Ciência e Satã juntos.
Ressuscitar o antigo medo. Depois o esmagar.
Horror e Esperança. Fazê-los acreditar outra vez.
Naquela noite, o poder dos Illuminati fora desencadeado mais uma vez,
com conseqüências gloriosas. A apatia se evaporara. O medo percorrera todo o
mundo como um relâmpago, unindo as pessoas. E então a majestade de Deus
vencera as trevas.
Eu não podia deixar de interferir!
A inspiração viera do próprio Deus - aparecendo como um farol luminoso
na noite de agonia do camerlengo. Ah, mundo sem fé! Alguém tem de salvá-lo.
Você. Se não for você, quem será?
Você foi salvo por uma razão. Mostre-lhes os velhos demônios. Lembre-os
de como tinham medo. Apatia é morte. Sem trevas, não há luz. Faça-os escolher.
Luz ou trevas. Onde está o medo? Onde estão os heróis? Se não for agora, quando
será?
O camerlengo andou pelo centro da nave direto para a multidão de
cardeais. Sentiu-se como Moisés quando o mar de faixas e capelos vermelhos
abriu-se à sua frente dando-lhe passagem. No altar, Robert Langdon desligou a
televisão, pegou a mão de Vittoria e abandonou o altar. O fato de Robert Langdon
ter sobrevivido, o camerlengo sabia, só podia ser a vontade de Deus. Deus salvara
Robert Langdon. O camerlengo se perguntava por quê.
A voz que quebrou o silêncio foi a da única mulher presente na Capela
Sistina.
- Você matou meu pai? - perguntou ela, dando um passo à frente.
Quando o camerlengo encarou Vittoria Vetra, não soube definir bem a
expressão no rosto dela - sofrimento, sim, mas raiva? Ela certamente devia
compreender. O talento de seu pai era perigoso. Ele tinha de ser impedido de
continuar. Para o bem da humanidade.
- Ele estava fazendo o trabalho de Deus - disse Vittoria.
- O trabalho de Deus não é feito dentro de um laboratório. É feito no
coração.
- O coração de meu pai era puro! E as pesquisas dele provaram...
- As pesquisas dele provaram outra vez que a mente do homem está
progredindo mais depressa do que a sua alma! - a voz do camerlengo soou mais
estridente do que ele esperava. Ele baixou o tom. - Se um homem tão
espiritualizado quanto seu pai foi capaz de criar uma arma como a que vimos esta
noite, imagine o que um homem comum não faria com essa tecnologia que ele
criou!
- Um homem como você?
O camerlengo respirou fundo. Será que ela não via? A moral humana não
avançava tão depressa quanto a ciência. A humanidade não era bastante evoluída
espiritualmente para os poderes que possuía. Nunca criamos uma arma que não
tenhamos usado! E ainda assim ele sabia que a antimatéria não era nada - apenas
mais uma arma no já copioso arsenal do homem. O homem ainda podia destruir.
O homem aprendera a matar havia muito tempo. E o sangue de sua mãe caíra
como chuva. O talento de Leonardo Vetra era perigoso por outra razão.
- Durante séculos - disse o camerlengo -, a Igreja se manteve impassível
enquanto a ciência desmoralizava a religião pouco a pouco. Desmascarando
milagres. Treinando a mente para superar o coração. Condenando a religião como
o ópio das massas. Deus foi acusado de ser uma alucinação - um arrimo ilusório
para os muito fracos, incapazes de aceitar que a vida não tem qualquer sentido. Eu
não podia ficar parado enquanto a ciência se atrevia a captar o poder do próprio
Deus! Você falou de prova? Sim, prova da ignorância da ciência! O que está
errado em admitir que algo existe além de nossa compreensão? O dia em que a
ciência comprovar a existência de Deus em um laboratório será o dia em que as
pessoas não terão mais necessidade da fé!
- Você quer dizer o dia em que as pessoas não terão mais necessidade da
Igreja - desafiou-o Vittoria, andando na sua direção. - A dúvida é o seu último
farrapo de controle. É a dúvida que traz as almas para vocês. A necessidade
humana de saber se a vida tem sentido. A insegurança e a necessidade do homem
de uma mente instruída que lhe garanta que tudo é parte de um plano geral. Só
que a Igreja não é a única mente instruída do planeta! Nós todos buscamos Deus
de diferentes maneiras. De que tem medo? Que Deus se mostre em algum outro
lugar fora destas paredes? Que as pessoas O encontrem em suas próprias vidas e
deixem esses rituais antiquados para trás? As religiões evoluem! A mente
encontra respostas, o coração se apega a novas verdades. Meu pai buscava o
mesmo que você! Em um caminho paralelo! Como não enxergou isto? Deus não é
uma autoridade onipotente que nos olha de cima, ameaçando nos atirar em um
poço de fogo se desobedecermos. Deus é a energia que flui através das sinapses
de nossos sistemas nervosos e dos ventrículos de nossos corações! Deus está em
todas as coisas!
- Exceto na ciência - rebateu o camerlengo, os olhos demonstrando
somente pena. - A ciência, por definição, não tem alma. É alheia ao coração. Os
milagres intelectuais como a antimatéria chegam ao mundo sem instruções éticas
anexas. Isto em si mesmo é perigoso! E quando a ciência alardeia suas atividades
ímpias como sendo o caminho esclarecido a seguir? Prometendo respostas a
perguntas cuja beleza é não ter resposta? - ele sacudiu a cabeça. - Não.
Houve um momento de silêncio. O camerlengo sentiu-se de repente
cansado sob o olhar inflexível de Vittoria. Não era assim que deveria ser. Deus o
estaria submetendo a um teste final?
Foi Mortati quem quebrou o feitiço do momento.
- Os preferiti - disse ele, num murmúrio horrorizado. - Baggia e os outros.
Por favor, diga que não...
O camerlengo voltou-se para ele, surpreso com a dor que transparecia em
sua voz. Decerto Mortati seria capaz de compreender. Os milagres da ciência
ocupavam as manchetes dos jornais todos os dias. Fazia quanto tempo que o
mesmo não acontecia com a religião? Séculos? A religião precisava de um
milagre!
Algo que despertasse o mundo adormecido. Que o levasse de volta para o
caminho da retidão. Que restaurasse a fé. De qualquer maneira, os preferiti não
eram líderes, eram transformadores. Liberais preparados para abraçar o novo
mundo e abandonar os velhos métodos! Só havia um jeito. Um novo líder.
Jovem. Vigoroso. Vibrante. Milagroso. Os preferiti serviram mais à Igreja
na morte do que jamais o teriam feito quando vivos. Horror e Esperança. Oferecer
quatro almas para salvar milhões. O mundo lembraria deles para sempre como
mártires. A Igreja prestaria gloriosas homenagens a seus nomes. Quantos milhares
morreram pela glória de Deus? Eles eram somente quatro.
- Os preferiti - repetiu Mortati.
- Partilhei a dor deles - defendeu-se o camerlengo, apontando para o peito.
- E eu também teria morrido por Deus, mas meu trabalho apenas começou.
Estão cantando na Praça de São Pedro!
O camerlengo vislumbrou horror nos olhos de Mortati e novamente ficou
confuso. Seria a morfina?
Mortati olhava para ele como se o camerlengo tivesse matado aqueles
homens com suas próprias mãos.
Até isto eu teria feito por Deus, pensou o camerlengo, e contudo não o
fizera. A tarefa tinha sido realizada pelo Hassassin, uma alma pagã que fora
levada a acreditar que estava trabalhando para os Illuminati. Sou
Janus, dissera-lhe o camerlengo. Vou provar meu poder. E o fizera. O ódio
do Hassassin transformara-o em um joguete nas mãos de Deus.
- Escutem os cânticos - disse o camerlengo, sorrindo, seu coração se
enchendo de alegria. - Nada une mais os corações do que a presença do mal.
Queimem uma igreja e a comunidade se levanta, dando-se as mãos, cantando
hinos de desafio enquanto a reconstrói. Vejam como eles afluem hoje para cá. O
medo os trouxe de volta para casa. Temos de forjar demônios modernos para o
homem moderno. A apatia está morta.
Mostremos a eles a face do mal, os adoradores de Satanás à espreita no
meio de nós, dirigindo nossos governos, nossos bancos, nossas escolas,
ameaçando destruir a própria Casa de Deus com sua ciência pervertida. A
corrupção é profunda. O homem precisa estar vigilante. Procurar a virtude.
Tornar-se a virtude!
No silêncio, o camerlengo esperava que agora eles tivessem entendido. Os
Illuminati não tinham ressurgido. Os Illuminati estavam mortos fazia muito
tempo. Apenas seu mito ainda vivia. O camerlengo fizera os Illuminati
ressurgirem como um lembrete. Aqueles que conheciam a história dos Illuminati
reviveram sua maldade. Os que não conheciam passaram a conhecer e ficaram
espantados por terem sido tão cegos. Os antigos demônios tinham sido
ressuscitados para despertar um mundo indiferente.
- Mas... os ferros de marcar? - a voz de Mortati soava dura de tanta repulsa.
O camerlengo não respondeu. Mortati não tinha como saber, mas as marcas
haviam sido confiscadas pelo Vaticano mais de um século antes. Tinham ficado
trancadas, esquecidas e cobertas de poeira no cofre papal, o relicário particular do
Papa, no fundo dos Aposentos Bórgia. O cofre papal continha certos objetos que a
Igreja considerava perigosos demais para outros olhos a não ser os do Papa.
Por que escondiam algo que inspirava medo? O medo levava as pessoas a
Deus!
A chave do cofre-forte passava de um Papa para outro. O camerlengo
Ventresca tinha furtado a chave e entrado. O mito que envolvia o conteúdo do
cofre era fascinante: o manuscrito original dos 14 livros da Bíblia conhecidos
como Apocrypha, a terceira profecia de Fátima, as duas primeiras tendo se
realizado e a terceira sendo tão terrível que a Igreja nunca a revelara.
Além de tudo isso, o camerlengo encontrara a Coleção Illuminati, todos os
segredos que a Igreja descobrira depois de banir o grupo de Roma: seu infame
Caminho da Iluminação, a astuciosa fraude de um dos principais artistas do
Vaticano, Bernini, os cientistas mais importantes da Europa zombando da religião
ao se reunirem secretamente no Castelo Sant'Angelo, propriedade do Vaticano. A
coleção incluía uma caixa pentagonal contendo os ferros de marcar, um deles o
mítico diamante Illuminati. Aquela era uma parte da história do Vaticano que os
antigos achavam melhor esquecer. O camerlengo, porém, não concordava com
isso.
- Mas a antimatéria... - disse Vittoria. - O Vaticano correu o risco de ser
destruído!
- Não há riscos quando Deus está a seu lado - objetou o camerlengo. - Esta
causa era Dele.
- Você é louco! - exclamou ela, fervendo de indignação.
- Milhões foram salvos.
- Pessoas morreram!
- Almas foram salvas.
- Diga isto a meu pai e a Max Kohler!
- A arrogância do CERN tinha de ser revelada. Uma gotícula de líquido
que pode desintegrar um quilômetro? E é a mim que você chama de louco?
- O camerlengo sentiu a raiva subir. Será que achavam que a incumbência
dele era simples? - Aqueles que crêem são submetidos a grandes testes por amor a
Deus! Deus pediu a Abraão para lhe sacrificar seu filho! Deus ordenou a Jesus
que passasse pelo tormento da crucificação! E nós penduramos o símbolo da cruz
diante de nossos olhos, sangrento, doloroso, agoniante, para nos lembrarmos do
poder do mal! Para manter nossos corações vigilantes! As chagas no corpo de
Jesus são uma lembrança viva dos poderes das trevas! Minhas feridas são uma
lembrança viva da mesma coisa! O mal está vivo, mas o poder de Deus triunfará!
Seus brados ecoaram na parede dos fundos da Capela Sistina e depois um
profundo silêncio caiu sobre todos. O tempo parou. O Último Julgamento, de
Michelangelo, erguia-se ameaçador atrás do camerlengo - Jesus lançando os
pecadores no inferno. Os olhos de Mortati encheram-se de lágrimas.
- O que você fez, Carlo - perguntou Mortati, num sussurro. Ele fechou os
olhos e uma lágrima rolou por sua face -, com o Santo Padre?
Um suspiro coletivo de dor ergueu-se, como se todos até então tivessem
esquecido o fato, O Papa.
Envenenado.
- Um mentiroso vil - disse o camerlengo.
Mortati protestou, chocado.
- O que quer dizer? Ele era honesto! E amava você!
- E eu a ele. Ah, como o amava! Mas a fraude! O juramento a Deus que foi
quebrado!
O camerlengo sabia que naquele momento eles não compreendiam, mas
logo compreenderiam. Quando lhes contasse, eles veriam! O Santo Padre era a
fraude mais nefasta que a Igreja jamais tivera. O camerlengo ainda se lembrava
daquela noite terrível. Ele voltara de sua viagem ao CERN com as informações
sobre o Gênese de Vetra e o poder horripilante da antimatéria. O camerlengo
estava certo de que o Papa veria os perigos envolvidos na descoberta, mas o Santo
Padre viu apenas esperança nos avanços científicos de Vetra. Chegou a levantar a
possibilidade de o Vaticano financiar o trabalho de Vetra como um gesto de boa
vontade para com a pesquisa científica baseada na espiritualidade.
Loucura! A Igreja investir em uma pesquisa que ameaçava tornar a própria
Igreja obsoleta? Em um trabalho que produzia armas de destruição em massa? A
bomba que matara sua mãe...
- O senhor não pode fazer isto! - exclamara o camerlengo.
- Tenho uma dívida muito grande com a ciência - replicara o Papa.
- Algo que escondi a minha vida inteira. A ciência me concedeu uma
dádiva quando eu era jovem. Uma dádiva que nunca esqueci.
- Não compreendo. O que teria a ciência a oferecer a um homem de Deus?
- É complicado - dissera o Papa. - Vou precisar de tempo para fazê-lo
compreender. Mas antes há um fato a meu respeito que você precisa saber.
Mantive segredo sobre isto durante todos estes anos. Acho que já é hora de lhe
contar.
E o Papa contara a ele a assombrosa verdade.
CAPÍTULO 132
O camerlengo jazia encolhido no chão de terra diante da tumba de São
Pedro. Fazia frio na Necrópole, mas isto ajudava a coagular o sangue das feridas
que ele fizera na própria carne. O Santo Padre não o encontraria ali.
É complicado - a voz do Papa ecoava em sua mente. Vou precisar de tempo
para fazê-lo compreender...
Entretanto, o camerlengo sabia que tempo nenhum o faria compreender.
Mentiroso! Acreditei em você! DEUS acreditou em você!
Com uma única frase, o Papa fizera desmoronar o mundo do camerlengo.
Tudo em que o camerlengo acreditara sobre seu mentor fora despedaçado diante
de seus olhos. A verdade atingiu o coração do camerlengo com tanta força que ele
recuou vacilante para fora do escritório do Papa e vomitou no corredor.
- Espere! - o Papa o chamara, indo atrás dele. - Por favor, deixe-me
explicar!
Mas o camerlengo fugiu. Como o Santo Padre poderia esperar que ele
agüentasse mais alguma coisa? Ah, que desgraça, quanta depravação! E se alguém
descobrisse? Que profanação da Igreja! Então os votos sagrados do Papa nada
significavam?
A loucura chegou rápida, gritando em seus ouvidos, até ele acordar diante
da tumba de São Pedro. Foi quando Deus veio a ele com uma assombrosa
ferocidade.
TEU DEUS É UM DEUS VINGADOR!
Juntos, tinham feito planos. Juntos, iriam proteger a Igreja. Juntos, iriam
devolver a fé a este mundo sem fé.
O mal estava em toda parte. E todavia o mundo se tornara imune a ele!
Juntos, iriam mostrar a escuridão do mal e Deus triunfaria no fim! Horror e
Esperança. Então, o mundo iria acreditar!
O teste final de Deus não fora tão horrível quanto o camerlengo imaginara.
Esgueirar-se no quarto de dormir do Papa, encher a sua seringa, cobrir a boca do
embusteiro enquanto o corpo dele se entregava aos espasmos da morte. À luz da
lua, o camerlengo via nos olhos aflitos do Papa que havia algo que ele queria
dizer.
Tarde demais.
O Papa já dissera o suficiente.
CAPÍTULO 133
- O Papa teve um filho.
Dentro da Capela Sistina, o camerlengo permaneceu inabalável enquanto
falava. Cinco palavras solitárias e uma conclusão estarrecedora. Toda a
assembléia pareceu recuar em conjunto. Os semblantes acusadores dos cardeais
transformaram-se em expressões de pasmo, como se cada criatura ali dentro
rezasse para o camerlengo estar errado.
O Papa teve um filho.
O choque atingiu Langdon também. A mão de Vittoria na sua estremeceu,
e a mente de Langdon, já atordoada com perguntas não respondidas, procurou
encontrar um centro de gravidade.
A declaração do camerlengo parecia que iria pairar acima deles para
sempre. Mesmo no olhar delirante do camerlengo, Langdon conseguia ver pura
convicção. E tinha vontade de fugir dali, dizer a si mesmo que tudo não passava
de um grotesco pesadelo e acordar em um mundo que fizesse sentido.
- Deve ser mentira! - gritou um dos cardeais.
- Não acredito! - protestou outro. - O Santo Padre era um dos homens mais
piedosos e sinceros que já existiram!
Foi Mortati quem falou em seguida, com um fio de voz, abalado.
- Meus amigos, o que o camerlengo diz é verdade. - Todos os cardeais na
capela voltaram-se para ele ao mesmo tempo, como se ele tivesse proferido uma
obscenidade. - O Papa realmente teve um filho.
Os cardeais empalideceram de susto.
O camerlengo ficou estupefato.
- Você sabia? Mas como poderia saber uma coisa dessas?
Mortati suspirou.
- Quando Sua Santidade foi eleito, eu fui o Advogado do Diabo.
Ouviu-se o ruído de todos prendendo a respiração em uníssono.
Langdon compreendeu. Aquilo significava que a informação era
provavelmente verdadeira. O abominável "Advogado do Diabo" era a autoridade
máxima quando se tratava de informações escandalosas dentro do Vaticano.
Segredos vergonhosos nas vidas dos Papas eram perigosos e, antes das eleições,
eram realizadas investigações secretas sobre o passado dos candidatos por um
único cardeal que servia de "Advogado do Diabo", a pessoa encarregada de
desenterrar razões por que cada um dos cardeais elegíveis não deveria se tornar
Papa. Essa função era uma indicação antecipada do Papa em exercício como um
preparativo para a sua própria morte. O Advogado do Diabo nunca revelava a sua
identidade. Jamais.
- Eu fui o Advogado do Diabo - repetiu Mortati. - Foi como descobri.
Os queixos caíram. Pelo jeito, naquela noite todas as regras estavam sendo
atiradas pela janela.
O camerlengo encheu-se de raiva.
- E você não contou a ninguém?
...
- Eu interroguei Sua Santidade - disse Mortati - e ele confessou. Explicou a
história inteira e pediu somente que eu deixasse meu coração guiar a minha
decisão de revelar ou não o seu segredo.
- E seu coração lhe disse para enterrar a informação?
- Ele era o candidato favorito para o papado. As pessoas o amavam. O
escândalo teria afetado profundamente a Igreja.
- Mas ele teve um filho! Quebrou seu voto sagrado de celibato!
O camerlengo estava aos berros. Ouvia a voz de sua mãe. Uma promessa
feita a Deus é a promessa mais importante de todas. Jamais quebre uma promessa
feita a Deus.
- O Papa quebrou seu voto!
Mortati parecia à beira do delírio de tanta angústia.
- Carlo, o amor dele era casto. Ele não quebrou voto algum. Ele não
explicou a você?
- Explicar o quê?
O camerlengo lembrava-se de ouvir o Papa dizer enquanto ele fugia
correndo: Deixe-me explicar!
Lentamente, tristemente, Mortati contou toda a história. Muitos anos antes,
o Papa, quando ainda era apenas um padre, apaixonara-se por uma jovem freira.
Ambos tinham feito voto de celibato e nunca pensaram em romper seu
compromisso com Deus. Assim mesmo, o amor deles se aprofundou e, embora
conseguissem resistir às tentações da carne, viram-se ambos desejando algo em
que nunca tinham pensado: participar do supremo milagre da criação, um filho.
Seu filho. O anseio, especialmente da parte dela, tornou-se avassalador. Mas Deus
ainda vinha em primeiro lugar. Um ano mais tarde, quando a frustração tomara
proporções quase insuportáveis, ela foi ao encontro dele toda alvoroçada. Acabara
de ler um artigo sobre um novo milagre da ciência - um processo pelo qual duas
pessoas, sem terem relações sexuais, podiam ter um filho. Ela pressentia que
aquilo era um sinal de Deus. O padre viu a felicidade nos olhos dela e concordou.
Um ano mais tarde, ela teve um filho por meio do milagre da inseminação
artificial.
- Isto não pode ser verdade - disse o camerlengo, em pânico, esperando que
fosse o efeito da morfina em seus sentidos. Devia estar ouvindo coisas.
Mortati tinha lágrimas nos olhos.
- Carlo, foi por isso que o Santo Padre sempre apreciou a ciência. Achava
que tinha uma dívida de gratidão.
A ciência permitiu que ele experimentasse as alegrias da paternidade sem
quebrar seu voto de celibato. Sua Santidade contou-me que lamentava apenas uma
coisa: que sua posição cada vez mais destacada na Igreja lhe impedisse de estar
perto da mulher que amava vendo seu filho crescer.
O camerlengo Carlo Ventresca sentiu a loucura se instalando nele outra
vez. Tinha ímpetos de rasgar a própria carne. Como eu poderia saber?
- O Papa não cometeu pecado nenhum, Carlo. Ele era casto.
- Mas... - o camerlengo vasculhou sua mente angustiada à procura de uma
base racional - . . . pensem nos riscos desses atos - a voz dele ficou fraca. - E se
essa meretriz dele aparecesse? Ou, Deus nos livre, se o filho aparecesse?
Imaginem que vergonha seria para a Igreja.
Mortati disse com voz trêmula:
- O filho dele já apareceu.
Tudo parou.
- Carlo - e Mortati quase sucumbiu -, o filho do Santo Padre é você.
Naquele momento, o camerlengo sentiu o fogo da fé quase se extinguir em
seu coração. Tremia de pé no altar, emoldurado pelo Último Julgamento, de
Michelangelo. Acabara de vislumbrar o próprio inferno.
Abriu a boca para falar, mas seus lábios se moveram sem emitir som
algum.
- Não vê? - disse Mortati, a voz embargada. - Foi por isso que Sua
Santidade foi ao seu encontro no hospital em Palermo quando você era pequeno.
Foi por isso que o recolheu e criou. A freira que ele amava era Maria, sua mãe.
Ela deixou o convento para criar você, mas nunca abandonou sua rigorosa
devoção a Deus. Quando o Papa tomou conhecimento de que ela morrera em uma
explosão e você, filho dele, sobrevivera milagrosamente, jurou a Deus que nunca
mais o deixaria. Carlo, seus pais eram ambos virgens.
Mantiveram seus votos a Deus. E assim mesmo encontraram uma forma de
trazê-lo ao mundo. Você foi o filho miraculoso deles.
O camerlengo tapou os ouvidos para não ouvir as palavras. Ficou imóvel
no altar. Depois, com o mundo se desfazendo sob seus pés, caiu de joelhos e
deixou escapar um gemido desesperado.
Segundos. Minutos. Horas.
O tempo perdera todo o sentido entre as quatro paredes da capela. Vittoria
libertou-se devagar da paralisia que tomara conta de todos. Soltou a mão de
Langdon e saiu andando pelo meio dos cardeais. A porta da capela pareceu-lhe
estar a quilômetros de distância e ela se movia como se estivesse embaixo d'água,
em câmera lenta.
Ao passar no meio das batinas, seu movimento ia tirando os outros do
transe. Alguns cardeais começaram a rezar. Outros choravam. Uns se viraram para
vê-la passar, os rostos apáticos tornando-se aos poucos apreensivos à medida que
ela se aproximava da porta. Quase chegara ao fundo do aglomerado de pessoas
quando a mão de alguém segurou seu braço. O toque era frágil, mas resoluto. Ela
se deparou com um cardeal idoso, enrugado. No rosto dele, um temor sombrio.
- Não - murmurou o homem. - Você não pode fazer isso.
Vittoria sustentou-lhe o olhar, incrédula. Outro cardeal surgiu ao lado dela.
- Temos de pensar antes de agir.
E outro.
- O sofrimento que isso pode causar...
Vittoria estava cercada. Olhou para todos eles, surpresa.
- Mas os atos que foram cometidos hoje, esta noite.., o mundo tem de saber
a verdade.
- Meu coração concorda - disse o cardeal idoso, ainda segurando o braço
dela -, mas este seria um caminho sem volta. Precisamos levar em conta as
esperanças destruídas. O ceticismo. Como as pessoas poderiam voltar a ter
confiança um dia?
Mais cardeais impediam-na de prosseguir. Havia uma parede de batinas
negras em torno dela.
- Ouça as pessoas na praça - disse um. - O que vai ser do coração delas?
Temos de ser prudentes.
- Precisamos de tempo para refletir e rezar - disse outro. - Temos de pensar
antes de agir. As repercussões de tudo isso...
- Ele matou meu pai! - protestou Vittoria. - Ele matou o próprio pai dele!
- Tenho certeza de que ele vai pagar por seus pecados - disse tristemente o
cardeal que segurava o braço dela.
Vittoria também tinha certeza e pretendia tomar providências para garantir
que isso acontecesse. Tentou chegar à porta, mas os cardeais juntaram-se mais, os
rostos assustados.
- O que vão fazer? - exclamou ela. - Me matar?
Os velhos empalideceram e Vittoria no mesmo instante se arrependeu de
ter dito aquilo. Podia ver que eram boas almas. Tinham enfrentado violência
demais naquela noite. Não queriam ameaçá-la. Estavam simplesmente
encurralados. Amedrontados. Tentando se orientar.
- Só desejo - disse o cardeal idoso - fazer o que é correto.
- Então vai deixá-la sair - declarou uma voz grave atrás dela. As palavras
eram calmas, mas o tom era categórico. Robert Langdon postou-se ao lado de
Vittoria e segurou-lhe a mão. - A senhorita Vetra e eu vamos sair desta capela.
Agora.
Sem jeito, hesitantes, os cardeais começaram a abrir caminho para os dois.
- Esperem! - era Mortati.
Veio ao encontro deles pelo meio da nave, deixando o camerlengo sozinho
e derrotado no altar. Mortati parecia mais velho de uma hora para outra, cansado
além da conta. Caminhava como se carregasse um pesado fardo de vergonha. Ao
chegar, pousou uma das mãos no ombro de Langdon e a outra no de Vittoria.
Vittoria sentiu sinceridade no gesto. Ele tinha os olhos vermelhos.
- É claro que podem sair quando quiserem - disse Mortati. - Claro - e fez
uma pausa, seu sofrimento quase tangível. - Peço apenas uma coisa... - e baixou a
cabeça durante um longo momento, depois voltou a olhar para os dois. - Deixem
que eu faça isso. Vou para a praça agora e encontro uma forma qualquer de dizer
a eles. Não sei como, mas vou encontrar. A confissão da Igreja deve vir de dentro.
As falhas são nossas, nós mesmos devemos apresentá-las.
Mortati virou-se com ar melancólico para o altar.
- Cano, você colocou a Igreja em uma situação desastrosa - e parou,
procurando em torno. Não havia mais ninguém no altar.
Com um farfalhar de tecido na passagem lateral, uma porta se fechou.
O camerlengo se fora.
CAPÍTULO 134
A batina branca do camerlengo Ventresca ondulava enquanto ele se
afastava pelo corredor que saía da Capela Sistina. Os guardas suíços ficaram
perplexos quando surgiu desacompanhado de dentro da capela e lhes disse que
precisava ficar sozinho um momento. Eles obedeceram e o deixaram passar.
Agora, ao dobrar uma esquina e fora da visão deles, o camerlengo sentiu
um redemoinho de emoções que não imaginava que fosse possível um ser humano
experimentar. Ele envenenara o homem que chamava de "Santo Padre", o homem
que o chamava de "meu filho" Sempre achara que as palavras "pai" e "filho"
faziam parte da tradição religiosa, mas agora conhecia a verdade diabólica - as
palavras haviam sido literais.
Chovia na manhã em que os funcionários do Vaticano bateram com força à
porta do camerlengo, despertando-o de um sono intermitente, O Papa, diziam, não
respondia à porta nem ao telefone. O clero estava preocupado. O camerlengo era o
único que podia entrar nos aposentos do Papa sem se fazer anunciar.
O camerlengo entrou sozinho e encontrou o Papa, como na noite anterior,
contorcido e morto em sua cama. O rosto de Sua Santidade parecia-se com o de
Satã. A língua estava negra como a morte. O próprio Demônio dormira na cama
do Papa.
O camerlengo não sentia remorso. Deus havia falado.
Ninguém veria a traição, ainda não. Isto viria mais tarde.
Ele deu a terrível notícia - Sua Santidade morrera de um derrame. Depois,
o camerlengo preparou-se para o conclave.
A voz de Mãe Maria sussurrava em seu ouvido: "Jamais quebre uma
promessa feita a Deus."
- Estou escutando, Mãe - respondeu ele. - Este é um mundo sem fé. Eles
precisam ser levados de volta para o caminho da retidão. Horror e Esperança. É o
único jeito.
- Sim - concordou ela. - Se não for você, então quem será? Quem vai fazer
a Igreja sair das trevas?
Decerto nenhum dos preferiti. Eles eram velhos, à beira da morte, liberais
que seguiriam o Papa, protegendo a ciência em sua memória, buscando seguidores
modernos ao abandonar as velhas fórmulas. Homens velhos e atrasados fingindo
pateticamente não o serem. Iriam fracassar, é claro. A tradição era a força da
Igreja, não sua transitoriedade. O mundo inteiro era transitório. A Igreja não
precisava mudar, precisava apenas lembrar ao mundo que isto era irrelevante! O
mal está vivo! Deus triunfará!
A Igreja precisava de um líder. Velhos não inspiram ninguém! Jesus
inspirou! Jovem, vibrante, vigoroso, MILAGROSO.
- Saboreiem seu chá - o camerlengo disse aos quatro preferiti, deixando-os
na biblioteca particular do Papa antes do conclave. - Seu guia vai chegar daqui a
pouco.
Os preferiti agradeceram-lhe, todos animados pela oportunidade de entrar
no famoso Passetto. Extraordinário! O camerlengo, antes de sair, destrancara a
porta do Passetto e, na hora combinada, a porta se abrira e um padre com
aparência estrangeira e uma tocha acesa na mão fizera os entusiasmados preferiti
entrarem no corredor.
De onde nunca mais saíram. Eles serão o Horror. Eu serei a Esperança.
Não. Eu sou o Horror.
O camerlengo percorria agora com passadas incertas a escuridão da
Basílica de São Pedro. De alguma forma, através da insanidade e da culpa, através
das imagens de seu pai, através da dor e da revelação, até mesmo através dos
efeitos da morfina, ele encontrara uma brilhante clareza. Uma noção de destino.
Sei qual é meu propósito, pensou, admirado com tanta lucidez.
Desde o início, nada naquela noite correra exatamente como ele planejara.
Obstáculos imprevistos haviam surgido, mas o camerlengo adaptara-se a eles,
fizera ousados ajustes. Contudo, nunca imaginou que a noite terminasse daquela
maneira, apesar de agora perceber a preordenada majestade de tudo.
Não poderia terminar de outra forma.
Ah, o pavor que sentira na Capela Sistina, achando que Deus o
abandonara! Oh, os atos que Ele exigira! O camerlengo caíra de joelhos, imerso
em dúvidas, os ouvidos esperando ouvir a voz de Deus, mas ouvindo apenas o
silêncio. Ele implorara por um sinal. Por orientação. Rumo. A vontade de Deus
era aquela? A Igreja ser destruída por escândalos e abominação? Não! Deus é que
desejara que o carmerlengo agisse! Não fora Ele?
Então, o camerlengo viu. Pousado no altar. Um sinal. Comunicação divina
- algo comum visto sob uma luz incomum. O crucifixo. Singelo, feito de madeira.
Jesus na cruz. E tudo se esclarecera: o camerlengo não estava só. Nunca estaria
só.
Aquela era a vontade Dele, o Seu significado.
Deus sempre pedira grandes sacrifícios àqueles a quem mais amava. Por
que o camerlengo levara tanto tempo para compreender? Seria ele temeroso
demais? Humilde demais? Não fazia mais diferença. Deus encontrara um meio. O
camerlengo até compreendia agora por que Robert Langdon fora salvo. Para trazer
a verdade. E provocar aquele final.
Como naquela noite fatídica semanas atrás, o camerlengo foi tomado por
vertigens enquanto caminhava no escuro.
Aquele era o único caminho para a salvação da Igreja!
O camerlengo sentia-se flutuar ao descer para o Nicho dos Pálios. O efeito
da morfina chegara a um ponto máximo, mas ele sabia que Deus o guiava.
Ouvia ao longe o alarido dos cardeais saindo da capela, gritando instruções
para a Guarda Suíça.
Mas nunca o encontrariam. Não a tempo.
Sentia-se atraído, cada vez mais depressa, descendo as escadas para o
espaço rebaixado onde luziam as 99 lamparinas. Deus estava devolvendo-o ao
solo consagrado. Encaminhou-se para a grade sobre a abertura que levava à
Necrópole. A Necrópole, onde aquela noite terminaria. Na sagrada escuridão
subterrânea.
Pegou uma lamparina e preparou-se para descer.
Ao atravessar o Nicho, porém, ele se deteve. Algo não estava certo. Como
aquilo serviria a Deus? Um fim solitário e silencioso? Jesus sofrera exposto aos
olhos do mundo inteiro. A vontade de Deus não poderia ser aquela! O camerlengo
tentou escutar a voz de seu Deus, mas havia apenas o confuso zumbido da droga
em sua cabeça.
- Cano - era sua mãe -, Deus tem planos para você.
Perturbado, o camerlengo continuou andando.
Então, sem preâmbulos, Deus chegou.
O camerlengo estacou. A luz das 99 lamparinas projetara a sombra do
camerlengo na parede de mármore atrás dele. Gigantesca, temível. Um vulto
nebuloso rodeado por uma luz dourada. Com as chamas cintilando em torno de
seu corpo inteiro, o camerlengo parecia um anjo subindo aos céus. Parou um
momento, elevou os braços estendidos, contemplou a própria imagem. E voltou-se
para o alto das escadas.
A mensagem de Deus era clara.
Três minutos tumultuados passaram-se nos corredores fora da Capela
Sistina e ninguém ainda localizara o camerlengo. Era como se o homem tivesse
sido engolido pela noite. Mortati estava prestes a solicitar uma busca em grande
escala na Cidade do Vaticano quando um brado jubiloso irrompeu lá fora na Praça
de São Pedro. Uma comemoração espontânea da multidão, muito ruidosa. Os
cardeais se entreolharam, preocupados.
Mortati fechou os olhos.
- Que Deus nos ajude.
Pela segunda vez naquela noite o Colégio dos Cardeais saiu para a Praça de
São Pedro. Langdon e Vittoria foram arrastados pelo agrupamento de cardeais e
também saíram para o espaço a céu aberto. As luzes das emissoras estavam todas
dirigidas para a basílica. E lá, tendo acabado de aparecer na sacada papal
localizada bem no centro da imensa fachada, estava o camerlengo Ventresca com
os braços levantados. Mesmo à distância, ele parecia a personificação da pureza.
Uma estatueta.
Vestida de branco. Inundada de luz.
A energia na praça cresceu como a de uma grande onda e logo rompeu as
barreiras formadas pela Guarda
Suíça. A massa humana fluiu para a basílica em uma eufórica torrente de
humanidade, uma investida irrefreável com gente cantando, os clarões das
câmeras relampejando. Um pandemônio. As pessoas corriam para perto da
fachada da basílica provocando um caos tão intenso que parecia que nada mais as
faria parar.
E então algo as fez parar. Por completo.
No alto, o camerlengo fez o menor dos gestos. Juntou as duas mãos no
peito. E curvou a cabeça em uma prece silenciosa.
Uma a uma, depois às dezenas e às centenas, as pessoas curvaram as
cabeças junto com ele.
A praça mergulhou no silêncio como se um encanto tivesse sido lançado.
Em sua mente, girando e distante, as preces do camerlengo eram um
turbilhão de esperanças e tristezas.., perdoai-me, Pai... Mãe... cheia de graça... vós
sois a Igreja... que possais compreender este sacrifício de seu único filho
concebido.
Oh, meu Jesus... salvai-nos do fogo do inferno.., levai todas as almas para
o céu, em especial as que mais necessitam da vossa misericórdia...
O camerlengo não abriu os olhos para ver a multidão lá embaixo, nem as
câmeras de televisão, nem o mundo inteiro o assistindo. Sentia tudo isso em sua
alma. Mesmo cheio de angústia, a comunhão daquele momento era embriagante.
Como uma rede de conexões estendida em todas as direções pelo mundo.
Diante das telas das televisões, em casa, dentro dos carros, o mundo todo
rezava junto. Como sinapses de um coração gigantesco sendo ativadas em série,
as pessoas se voltavam para Deus, em dezenas de línguas, em centenas de países.
As palavras que murmuravam eram recém-nascidas e ainda assim tão familiares
quanto suas próprias vozes - antigas verdades marcadas nas suas almas.
A harmonia parecia eternizar-se.
Mas o silêncio aos poucos se desfez, cânticos alegres começaram a ser
entoados novamente.
Chegara o momento.
Santíssima Trindade, eu vos ofereço o mais precioso Corpo, Sangue e
Alma... em reparação pelas ofensas, sacrilégios e indiferenças...
O camerlengo já sentia a dor física se instalando. Espalhava-se por sua pele
como uma peste, tinha vontade de enfiar as unhas na própria carne como fizera
semanas antes quando Deus viera ao seu encontro pela primeira vez. Não se
esqueça da dor que Jesus suportou. Já sentia as emanações em sua garganta. Nem
a morfina amenizaria o ardor.
Meu trabalho aqui está terminado.
O Horror cabia a ele. A Esperança, à multidão.
No Nicho dos Pálios, o camerlengo seguira a vontade de Deus e untara seu
corpo. Seu cabelo, seu rosto. Sua batina de linho branco. Sua carne. Estava
encharcado com os óleos sagrados, vítreos, das lamparinas. Tinham um perfume
doce como o de sua mãe, mas queimavam. A ascensão dele seria misericordiosa.
Miraculosa e rápida. E o que deixaria para trás não seria escândalo, mas uma nova
força e um novo prodígio.
Deslizou a mão para dentro do bolso e segurou o pequeno isqueiro dourado
que trouxera consigo do incendiário do Pálio.
Murmurou um versículo de Juízes. E, quando se elevaram as chamas do
altar para o céu, subiu também com as chamas o Anjo do Senhor.
Seu polegar fez um movimento.
Estavam cantando na Praça de São Pedro.
A visão que o mundo testemunhou ninguém jamais esqueceria.
Na alta sacada, como uma alma que se libertasse de seu envoltório físico,
uma pira de chamas luminosas irrompeu do meio do corpo do camerlengo. O fogo
subiu, engolfando-o por inteiro no mesmo instante. Ele não gritou. Levantou os
braços acima da cabeça e olhou para o céu. A conflagração rugia a seu redor,
envolvendo-o todo em uma coluna de luz. Ardeu por um tempo que pareceu
infinito tendo o mundo como testemunha. As labaredas ficaram cada vez mais
brilhantes. Então, gradualmente, as chamas se dissiparam. O camerlengo se fora.
Se caíra por trás da balaustrada ou se desintegrara no ar, era impossível dizer.
Tudo o que restou foi uma nuvem de fumaça ondulando no céu acima do
Vaticano.
CAPÍTULO 135
O dia demorou a raiar sobre a Cidade do Vaticano.
Uma chuvarada esvaziara a Praça de São Pedro. A imprensa não arredou
pé, seus representantes amontoados debaixo de guarda-chuvas e nos furgões
comentando os acontecimentos da noite. Em todo o mundo, as igrejas ficaram
cheias. O momento era de reflexão e discussão para todas as religiões. Havia
muitas perguntas e, no entanto, as respostas pareciam provocar apenas perguntas
mais profundas. Até então, o Vaticano se manteve em silêncio, sem fazer qualquer
pronunciamento.
Nas Grutas do Vaticano, o cardeal Mortati ajoelhou-se sozinho diante do
sarcófago aberto. Estendeu a mão e fechou a boca enegrecida do velho Papa. Sua
Santidade agora parecia em paz. Repousando serenamente para toda a eternidade.
Aos pés de Mortati havia uma urna dourada cheia de cinzas. Mortati
pessoalmente juntara as cinzas e as levara até ali.
- Uma oportunidade de perdão - disse ele para Sua Santidade, colocando a
urna dentro do sarcófago ao lado do corpo do Papa. - Não existe amor maior do
que o de um pai por seu filho.
Mortati escondeu a urna sob as dobras da roupa do Papa. Sabia que aquele
local sagrado era reservado exclusivamente para as relíquias dos Papas, mas de
alguma forma ele achava que aquela era uma atitude apropriada.
- Signore? - disse alguém, entrando nas grutas. Era o tenente Chartrand,
acompanhado de três guardas suíços. - Estão esperando o senhor para o conclave.
Mortati assentiu com um gesto de cabeça.
Lançou um último olhar para o sarcófago e depois se levantou. Dirigiu-se
aos guardas.
- Já é hora de Sua Santidade ter a paz que mereceu.
Os guardas se adiantaram e, com grande esforço, empurraram a tampa do
sarcófago de volta para o lugar.
Ela fechou com um estrondo conclusivo.
Mortati estava sozinho ao atravessar o Pátio Bórgia em direção à Capela
Sistina. Uma brisa úmida agitou a batina dele. Um cardeal saiu do Palácio
Apostólico e veio ao seu encontro.
- Posso ter a honra de acompanhá-lo ao conclave, signore?
- A honra é toda minha.
- Signore - disse o cardeal, com ar embaraçado. - O Colégio lhe deve
desculpas por ontem à noite.
Estávamos cegos com...
- Por favor - interrompeu-o Mortati. - Nossas mentes às vezes vêem o que
nossos corações gostariam que fosse verdade.
O cardeal calou-se por um longo tempo. Finalmente, falou:
- Já lhe contaram? O senhor não é mais nosso Grande Eleitor.
Mortati sorriu.
- Já. Agradeço a Deus pelas pequenas bênçãos.
- O Colégio insistiu que o senhor fosse elegível.
- Parece que a caridade não morreu na Igreja.
- O senhor é um homem sábio. Seria um bom líder.
- Sou um homem velho. Seria líder por pouco tempo.
Os dois riram.
Ao chegarem ao fim do Pátio Bórgia, o cardeal hesitou. Virou-se para
Mortati entre perplexo e inquieto, como se a precária reverência da noite anterior
se insinuasse de novo em seu coração.
- O senhor sabia - cochichou o cardeal - que não encontramos restos na
sacada papal?
Mortati sorriu.
- Talvez a chuva os tenha levado embora.
O homem olhou para o céu tempestuoso.
- É, quem sabe...
CAPÍTULO 136
O céu da manhã ainda estava pesado de nuvens quando saíram da chaminé
da Capela Sistina as primeiras baforadas de fumaça branca. Os alvos fiapos
encresparam-se no firmamento e aos poucos se dissiparam.
Lá embaixo, na Praça de São Pedro, o repórter Gunther Glick observava
calado, refletindo. O capítulo final.
Chinita Macri aproximou-se por trás dele e apoiou a câmera no ombro.
- Está na hora - disse ela.
Glick sacudiu a cabeça com ar lúgubre.
Virou-se para ela, alisou o cabelo e respirou fundo. Minha última
transmissão, pensou. Uma pequena multidão reunira-se perto deles para assistir.
- Ao vivo em 60 segundos - avisou Macri.
Glick olhou por cima do ombro para o telhado da Capela Sistina.
- Dá para pegar a fumaça?
Macri concordou, paciente.
- Sei como enquadrar uma cena, Gunther.
Glick calou a boca. É claro que ela sabia. A atuação de Macri atrás da
câmera na noite anterior provavelmente daria a ela o Pulitzer. A atuação dele, por
outro lado... Nem queria pensar no assunto.
Tinha certeza de que a BBC o mandaria embora. Seguramente, teriam
problemas legais com diversas entidades poderosas - o CERN e George Bush,
inclusive.
- Você está bem - disse Chinita, protetora, afastando o rosto da câmera com
um semblante ligeiramente preocupado. - Será que posso lhe dar um... - ela
hesitou, interrompendo-se.
- Um conselho?
Macri suspirou.
- Eu só ia dizer que não precisa fechar a matéria com espalhafato.
- Eu sei - replicou ele. - Você quer um resumo oficial.
- O mais oficial do mundo. Confio em você.
Glick sorriu. Um resumo oficial? Ela ficou maluca? Uma história como a
da noite anterior merecia muito mais. Uma virada. Uma declaração estrondosa no
final. Uma revelação imprevista de verdades chocantes.
Felizmente, Glick tinha uma carta na manga.
- No ar em... cinco... quatro... três...
Ao olhar através da câmera, Chinita Macri reparou que havia um brilho
sorrateiro no olhar de Glick. É uma loucura deixá-lo fazer isso, pensou ela. Onde
eu estava com a cabeça?
Mas o momento para reconsiderações já passara. Estavam no ar.
- Ao vivo da Cidade do Vaticano - anunciou Glick no momento certo -,
aqui é Gunther Glick, para o noticiário da BBC. - Deu um olhar solene para a
câmera, com a fumaça branca da Capela Sistina subindo atrás dele. - Senhoras e
senhores, agora é oficial. O cardeal Saverio Mortati, um progressista de 79 anos,
acabou de ser eleito Papa na Cidade do Vaticano. Apesar de não ser um candidato
provável, Mortati foi eleito por uma unanimidade sem precedentes pelo Colégio
dos Cardeais.
Macri respirou aliviada. Glick parecia incrivelmente profissional. Até
austero. Pela primeira vez em sua vida, Glick de fato se comportava e falava como
um repórter.
- Conforme já noticiamos - acrescentou Glick, a voz se intensificando
perfeitamente -, o Vaticano ainda não fez qualquer pronunciamento sobre os
miraculosos acontecimentos de ontem à noite.
Ótimo! O nervosismo de Chinita diminuiu mais um pouco. Até aqui, tudo
bem.
Glick assumiu uma expressão pesarosa em seguida.
- Embora a noite passada tenha sido uma noite de prodígios, foi também
uma noite de tragédias. Quatro cardeais morreram no conflito de ontem, assim
como o comandante Olivetti e o capitão Rocher, da Guarda Suíça, ambos no
cumprimento do dever. Outras baixas incluem Leonardo Vetra, o renomado físico
do CERN e pioneiro da tecnologia da antimatéria, e Maximilian Kohler, o diretor
do CERN, que aparentemente veio ao Vaticano em um esforço para oferecer
ajuda, mas que, de acordo com as informações, faleceu nesse meio tempo.
Nenhum relatório oficial foi divulgado ainda a respeito da morte do senhor
Kohler, mas se supõe que tenha sido provocada por complicações decorrentes de
uma antiga doença.
Macri balançou a cabeça para ele. A reportagem estava indo muito bem.
Justamente como tinham combinado.
- E, em conseqüência da explosão no céu acima do Vaticano na última
noite, a tecnologia da antimatéria produzida pelo CERN tornou-se o assunto
quente entre os cientistas, despertando interesse e controvérsia. Uma declaração
lida em Genebra pela assistente do senhor Kohler, Sylvie Baudeloque, anunciou
esta manhã que o conselho diretor do CERN, embora entusiasmado com o
potencial da antimatéria, está suspendendo todas as pesquisas e licenciamentos até
que investigações posteriores sobre sua segurança possam ser efetuadas.
Excelente, pensou Macri. Agora, a reta final.
- Uma ausência notável em nossas telas ontem - prosseguiu Glick - foi o
rosto de Robert Langdon, o professor de Harvard que veio para a Cidade do
Vaticano a fim de colaborar com seus conhecimentos sobre os Illuminati.
Acreditava-se que teria morrido na explosão da antimatéria, mas temos
informações de que foi visto na Praça de São Pedro após a explosão. Como ele
chegou ainda é especulação, mas um porta-voz do Hospital Tiberina afirma que o
senhor Langdon caiu do céu no rio Tibre logo depois da meia-noite, foi medicado
e liberado. - Glick arqueou as sobrancelhas para a câmera. - E se isto for verdade,
essa foi certamente uma noite de milagres.
Perfeito! Macri abriu um sorriso largo. Um resumo impecável! Agora,
encerre a transmissão!
Mas Glick não encerrou. Fez uma pausa e deu um passo na direção da
câmera. Sorriu, misterioso.
- Antes de encerrarmos, porém...
Não!
- . . . gostaria de convidar uma pessoa para conversar conosco.
As mãos de Chinita gelaram segurando a câmera. Uma pessoa? Que diabos
ele vai fazer? Que pessoa? Encerre agora, seu idiota! Mas sabia que era tarde
demais. Glick já se comprometera.
- O homem que vou apresentar - disse Glick - é um americano, um famoso
acadêmico.
Chinita ficou indecisa. Prendeu a respiração enquanto Glick se dirigia ao
pequeno grupo de pessoas em torno deles e fazia um sinal para que seu convidado
se adiantasse. Ela fez uma oração silenciosa. Por favor, que ele tenha de alguma
forma localizado Robert Langdon e não um desses malucos obcecados por
conspirações dos Illuminati.
Quando o convidado de Glick apareceu, porém, o coração de Macri se
apertou. Não era Robert Langdon coisa nenhuma. Era um homem careca de jeans
e camisa de flanela. Usava uma bengala e grossos óculos de grau. Macri ficou
apavorada. É um dos malucos!
- Quero lhes apresentar - anunciou Glick - o respeitado professor Joseph
Vanek, especialista em assuntos do Vaticano da Universidade De Paul, em
Chicago.
O homem juntou-se a Glick na imagem da câmera. Não era um maníaco
por conspirações. Ela até já ouvira falar daquele sujeito.
- Doutor Vanek - começou Glick -, o senhor tem algumas informações
surpreendentes para nos dar sobre o conclave da noite passada, não é?
- De fato, tenho - disse Vanek. - Depois de uma noite de tantas surpresas, é
difícil imaginar que ainda existam mais surpresas. Entretanto... - ele fez uma
pausa.
Glick sorriu.
- Entretanto, existe um detalhe estranho em tudo isso.
Vanek assentiu.
- Sim. E, por mais desconcertante que seja, acredito que o Colégio dos
Cardeais elegeu dois Papas neste fim de semana.
Macri quase deixou cair a câmera.
Glick deu um sorriso astuto.
- Dois Papas, o senhor disse?
O especialista concordou.
- Sim. Antes de mais nada, devo explicar que passei a vida estudando as
leis da eleição papal. A judicatura do conclave é extremamente complexa e grande
parte dela está hoje esquecida ou é deixada de lado como obsoleta. Talvez nem o
Grande Eleitor esteja ciente daquilo que vou revelar agora. Todavia, de acordo
com leis antigas e esquecidas enunciadas no Romano Pontífice Eligendo, Numero
63, a eleição não é o único método pelo qual um Papa pode ser eleito. Há outro
método, mais divino. Chama-se "eleição por aclamação" - ele fez uma pausa. - E
aconteceu ontem à noite.
Glick lançou um olhar penetrante a seu convidado.
- Como devem lembrar - prosseguiu o acadêmico -, na noite de ontem,
quando o camerlengo estava no telhado da basílica, todos os cardeais embaixo
começaram a gritar seu nome em uníssono.
- Sim, eu me lembro.
- Com essa imagem em mente, permita-me ler o texto original das antigas
leis eleitorais. - O homem tirou uns papéis do bolso, pigarreou e começou a ler: -
"A Eleição por Aclamação ocorre quando todos os cardeais, como se por
inspiração do Espírito Santo, livre e espontaneamente, unanimemente e em voz
alta, proclamam o nome de um indivíduo."
Glick, sorridente, perguntou:
- O senhor está dizendo então que, ontem à noite, quando os cardeais
repetiram juntos o nome de Carlo Ventresca, eles na verdade o elegeram Papa?
- Sim, com certeza. Além disso, a lei estabelece que a eleição por
aclamação suplanta a exigência de elegibilidade de um cardeal e permite que
qualquer membro do clero - padre ordenado, bispo ou cardeal - seja eleito.
Portanto, como pode ver, o camerlengo estaria perfeitamente qualificado para a
eleição papal por esse procedimento. - O doutor Vanek olhou direto para a
câmera.
- Os fatos são estes: Carlo Ventresca foi eleito Papa na noite de ontem.
Reinou por menos de 17 minutos. E, se não tivesse ascendido aos céus
milagrosamente em uma coluna de fogo, estaria agora enterrado nas Grutas do
Vaticano com os Outros Papas.
- Obrigado, doutor - e Glick deu uma piscada maliciosa para Macri. - Foi
muito esclarecedor.
CAPÍTULO 137
Do alto dos degraus do Coliseu,vittoria riu e voltou-se para ele, lá embaixo,
chamando-o.
- Ande, Robert! Devia ter me casado com um homem mais moço! - o
sorriso dela era mágico.
Ele tentou acompanhá-la, mas suas pernas pesavam como se fossem feitas
de pedra.
- Espere - pediu. - Por favor...
Sua cabeça latejava.
Robert Langdon acordou sobressaltado.
Escuridão.
Ficou deitado um tempo enorme na maciez estrangeira da cama, incapaz de
saber onde estava. Os travesseiros eram de plumas de ganso, imensos e
maravilhosos. O ar cheirava a pot-pourri. Do outro lado do quarto, duas portas de
vidro abriam-se para uma generosa sacada, onde uma brisa ligeira corria sob a lua
meio encoberta pelas nuvens. Langdon tentou lembrar-se de onde estava e como
fora parar ali.
Farrapos de lembranças filtravam-se por sua consciência.
Uma pira mística de fogo, um anjo se materializando em meio à multidão,
a mão leve pegando a sua mão e levando-o pela noite afora, guiando seu corpo
exausto e machucado através das ruas, levando-o para lá, para aquele
apartamento, empurrando-o meio adormecido para uma ducha escaldante,
levando-o para aquela cama e velando por ele enquanto ele adormecia como se
desmaiasse.
Na penumbra, Langdon enxergou uma segunda cama. Os lençóis estavam
desarrumados, mas a cama estava vazia. De um dos aposentos ao lado, ouviu o
ruído abafado mas constante de um chuveiro aberto.
Ao olhar de novo para a cama de Vittoria, entreviu um brasão bordado em
cores nítidas no travesseiro dela e a inscrição: HOTEL BERNINI. Langdon teve
de achar graça. Vittoria escolhera bem. O luxo do Velho Mundo com vista para a
Fonte do Tritão, de Bernini - não havia hotel mais apropriado em toda a Roma.
Deitado ali, ouviu batidas e percebeu o que o acordara. Alguém estava
batendo à porta. Agora com mais força.
Confuso, Langdon levantou-se. Ninguém sabe que estamos aqui, pensou,
meio inquieto. Vestiu um elegante roupão do Hotel Bernini e saiu do quarto de
dormir para o vestíbulo da suíte. Parou um instante junto à pesada porta de
carvalho e então a abriu.
Um homem alto e vigoroso vestido numa profusão rebuscada de amarelo e
roxo olhou para ele.
- Sou o tenente Chartrand - disse o homem. - Da Guarda Suíça do
Vaticano.
Langdon sabia muito bem quem ele era.
- Como... como nos encontrou?
- Vi quando saíram da praça ontem à noite. Eu os segui. Estou aliviado por
ainda estarem aqui.
Langdon sentiu uma ansiedade repentina, cogitando se os cardeais teriam
enviado Chartrand para escoltá-lo juntamente com Vittoria de volta para a Cidade
do Vaticano. Afinal, os dois eram as únicas pessoas além dos membros do
Colégio dos Cardeais que sabiam a verdade. Eram uma ameaça.
- Sua Santidade incumbiu-me de dar isto ao senhor - disse Chartrand,
entregando-lhe um envelope lacrado com o sinete do Vaticano. Langdon abriu o
envelope e leu o bilhete manuscrito.
Senhor Langdon e Senhorita Vetra,
Embora seja meu profundo desejo solicitar sua discrição a respeito dos
assuntos das últimas 24 horas, não posso deforma alguma ter a presunção de lhes
pedir mais do que já concederam. Sendo assim, sem nada pretender, recolho-me
esperando que deixem seus corações os guiarem nessa questão. O mundo hoje
parece um lugar melhor e talvez as perguntas sejam mais poderosas do que as
respostas.
Minha porta estará sempre aberta para ambos.
Sua Santidade, Saverio Mortati.
Langdon leu duas vezes o bilhete. O Colégio dos Cardeais sem dúvida
escolhera um líder cheio de nobreza e generosidade.
Antes que Langdon pudesse dizer qualquer coisa, Chartrand entregou-lhe
um pequeno pacote.
- Em sinal do agradecimento de Sua Santidade.
Langdon segurou o pacote. Era pesado e estava embrulhado em papel
pardo.
- Por decreto do Santo Padre - disse Chartrand -, esse objeto do cofre papal
é confiado ao senhor em empréstimo por tempo indefinido. Sua Santidade pede
apenas que em sua última vontade e testamento o senhor estabeleça que ele deve
voltar para o lugar de onde veio.
Langdon abriu o embrulho e perdeu a fala. Era o ferro de marcar. O
diamante Illuminati.
Chartrand sorriu.
- Fique em paz - disse, virando-se para ir embora.
- Muito... obrigado - Langdon conseguiu por fim dizer, as mãos trêmulas
segurando o valioso presente.
O guarda hesitou, já no corredor.
- Senhor Langdon, posso lhe perguntar uma coisa?
- Claro.
- Os outros guardas e eu estamos curiosos. Naqueles últimos minutos, o
que aconteceu lá em cima dentro do helicóptero?
Langdon ficou um tanto apreensivo. Sabia que aquele momento chegaria -
o momento da verdade. Ele e Vittoria tinham conversado sobre o assunto na noite
anterior enquanto se afastavam da Praça de São Pedro. E tinham tomado uma
decisão. Antes mesmo do bilhete do Papa.
O pai de Vittoria sonhara que sua descoberta da antimatéria causaria um
despertar espiritual. Os acontecimentos da véspera seguramente não eram o que
ele pretendia, mas havia um fato que não se podia negar: naquele momento, em
todo o mundo, as pessoas estavam pensando em Deus como nunca haviam feito
antes. Quanto tempo a mágica iria durar, Langdon e Vittoria não tinham a menor
idéia, mas nunca seriam capazes de quebrar aquele deslumbramento com
escândalos e dúvidas. O Senhor trabalha de estranhas maneiras, disse Langdon a
si mesmo, conjeturando se talvez, quem sabe, o dia anterior correra de acordo com
a vontade de Deus, afinal de contas.
- Senhor Langdon? - repetiu Chartrand. - Eu estava perguntando sobre o
helicóptero...
Langdon deu um sorriso tristonho.
- É, eu sei - e deixou que as palavras viessem de seu coração, não de sua
mente. - Pode ser que tenha sido o choque da queda, mas a minha memória...
parece... está toda embaralhada...
Chartrand fez uma cara desanimada.
- Não se lembra de coisa alguma?
Langdon suspirou.
- Tenho a impressão de que isso vai ser um mistério para sempre.
Quando Robert Langdon voltou para o quarto, a visão que o aguardava fez
com que parasse no meio do caminho. Vittoria estava na sacada, de costas para a
grade, os olhos profundos pousados nele. Uma verdadeira aparição dos céus, a
silhueta radiante com a lua brilhando por trás. Poderia ter sido uma deusa romana,
envolta em seu roupão atoalhado, a faixa apertada na cintura acentuando suas
curvas esbeltas. Na rua, uma névoa clara pairava como um halo sobre a Fonte do
Tritão, de Bernini.
Langdon sentia-se tremendamente atraído por ela, mais do que por
qualquer mulher em sua vida. Com cuidado, colocou o diamante Illuminati e a
carta do Papa em sua mesa-de-cabeceira. Haveria muito tempo para explicar tudo
aquilo depois. Foi ao encontro dela na sacada.
Vittoria mostrou-se contente ao vê-lo.
- Você acordou - murmurou ela, com um ar de timidez afetada. -
Finalmente.
Langdon sorriu.
- O dia de ontem foi longo.
Ela correu a mão pela cabeleira abundante, o decote de seu roupão abrindose
ligeiramente.
- E agora suponho que você queira sua recompensa.
A observação pegou Langdon desprevenido.
- O que... o que foi que disse?
- Somos adultos, Robert. Pode admitir. Você está com vontade. Estou
vendo em seus olhos. Uma fome intensa, carnal. - Ela sorriu. - Eu também. E essa
vontade ardente está prestes a ser satisfeita.
- Está? - ele se animou e deu um passo em direção a ela.
- Completamente - ela lhe estendeu um cardápio de serviço de quarto. -
Pedi tudo o que eles têm aqui.
O banquete foi suntuoso. Os dois jantaram juntos ao luar, sentados na
sacada saboreando uma salada frisée, trufas e risoto. Bebericaram um vinho
Dolcetto e conversaram até tarde da noite.
Langdon não precisaria ter sido especialista em Simbologia para decifrar
todos os sinais que Vittoria lhe mandava. Durante a sobremesa de creme de
amoras raras com savoiardi e o Romcaffe fumegante, Vittoria encostou suas
pernas nuas nas dele sob a mesa e lançou-lhe um olhar carregado de significados.
Parecia estar querendo que ele largasse os talheres naquele instante e a levasse
para dentro em seus braços.
Mas Langdon nada fez. Comportou-se como um perfeito cavalheiro. Este é
um jogo de dois, pensou, disfarçando um sorriso maroto.
Quando acabaram de comer, Langdon foi sentar-se sozinho na beirada de
sua cama, onde ficou virando e revirando o diamante Illuminati nas mãos e
fazendo comentários intermináveis sobre o milagre de sua simetria. Vittoria
olhava fixo para ele, sua incompreensão transformando-se em uma evidente
frustração.
- Você acha esse ambigrama tremendamente interessante, não é? -
perguntou ela.
Langdon concordou.
- Fascinante.
- Diria que é a coisa mais interessante neste quarto?
Langdon coçou a cabeça, fingindo ponderar com cuidado a pergunta.
- Bem, há uma coisa que me interessa mais.
Ela sorriu e se aproximou dele.
- Que é?
- Como você refutou aquela teoria de Einstein usando atuns.
Vittoria lançou os braços para cima.
- Dio mio! Chega desses atuns! Pare de brincar comigo, estou lhe
avisando!
Langdon deu um sorriso largo.
- Em sua próxima experiência, você deveria estudar linguados e provar que
a Terra é plana.
Vittoria estava furiosa, mas os primeiros vestígios de um sorriso
exasperado apareceram em seus lábios.
- Para sua informação, professor, minha nova experiência vai marcar a
história da ciência. Pretendo provar que os neutrinos têm massa.
- Os neutrinos têm massa? - Langdon fez uma cara espantada. - Eu nem
sabia que eles eram comestíveis!
Com um movimento fluido, ela o derrubou e o imobilizou.
- Espero que você acredite na vida depois da morte, Robert Langdon. -
Vittoria ria enquanto se sentava em cima dele, as mãos prendendo-o, os olhos
cheios de malícia.
- Na verdade - disse ele, rindo mais ainda -, sempre achei difícil imaginar
alguma coisa além deste mundo.
- É mesmo? Quer dizer que nunca teve uma experiência religiosa? Um
momento perfeito de êxtase glorioso?
Langdon sacudiu a cabeça, negando.
- Não, e duvido muito que eu seja o tipo de pessoa que jamais possa ter
uma experiência religiosa.
Vittoria deixou cair seu roupão.
- Você nunca foi para a cama com uma mestra de ioga, foi?
Fim