quarta-feira, 25 de março de 2009

CAPÍTULO 61

O ar dentro do Panteão estava frio e úmido, pesado de história, O teto

amplo flutuava no espaço acima como se não tivesse peso algum - um vão livre de

43 metros, maior ainda do que o da cúpula de São Pedro.

Langdon mais uma vez sentiu um arrepio quando entrou no imenso

ambiente. Era uma extraordinária mistura de engenharia e arte. No alto, a famosa

abertura circular no teto brilhava com a luminosidade do sol do entardecer. O

óculo, pensou Langdon, a cova do demônio.

Tinham chegado.

Langdon acompanhou com os olhos o arco do teto descendo para as

paredes com as colunas, o piso de mármore polido sob seus pés. Um leve eco dos

passos e murmúrios dos turistas reverberava pelo domo.

Langdon observou os pouco mais de dez turistas que andavam a esmo nas

sombras. Você está aí?

- Bem calmo o lugar - disse Vittoria, ainda segurando a mão dele.

Langdon fez que sim.

- Qual é a tumba de Rafael?

Langdon parou um instante, tentando se orientar. Examinou a

circunferência do recinto. Tumbas. Altares.

Colunas. Nichos. Indicou um monumento funerário particularmente

ornamentado à esquerda, do outro lado do domo.

- Acho que é aquela.

Vittoria esquadrinhou o resto do ambiente.

- Não vejo ninguém que pareça um assassino prestes a matar um cardeal.

Vamos dar uma olhada por aí?

Langdon concordou e os dois saíram andando.

- Há somente um lugar aqui onde alguém poderia se esconder. É melhor

verificarmos as rientranze.

- Os recessos?

- Isso - ele apontou. - Os nichos na parede.

Ao longo do perímetro, intercalados com as tumbas, havia vários nichos

semicirculares formando cavidades na parede. Embora não fossem enormes, eram

grandes o bastante para esconder alguém. Lamentavelmente, Langdon sabia que

antes continham estátuas dos deuses olímpicos, mas essas esculturas pagãs haviam

sido destruídas quando o Vaticano transformou o Panteão em igreja cristã. Veiolhe

um acesso de frustração por saber que estava no primeiro altar da ciência e o

marco se perdera. Indagava-se qual seria a estátua e para onde teria apontado. Não

concebia emoção maior do que a de encontrar o marco illuminati - a estátua que

indicava sorrateiramente o percurso do Caminho da Iluminação. E de novo

imaginava quem seria o anônimo escultor Illuminati.

- Vou pela esquerda - disse Vittoria, mostrando a metade esquerda da

circunferência. -Você, pela direita.

Nos encontramos daqui a 180 graus.

Ele sorriu amarelo.

Quando ela se afastou, Langdon sentiu o horror da situação infiltrar-se de

novo em sua consciência.

Enquanto se dirigia para a direita, a voz do assassino parecia sussurrar no

espaço vazio que o rodeava.

Oito horas. Sacrifícios de virgens nos altares da ciência. Uma progressão

matemática e mortal. Oito, nove, dez, onze... e à meia-noite. Olhou o relógio de

pulso: 7h52. Oito minutos.

Caminhando para o primeiro nicho, passou pela tumba de um dos reis

católicos da Itália. O sarcófago, como muitos outros em Roma, fora colocado

obliquamente à parede, uma posição meio desajeitada. Um grupo de visitantes

dava a impressão de estar perplexo com aquilo. Langdon não se deteve para

explicar.

As tumbas cristãs muitas vezes não eram alinhadas com a arquitetura para

que ficassem voltadas para o leste. Tratava-se de uma antiga superstição que uma

das turmas de Simbologia de Langdon chegara a discutir no mês anterior.

- Isso é totalmente absurdo! - uma aluna na fila da frente exclamara quando

Langdon explicou a razão por que as tumbas eram viradas para leste. - Por que os

cristãos iriam querer suas tumbas voltadas para o sol nascente? Estamos falando

de cristianismo, não de adoração ao Sol!

Langdon sorriu, andando diante do quadro-negro e comendo uma maçã.

- Senhor Hitzrot! - gritou ele.

Um rapaz que cochilava no fundo da sala sentou-se, sobressaltado.

- Eu?

Langdon apontou para um pôster sobre arte renascentista pendurado na

parede.

- Quem é aquele homem ajoelhado diante de Deus?

-É... um santo?

- Muito bem. E como sabe que é um santo?

- Por causa do halo?

- Excelente, e esse halo dourado lembra alguma coisa?

Hitzrot abriu um sorriso.

- Claro! Aquelas coisas egípcias que estudamos no semestre passado.

Aqueles... humm... discos solares!

- Obrigado, Hitzrot. Pode continuar a dormir. - Langdon dirigiu-se de novo

à turma. - Os halos, como grande parte da simbologia cristã, foram tirados da

antiga religião egípcia baseada na adoração ao Sol. O cristianismo está cheio de

manifestações de adoração ao Sol.

- Desculpe - disse a moça da fila da frente -, mas vou sempre à igreja e não

costumo ver tanta adoração ao Sol assim!

- É mesmo? O que você comemora no dia 25 de dezembro?

- O Natal. O nascimento de Jesus Cristo.

- No entanto, de acordo com a Bíblia, Cristo nasceu em março. Por que,

então, se comemora a data no final de dezembro?

Silêncio.

Langdon prosseguiu.

- O dia 25 de dezembro, meus amigos, é o dia da antiga festa pagã do sol

invictus, o Sol Invicto, que coincidia com o solstício de inverno. É aquela

maravilhosa fase do ano em que o Sol retorna e os dias começam a ficar mais

longos outra vez.

Ele comeu mais um pedaço de maçã e continuou.

- As religiões vitoriosas costumam adotar as festas já existentes para tornar

a conversão menos chocante.

Chama-se a isto de transmutação. Ajuda as pessoas a se acostumarem com

a nova fé. Os devotos mantêm as mesmas datas santas, rezam nos mesmos locais

sagrados, usam uma simbologia semelhante e apenas substituem o deus anterior

por outro diferente.

A essa altura, a moça da frente estava furiosa.

- O senhor está insinuando que o cristianismo não passa de uma espécie de

adoração ao Sol em outra embalagem!

- De jeito nenhum. O cristianismo não tomou elementos emprestados

somente da adoração ao Sol. O ritual da canonização cristã foi tirado do antigo

rito de deificação de Euhemerus. A prática de "comer Deus' ou seja, a Santa

Comunhão, foi copiada dos astecas. Até o conceito de Cristo morrer por nossos

pecados pode-se dizer que não é exclusivamente cristão: o auto-sacrifício de um

rapaz para absolver os pecados de seu povo aparece nos registros das mais

remotas tradições associadas a Quetzalcoatl.

A moça disse, com ar feroz.

- Quer dizer que nada no cristianismo é original?

- Muito pouco em qualquer religião organizada é inteiramente original. As

religiões não começam do zero. Crescem uma a partir da outra. As religiões

modernas são colagens, um registro histórico assimilado do esforço humano para

compreender o divino.

- Espere aí - disse Hitzrot, agora acordado. - Existe uma coisa cristã que é

original. A nossa imagem de Deus. A arte cristã nunca retrata Deus igual a um

falcão, a um animal asteca ou algo esquisito assim.

Sempre mostra Deus como um velho de barba branca. Então, a nossa

imagem de Deus é original, não é?

Langdon sorriu de novo e respondeu.

- Quando os primeiros cristãos convertidos abandonaram suas divindades

anteriores, como os deuses pagãos, os deuses romanos, os deuses gregos, o Sol,

Mitra ou o que seja, eles perguntaram à Igreja com quem se parecia o seu deus

cristão. Sabiamente, a Igreja escolheu o mais temido, o mais poderoso e aquele

cuja aparência era a mais conhecida de que se tinha notícia.

Hitzrot arriscou, cético:

- Um velho com uma barba branca comprida?

Langdon apontou para uma representação da hierarquia de deuses da

antiguidade pendurada na parede.

No alto estava sentado um velho com longas barbas brancas.

- Zeus não lhe parece familiar?

A campainha para encerrar a aula tocou naquele exato momento.

- Boa noite - disse uma voz masculina.

Langdon tomou um susto. Estava de volta ao Panteão. Deu de cara com um

homem idoso usando uma pelerine azul com uma cruz vermelha no peito. O

homem sorriu para ele revelando dentes acinzentados.

- O senhor é inglês, não é? - o homem falava com um sotaque toscano

carregado.

Langdon pestanejou, confuso.

- Não, na verdade, sou americano.

O homem ficou embaraçado.

- Oh, desculpe, mas o senhor está tão bem vestido que pensei... Por favor,

peço mil desculpas.

- Posso ajudá-lo em alguma coisa? - perguntou Langdon, o coração

batendo loucamente.

- Na realidade, achei que talvez eu pudesse ajudá-lo. Sou cicerone

voluntário aqui - e o homem apontou orgulhoso para seu crachá emitido pela

prefeitura da cidade. - Meu trabalho é tornar sua visita a Roma mais interessante.

Mais interessante? Ele tinha certeza absoluta de que aquela visita a Roma

era interessante até demais.

- O senhor parece um homem distinto - o guia bajulou-o -, sem dúvida mais

interessado em cultura do que a maioria das pessoas. Talvez eu possa lhe contar

um pouco da história desta construção fascinante.

Langdon sorriu educadamente.

- Muito obrigado, mas eu sou professor de História da Arte e...

- Ótimo! - o rosto do homem se iluminou como se tivesse acertado na

loteria. - Então, com certeza, o senhor vai apreciar muito mais!

- Obrigado, mas acho que prefiro...

- O Panteão - começou o homem, embarcando em sua arenga decorada -

foi construído por Marcus Agrippa em 27 a.C.

- Sim - interrompeu Langdon -, e reconstruído por Adriano em 119 d.C.

- Era o maior domo do mundo até 1960, quando foi superado pelo

Superdomo de Nova Orleans!

Langdon resmungou em voz baixa. O homem era irreprimível.

- E um teólogo do século V chamou o Panteão de Casa do Demônio e

declarou que a abertura no teto era uma entrada para os demônios!

Langdon desligou-se do que o outro dizia. Ergueu os olhos para o óculo e a

lembrança da cena sugerida por Vittoria projetou uma imagem aterrorizante em

sua mente: um cardeal marcado a fogo despencando através da abertura e

estatelando-se no chão de mármore. Seria de fato um prato cheio para a mídia.

Langdon deu por si procurando repórteres dentro do Panteão. Nenhum.

Respirou fundo. A idéia era absurda. A logística para produzir uma atração como

aquela seria despropositada.

À medida que se deslocava para continuar sua inspeção, o guia tagarela

seguia-o como um cãozinho carente de afeto. Não posso esquecer, disse para si

mesmo, não há nada pior do que um historiador entusiasmado demais.

Do outro lado, Vittoria estava imersa em sua busca. Sozinha pela primeira

vez desde que recebera a notícia sobre seu pai, sentiu a crua realidade das últimas

oito horas fechando-se em torno dela. Seu pai fora assassinado - cruel e

abruptamente. Quase tão dolorosa era a consciência de que o trabalho de seu pai

fora corrompido e agora se tornara um instrumento de terroristas.

Atormentava-a a culpa de ter sido a sua invenção o que permitira que a

anti-matéria pudesse ser transportada. Era o contador eletrônico de seu tubo

especial que agora estava marcando o tempo restante dentro do Vaticano. Na

tentativa de contribuir para a busca de seu pai pela simplicidade da verdade, ela se

transformara em uma conspiradora do caos.

Estranhamente, a única coisa que parecia estar certa em sua vida naquele

momento era a presença de um desconhecido. Robert Langdon. Encontrava um

refúgio inexplicável em seu olhar, como a harmonia dos oceanos que ela deixara

para trás naquela manhã bem cedo. Sentia-se contente por ele estar ali. Não só

fora para ela uma fonte de força e de esperança como utilizara a rapidez de sua

inteligência para encontrar aquela chance única de pegar o assassino de seu pai.

Vittoria respirou fundo e continuou a procurar, andando em torno do

perímetro do Panteão. Estava assoberbada pelos inesperados desejos de vingança

pessoal que haviam dominado seus pensamentos durante todo o dia. Mesmo sendo

uma amante declarada de toda forma de vida, queria ver aquele carrasco morto.

Não haveria bom carma que a fizesse dar a outra face naquele dia. Ao mesmo

tempo alarmada e eletrizada, notava algo correndo em seu sangue italiano que

nunca sentira antes: os sussurros dos ancestrais sicilianos que defendiam a honra

da família com justiça brutal. Vendetta, pensou ela, pela primeira vez

compreendendo o verdadeiro sentido da palavra.

Visões de represálias possíveis incitavam-na a prosseguir. Aproximou-se

da tumba de Rafael Santi. Mesmo à distância, via-se logo que se tratava de uma

figura especial. Seu sepulcro, ao contrário dos outros, possuía uma proteção de

plexiglas e ficava em um nicho da parede. Através da barreira, ela conseguia ver a

frente do sarcófago.

RAPHAEL SANTI, 1483 – 1520

Vittoria examinou o conjunto e depois leu a frase na placa descritiva ao

lado da tumba de Rafael.

Então, leu de novo.

E mais uma vez.

Um segundo depois, saiu correndo pelo Panteão, chamando, horrorizada:

- Robert! Robert!

CAPÍTULO 62

Langdon avançava pelo seu lado do Panteão com uma certa dificuldade por

causa do guia, que não lhe saía dos calcanhares e agora prosseguia em sua

incansável narrativa enquanto Langdon se preparava para verificar o último nicho.

- O senhor está gostando um bocado desses nichos! - disse o guia,

encantado. - Sabia que a espessura gradativamente menor das paredes é que faz o

domo parecer não ter peso?

Langdon fez um gesto com a cabeça, sem prestar atenção e se preparando

para examinar outro nicho. De repente, alguém o agarrou por trás. Era Vittoria.

Ela estava sem fôlego e puxava-o pelo braço. Pela expressão apavorada do rosto

dela, Langdon só podia deduzir uma coisa. Ela havia encontrado um corpo. Uma

nova onda de temor cresceu dentro dele.

- Ah, sua mulher! - exclamou o guia, visivelmente entusiasmado por ter

mais um visitante. Apontou para o short e para as botas de caminhada que ela

usava. - Mas ela com certeza é americana!

Vittoria apertou os olhos.

- Sou italiana.

O sorriso do guia murchou.

- Oh, meu Deus.

- Robert - cochichou Vittoria, tentando dar as costas para o guia. - O

Diagramma de Galileu. Preciso vê-lo.

- Diagramma? - disse o guia, girando de volta nos calcanhares. - Ora, ora!

Vocês dois conhecem história mesmo! Infelizmente, esse documento não pode ser

visto. Está guardado nos Arquivos do Vati...

- Pode nos dar licença um instante? - disse Langdon. Não compreendia o

pânico de Vittoria. Levou-a para um lado e pôs a mão no bolso, tirando de lá com

todo o cuidado o fólio do Diagramma. - O que houve?

- Qual é a data que está escrita aí? - Vittoria perguntou, correndo os olhos

pela folha.

O guia estava junto deles outra vez, olhando para o fólio de boca aberta.

- Esse não é... de verdade...

- É uma reprodução para turistas - mentiu Langdon. - Obrigado por sua

ajuda. Por favor, minha mulher e eu gostaríamos de ficar a sós um instante.

O guia recuou, sem tirar os olhos do papel.

- A data - Vittoria repetiu. - Quando foi que Galileu publicou...

Langdon mostrou um número em algarismos romanos.

- Esta é a data de publicação. O que está acontecendo?

Vittoria decifrou o número.

- 1639?

- É. Alguma coisa errada?

A expressão de Vittoria tornou-se mais carregada com um mau

pressentimento.

- Temos um problema sério, Robert. Muito sério. As datas não combinam.

- Que datas não combinam?

- A tumba de Rafael. Ele só foi enterrado aqui em 1759. Um século depois

do Diagramma ser publicado.

Langdon encarou-a, tentando dar sentido ao que ela dizia.

- Não - replicou -, Rafael morreu em 1520, muito antes do Diagramma.

- Sim, mas ele só foi enterrado aqui muito depois.

Langdon estava perdido.

- O que está dizendo?

- Acabei de ler naquela placa. O corpo de Rafael foi trasladado para o

Panteão em 1758. Como parte de um tributo histórico a italianos eminentes.

Ao assimilar as palavras dela, Langdon teve a impressão de que lhe

puxavam um tapete de baixo dos pés.

- Quando aquele poema foi escrito - afirmou Vittoria -, a tumba de Rafael

era em outro lugar qualquer.

Naquela época, o Panteão não tinha nada a ver com Rafael!

Langdon chegou a ficar sem ar.

- Então, isso quer dizer que...

- Pois é! Que estamos no lugar errado!

Ele cambaleou. Não é possível. Eu tinha tanta certeza...

Vittoria correu e agarrou o braço do guia, puxando-o de volta.

- Signore, desculpe, mas onde estava o corpo de Rafael no século XVII?

- Urb... em Urbino - gaguejou ele, agora parecendo desnorteado. - Onde ele

nasceu.

- Impossível! - Langdon praguejou baixinho. - Os altares da ciência dos

Illuminati eram aqui em Roma.

Tenho certeza!

- Illuminati? - o guia engoliu em seco, olhando de novo para o documento

na mão de Langdon. - Quem são vocês, Deus do céu?

Vittoria tomou a frente.

- Estamos procurando por algo que é chamado de a tumba terrena de Santi.

Em Roma. Sabe o que pode ser?

O homem mostrava-se inquieto.

- Esta foi a única tumba de Rafael em Roma.

Langdon esforçava-se para pensar, mas sua cabeça se recusava a funcionar

direito. Se a tumba de Rafael não estava em Roma em 1639, a que o poema se

referia, então? Da tumba terrena de Santi com a cova do demônio? Que diabos é

isso? Pense!

- Houve outro artista chamado Santi? - perguntou Vittoria.

O guia deu de ombros.

- Não que eu saiba.

- E alguém famoso, qualquer pessoa? Um cientista, um poeta ou um

astrônomo chamado Santi?

O homem agora dava a impressão de querer ir embora.

- Não, senhora. O único Santi de que já ouvi falar era Rafael, o arquiteto.

- Arquiteto? - repetiu ela. - Pensei que ele fosse pintor!

- Era as duas coisas, é claro. Todos eles eram. Michelangelo, Da Vinci,

Rafael.

Langdon não soube se foram as palavras do guia ou as tumbas

ornamentadas em torno dele que abriram sua mente para a revelação, mas não

tinha importância, o pensamento lhe viera. Santi era arquiteto. Daí em diante, a

progressão de idéias evoluiu como se fosse uma fileira de dominós caindo. Os

arquitetos da Renascença viviam por apenas duas razões: para glorificar a Deus

com enormes igrejas e para glorificar dignitários com pródigas tumbas. A tumba

de Santi. Seria possível? As imagens agora lhe vinham mais depressa...

A Mona Lisa de Da Vinci.

Os Nenúfares de Monet.

O Davi de Michelangelo.

A tumba terrena de Santi...

- Santi projetou a tumba - declarou Langdon.

Vittoria virou-se.

- O quê?

- Não é uma referência ao lugar onde Rafael está enterrado, é uma

referência a uma tumba que ele projetou.

- O que é que você está dizendo?

- Eu não compreendi direito a frase. Não é o túmulo de Rafael que estamos

procurando, e sim um túmulo que Rafael projetou para outra pessoa. Não posso

acreditar que deixei passar isto. A metade dos trabalhos de escultura feitos na

Roma renascentista e barroca destinava-se aos monumentos funerários. - E ele riu,

satisfeito com a descoberta. - Rafael deve ter projetado centenas de tumbas!

Vittoria não parecia tão contente.

- Centenas?

O sorriso de Langdon sumiu.

-Ah...

- Alguma delas seria terrena, professor?

De repente, ele se sentiu um incompetente. Sabia muito pouco sobre a obra

de Rafael, era uma vergonha.

Se fosse Michelangelo, teria sido mais fácil, mas o trabalho de Rafael

nunca o atraíra tanto. Só se lembrava de umas duas tumbas mais famosas de

Rafael, mas talvez nem soubesse descrevê-las.

Percebendo o bloqueio de Langdon, Vittoria dirigiu-se ao guia, que ia

saindo de fininho. Segurou o braço dele e puxou-o, fazendo com que ficasse de

frente para ela.

- Preciso de uma tumba. Projetada por Rafael. Uma tumba que possa ser

considerada terrena.

O homem fez uma cara desconsolada.

- Uma tumba de Rafael? Não sei. Ele projetou tantas! Talvez queira dizer

uma capela de Rafael, não uma tumba. Os arquitetos sempre desenhavam as

capelas junto com as tumbas.

Ele tinha razão. Langdon perguntou:

- Existe alguma tumba ou capela de Rafael considerada terrena?

- Sinto muito - o outro respondeu -, não sei o que quer. A palavra terrena

não se aplica a nada que eu conheça. Tenho de ir embora.

Vittoria estendeu o braço e leu a linha de cima do fólio:

- Da tumba terrena de Santi com a cova do demônio. Significa algo para o

senhor?

- Não, nada.

Langdon levantou a cabeça. Esquecera momentaneamente a segunda parte

do verso. A cova do demônio?

- Já sei! - ele disse para o guia. - É isso! Sabe se alguma das capelas de

Rafael tem um óculo?

O guia sacudiu a cabeça.

- Pelo que sei, o Panteão é o único... - ele fez uma pausa - mas...

- Mas o quê? - exclamaram os dois em uníssono.

O homem então inclinou a cabeça para o lado e andou na direção deles

Outra vez.

- Cova do demônio.., seria o mesmo que... buco diàvolo?

- Literalmente, sim - confirmou Vittoria.

O homem deu um ligeiro sorriso.

- Aí está uma expressão que não escuto faz tempo. Se não me engano, buco

diàvolo é uma abóbada subterrânea.

- Uma abóbada subterrânea? - perguntou Langdon. - Uma cripta?

- É, mas um tipo específico de cripta. Acho que cova do demônio é uma

expressão antiga para uma enorme cavidade funerária localizada em uma capela e

sob uma outra tumba.

- Um ossário anexo? - indagou Langdon, identificando imediatamente o

que o homem descrevia.

O guia, impressionado, confirmou.

- É! Era exatamente essa a palavra que eu estava procurando!

Langdon considerou a possibilidade. Os ossários anexos eram uma solução

barata oferecida pelas igrejas para um incômodo dilema.

Quando as igrejas homenageavam seus membros mais distintos com

tumbas ornamentadas dentro do santuário, os familiares sobreviventes dessas

pessoas freqüentemente pediam que o resto da família fosse enterrado junto,

garantindo assim um cobiçado espaço para suas sepulturas dentro da igreja. No

entanto, se a igreja não tivesse espaço ou recursos para criar tumbas para uma

família inteira, havia a alternativa de cavar um ossário anexo - um buraco no chão

perto da tumba principal, onde se enterravam os membros menos ilustres da

família. Esse buraco então era fechado com o equivalente renascentista de uma

tampa de bueiro. Apesar de conveniente, o ossário anexo logo saiu de moda por

causa do mau cheiro que muitas vezes exalava e se espalhava pela catedral. Cova

do demônio, pensou. Nunca ouvira a expressão antes.

Era sinistramente apropriada à situação.

O coração dele batia acelerado. Da tumba terrena de Santi com a cova do

demônio. Havia apenas mais uma pergunta a fazer.

- Rafael desenhou tumbas com essas covas do demônio?

O guia coçou a cabeça.

- Na verdade, desculpem, mas só me lembro de uma.

Só uma? Não poderia haver resposta melhor.

- Onde? - Vittoria quase gritou.

O guia fitou-os de modo estranho.

- Chama-se Capela Chigi. Túmulo de Agostino Chigi e de seu irmão, ricos

patronos das artes e das ciências.

- Ciências? - exclamou Langdon, trocando um olhar com Vittoria.

- Onde? - Vittoria perguntou de novo.

O guia ignorou a pergunta, de novo entusiasmado em poder prestar serviço.

- Se a tumba é terrena ou não, isto não sei dizer, mas sem dúvida é,

digamos, diferente.

- Diferente? Como assim?

- Incoerente com a arquitetura. Rafael só foi o arquiteto. Um outro escultor

fez a decoração interior, não me lembro quem.

Langdon era todo ouvidos. O mestre Illuminati anônimo, talvez?

- Quem quer que seja ele, os monumentos do interior da capela são de

muito mau gosto - disse o guia. -

Dio mio! Que atrocidade! Quem iria querer ser enterrado sob pirâmides?

Langdon mal podia acreditar.

- Pirâmides? A capela contém pirâmides?

- Pois é! - o guia escarneceu. Terrível, não é?

Vittoria puxou a manga do guia.

- Signore, onde fica essa Capela Chigi?

- Mais ou menos a um quilômetro e meio daqui, na direção norte. Na Igreja

de Santa Maria dei Popolo.

Ela suspirou.

- Obrigada. Vamos...

- Ei... - disse o guia. - Acabei de lembrar de uma coisa. Que idiota eu sou.

Vittoria parou.

- Não me diga que se enganou.

Ele sacudiu a cabeça.

- Não, mas isso deveria ter me ocorrido antes. A Capela Chigi nem sempre

foi conhecida por este nome, Chigi. Antes era chamada de Capella della Terra.

- Capela da Terra! - exclamou Langdon.

Vittoria já estava seguindo direto para a porta.

Vittoria Vetra sacou de seu celular enquanto corria pela Piazza delia

Rotonda.

- Comandante Olivetti - disse -, estamos no lugar errado!

Incrédulo, Olivetti repetiu.

- Errado? Como, como?

- O primeiro altar da ciência é na Capela Chigi!

- Onde? - agora, a voz dele estava zangada. - Mas o senhor Langdon

disse...

- Santa Maria dei Popolo! A um quilômetro e meio daqui rumo ao norte.

Leve seus homens para lá agora!

Temos só quatro minutos!

- Mas meus homens estão posicionados aqui! Não tenho como...

- Ande! - Vittoria fechou o telefone com um estalo.

Atrás dela, tonto, saindo do Panteão, vinha Langdon.

Vittoria puxou-o pela mão na direção de uma fila de táxis aparentemente

sem motoristas que esperavam junto ao meio-fio. Ela socou o capô do primeiro

carro da fila. O motorista adormecido aprumou-se com um salto dando um grito

de susto. Vittoria escancarou a porta de trás, empurrou Langdon para dentro e

pulou para o assento ao lado dele.

- Santa Maria dei Popolo - ordenou. - Presto!

Frenético e meio aterrorizado, o motorista pisou fundo no acelerador e saiu

numa correria desabalada pela rua.

CAPÍTULO 63

Gunther Glick assumira o controle do computador, em vez de Chinita

Macri, que agora estava curvada no banco de trás do atravancado furgão da BBC

espiando a tela por cima do ombro dele.

- Eu disse a você - falou Glick digitando mais algumas palavras. - O British

Tattler não é o único jornal que publica histórias sobre esses caras.

Macri chegou mais perto para enxergar melhor. Ele tinha razão. O banco

de dados da BBC mostrava que sua distinta rede de emissoras havia descoberto e

publicado seis matérias nos últimos dez anos sobre a fraternidade chamada

Illuminati. Bem, agora tenho de dar minha cara a tapa, pensou ela.

- Quem foram os jornalistas que redigiram as matérias? - perguntou Macri.

- Os de quinta?

A BBC não contrata jornalistas de quinta categoria.

- Mas contratou você.

Glick ficou carrancudo.

- Não sei por que você é tão cética. Os Illuminati estão bem documentados

através da História.

- As bruxas, os OVNIs e o monstro do Lago Ness também.

Glick leu a lista de matérias.

- Já ouviu falar de um sujeito chamado Winston Churchill?

- O nome não me é estranho.

- A BBC fez um documentário há algum tempo sobre a vida de Churchill.

Bastante liberal, aliás. Sabia que, em 1920, Churchill publicou uma declaração

condenando os Illuminati e prevenindo os ingleses sobre uma conspiração de

âmbito mundial contra a moralidade?

Macri replicou, irônica:

- E onde saiu? No British Tattler?

Ele sorriu.

- Não, no London Herald. Em 8 de fevereiro de 1920.

- Não é possível.

- Veja para crer.

E ela leu: London Herald. 8 de fev.,1920. Que coisa, jamais pensei...

- Bem, Churchill era meio paranóico.

- E não foi só ele - disse Glick, continuando a ler. - Parece que Woodrow

Wilson fez três pronunciamentos pelo rádio em 1921 chamando a atenção para o

controle crescente dos Illuminati sobre o sistema bancário norte-americano. Quer

ouvir um pedaço da transcrição de um desses pronunciamentos?

- Acho que não.

Mas ele leu a citação assim mesmo.

- Ele disse: "Existe um poder tão organizado, tão sutil, tão completo, tão

penetrante que ninguém deve falar em voz alta quando fizer críticas a ele."

- Nunca ouvi nada sobre eles.

- Talvez porque em 1921 você fosse muito pequena.

- Engraçadinho.

Macri não ligou para a indireta. Sabia que aparentava a própria idade. Com

43 anos, seus cerrados caracóis negros estavam estriados de cinza. Era orgulhosa

demais para pintá-los. Sua mãe, sulista e batista, ensinara Chinita a ter amorpróprio

e a ser uma pessoa contente consigo mesma. Se você é uma mulher negra,

dizia sua mãe, não há como esconder. Se tentar, vai se dar mal. Levante a cabeça,

sorria bonito e deixe os outros quererem descobrir qual é o segredo que faz você

rir.

- Sabe quem é Cecil Rhodes? - perguntou Glick.

Macri olhou para ele.

- O financista inglês?

- Esse mesmo. Fundou a famosa instituição com o seu nome, a que

distribui bolsas de estudo.

- Não me diga que...

- Um Illuminatus.

- Mentira.

- Não. BBC, 16 de novembro de 1984.

- Nós escrevemos que Cecil Rhodes era um Illuminatus?

- Com todas as letras. E, segundo a nossa rede de emissoras, as bolsas de

estudo Rhodes eram fundos estabelecidos séculos atrás para recrutar as mentes

jovens mais brilhantes do mundo para as fileiras dos Illuminati.

- Isso é ridículo! Meu tio foi um bolsista Rhodes!

Glick piscou um olho.

- Bill Clinton também.

Macri já estava ficando zangada àquela altura. Nunca tivera paciência com

o jornalismo sensacionalista, de baixa qualidade. Ainda assim, conhecia bem a

BBC e sabia que toda matéria que a rede divulgava era cuidadosamente

pesquisada e confirmada.

- E desta aqui você deve lembrar - disse Glick. - BBC, 5 de março de 1998.

O presidente da Câmara dos Comuns no Parlamento Britânico, Chris Mullin,

determinou que todos os membros que fossem maçons declarassem abertamente

sua filiação.

Macri de fato se lembrava. O decreto acabara incluindo também policiais e

juízes.

- Qual foi mesmo o motivo alegado?

Glick leu: "...preocupação que facções secretas dentro da maçonaria

exercessem controle significativo sobre os sistemas político e financeiro."

- Isso mesmo.

- Causou um tremendo alvoroço. Os maçons do Parlamento ficaram

furiosos. Com razão. A grande maioria era composta de homens inocentes que

haviam entrado para a maçonaria com o objetivo de estabelecer uma rede de

contatos e realizar obras de caridade. Desconheciam completamente as antigas

filiações da fraternidade.

- Supostas filiações.

- Seja lá o que for. - Glick correu os olhos pelos artigos. - Veja só. Há

relatos que associam os illuminati a Galileu, aos Guerenets, na França, aos

Alumbrados, na Espanha. Até a Karl Marx e à Revolução Russa.

- A História sempre encontra um jeito de se corrigir.

- Ótimo, quer algo mais atual? Dê uma olhada nisto. Uma referência aos

Illuminati em um número recente do Wall Street Journal.

O nome chamou a atenção de Macri.

- O Journal?

- Adivinhe qual é o jogo de computador pela Internet mais popular nos

Estados Unidos hoje em dia?

- Coloque uma Cauda em Pamela Anderson.

- Quase. Chama-se Illuminati: Nova Ordem Mundial.

Macri leu por cima do ombro dele a sinopse do jogo. "Steve Jackson

Games tem um jogo que é um sucesso estrondoso, uma aventura semi-histórica na

qual uma antiga fraternidade satânica da Bavária se mobiliza para tomar conta do

mundo. Você pode encontrá-lo on-line em..." Macri interrompeu a leitura com

uma sensação de repugnância.

- O que esses Illuminati têm contra o cristianismo?

- Não é só contra o cristianismo - disse Glick -, é contra a religião em geral.

- Ele inclinou a cabeça para o lado e esticou os lábios em um sorriso largo.

- Embora, pelo que ouvi no telefonema que nós acabamos de receber,

pareça que eles têm mesmo um fraco pelo Vaticano.

- Ora, tenha dó, você acha mesmo que o cara que ligou é quem diz que é?

- Um mensageiro dos Illuminati? Que está se preparando para matar quatro

cardeais? - Glick sorriu. - Tomara que seja.

CAPÍTULO 64

O táxi de Langdon e Vittoria completou a corrida desenfreada de cerca de

um quilômetro e meio pela ampla Via delia Scrofa em pouco mais de um minuto.

Pararam com uma freada barulhenta no lado sul da Piazza dei Popolo quase às

oito horas. Como não tinha liras, Langdon teve de pagar o motorista em dólares, e

a mais. Ele e Vittoria saltaram depressa do carro. A piazza estava sossegada,

exceto pelas risadas de um grupo de freqüentadores sentados do lado de fora do

popular Rosati Caffè, um local favorito dos literatos italianos. A brisa cheirava a

café expresso e a massa de torta.

Langdon ainda estava em estado de choque por causa de seu engano no

Panteão. Bastou um rápido olhar para aquela praça, porém, e seu sexto sentido

começou a dar avisos. A piazza estava sutilmente impregnada de significados

próprios dos Illuminati. Não só a sua forma era uma elipse perfeita, como no

centro exato erguia-se um enorme obelisco egípcio, uma coluna quadrada de

pedra com uma ponta distintamente piramidal. Despojos dos saques da Roma

imperial, os obeliscos espalhavam-se por toda a cidade e eram chamados pelos

simbologistas de "Pirâmides Elevadas' extensões voltadas para o céu da sagrada

forma piramidal.

Enquanto contemplava o monolito, porém, sua atenção foi atraída para algo

mais ao fundo. Algo ainda mais extraordinário.

- Estamos no lugar certo - disse em voz baixa, sentindo uma cautela

repentina. - Dê uma espiada naquilo. - E apontou para a imponente Porta del

Popolo, a grande arcada de pedra na extremidade oposta da piazza.

Havia séculos que aquela estrutura se elevava acima da praça. No meio do

ponto mais alto do arco destacava-se um relevo simbólico. - Já viu aquilo antes

em algum lugar?

Vittoria examinou o imenso relevo.

- Uma estrela brilhando em cima de uma pilha triangular de pedras?

Langdon fez que sim.

- Uma fonte de iluminação, de esclarecimento, em cima de uma pirâmide.

Vittoria arregalou os olhos.

- Igual ao sinete dos Estados Unidos?

- Exato. O símbolo maçônico na nota de um dólar.

Vittoria tomou fôlego e correu os olhos pela praça.

- Então, onde fica essa bendita igreja?

A Igreja de Santa Maria dei Popolo, colocada de través na base de uma

colina na extremidade sudoeste da piazza, lembrava um deslocado navio de

guerra. A alta construção de pedra do século XI parecia ainda mais desajeitada

com a torre de andaimes que lhe cobria a fachada.

Os pensamentos de Langdon eram um borrão enquanto eles se

encaminhavam apressados para o edifício.

Olhava para a igreja, atônito. Será que um assassinato iria mesmo se

realizar lá dentro? Torcia para que Olivetti chegasse depressa. O revólver em seu

bolso dava-lhe uma sensação incômoda.

As escadas na frente da igreja eram ventaglio - em acolhedor formato de

leque -, uma ironia, no caso, porque estavam bloqueadas por andaimes, material

de construção e uma placa com um aviso:

CONSTRUZIONE. NON ENTRARE.

Uma igreja fechada para reformas significava total privacidade para um

assassino. Ao contrário do Panteão. Aqui não havia necessidade de truques

fantasiosos. Bastava achar um modo de entrar. Vittoria esgueirou-se sem

hesitação entre os cavaletes e subiu a escada.

- Vittoria - Langdon, precavido, lembrou -, se ele ainda estiver aí...

Vittoria não lhe deu ouvidos. Subiu para o pórtico principal onde se

encontrava a única porta da igreja, de madeira. Langdon subiu correndo as

escadas atrás dela. Antes que ele pudesse falar qualquer coisa, ela segurou a

maçaneta da porta e puxou-a. Langdon prendeu a respiração. A porta nem se

mexeu.

- Deve haver outra entrada - disse ela.

- Provavelmente - disse Langdon, soltando o ar dos pulmões -, mas Olivetti

vai estar aqui em um minuto. É perigoso demais entrar agora. Deveríamos ficar

tomando conta da igreja daqui até...

Vittoria virou-se para ele, fulminando-o com os olhos.

- Se existe outra entrada, existe outra saída. Se esse cara sumir, estamos

fungiti.

O italiano de Langdon era suficiente para saber que ela estava certa.

O corredor do lado direito da igreja era apertado e escuro, com muros altos

dos dois lados. Cheirava a urina, um odor comum em uma cidade em que o

número de bares superava o de banheiros públicos na proporção de 20 para 1.

Langdon e Vittoria mergulharam na fétida penumbra. Uns dez metros

depois, Vittoria apertou o braço de Langdon e apontou para algo adiante.

Langdon também tinha visto. Tratava-se de uma porta simples de madeira

com pesadas dobradiças. Ele a identificou como a habitual porta sacra - uma

entrada particular para o clero. Fazia tempo que a maioria dessas portas deixara de

ser usada, à medida que o avanço dos prédios novos e as limitações do setor

imobiliário iam banindo as entradas laterais para vielas incômodas.

Vittoria correu para a porta. Ao chegar, olhou para baixo, perplexa,

procurando a maçaneta. Langdon aproximou-se por trás e viu a peculiar argola em

forma de rosquinha pendurada onde deveria estar a maçaneta.

- Um annulus - ele cochichou. Estendeu a mão e, sem fazer ruído, segurou

o anel e puxou-o para si.

Ouviu-se um dique. Vittoria mexeu-se, de repente inquieta. Em silêncio,

Langdon torceu o anel no sentido horário. O anel girou em falso 360 graus sem se

encaixar. Langdon franziu a testa e tentou a outra direção, com o mesmo

resultado.

Vittoria examinou o resto da viela.

- Será que pode haver outra entrada?

Ele achava que não. A maioria das igrejas da Renascença fora projetada

para funcionar também como fortaleza improvisada caso a cidade fosse tomada de

assalto. Por isso tinham o menor número possível de entradas.

- Se houver outra entrada - disse ele -, vai estar provavelmente escondida

no bastião dos fundos, mais uma saída para fugas do que uma entrada.

Vittoria já estava a caminho.

Langdon seguiu-a um bom pedaço pela viela. Os muros elevavam-se dos

dois lados. Em algum lugar, um sino bateu oito horas...

Robert Langdon não escutou quando Vittoria o chamou pela primeira vez.

Ele parara junto a uma janela de vitral protegida por barras de ferro e estava

tentando enxergar o interior da igreja.

- Robert! - a voz dela vinha em um sussurro alto.

Langdon levantou a cabeça. Vittoria estava no final da viela. Apontava

para os fundos da igreja e acenava para que ele se aproximasse. Ele trotou com

relutância na direção dela. Na base da parede traseira, um bastião de pedra

projetava-se para fora escondendo uma cavidade estreita, uma espécie de

passagem apertada que ia direto para a base da igreja.

- É uma entrada? - perguntou Vittoria.

Langdon concordou. Na realidade, trata-se de uma saída, mas não vamos

discutir esses detalhes agora.

Vittoria ajoelhou-se e espiou para dentro do túnel.

- Vamos examinar a porta, ver se está aberta.

Ele abriu a boca para objetar, mas ela o pegou pela mão e puxou.

- Espere - disse Langdon.

Ela se virou para ele, impaciente.

Ele suspirou.

- Eu vou na frente.

Vittoria surpreendeu-se.

- Mais cavalheirismo?

- A idade antes da beleza.

- Isso foi um elogio?

Langdon sorriu e passou à frente dela para a escuridão.

- Cuidado com os degraus.

Ele avançou aos poucos, às cegas, com uma das mãos na parede lateral.

Sentia a aspereza da pedra nas pontas dos dedos. Por um instante, lembrou-se do

velho mito de Dédalo, de como o rapaz manteve a mão na parede através do

labirinto do Minotauro, sabendo que com certeza encontraria o fim se jamais

interrompesse o contato com a parede. Langdon seguia em frente sem saber muito

bem se queria encontrar o fim.

O túnel estreitou-se ligeiramente e Langdon diminuiu o ritmo. Sentia

Vittoria bem atrás dele. A parede fez uma curva para a esquerda e o túnel se abriu

em um nicho semicircular. Estranhamente, havia uma luminosidade fraca ali. Na

penumbra, Langdon divisou o contorno de uma grossa porta de madeira.

- Opa - disse ele.

- Trancada?

- Estava.

- Estava? - Vittoria veio para o lado dele.

Ele apontou. Iluminada por uma réstia de luz que vinha de dentro, a porta

pendia entreaberta, as dobradiças quebradas por um pé-de-cabra ainda preso à

madeira.

Os dois ficaram parados em silêncio por um instante. Então, no escuro,

Langdon sentiu as mãos de Vittoria em seu peito, tateando, esgueirando-se para

dentro de seu casaco.

- Calma, professor - disse ela. - Só estou querendo pegar o revólver.

Naquele momento, dentro dos museus do Vaticano, uma força-tarefa de

guardas suíços espalhava-se em todas as direções. A área estava às escuras e por

isso eles usavam óculos especiais infravermelhos produzidos pelo Corpo de

Fuzileiros Navais norte-americano. Os óculos faziam tudo aparecer sob um

lúgubre tom de verde. Todos os guardas usavam fones de ouvido ligados a um

detector parecido com uma antena que oscilava ritmicamente à frente deles - os

mesmos aparelhos que utilizavam duas vezes por semana para fazer a varredura

de grampos eletrônicos nas dependências do Vaticano. Movimentavam- se de

maneira metódica, verificando atrás de estátuas, no interior de nichos, dentro de

armários, sob os móveis. As antenas produziriam um ruído característico se

detectassem qualquer campo magnético por menor que fosse.

Naquela noite, porém, não estavam emitindo nenhum sinal.

CAPÍTULO 65

O interior de Santa Maria dei Popolo era como uma caverna tenebrosa na

claridade que se extinguia aos poucos. Parecia mais uma estação de metrô em

obras do que uma catedral. A nave central assemelhava- se a uma pista de

obstáculos, com montes de pedaços do piso arrancado, tijolos, areia, carrinhos de

mão e até uma escavadeira enferrujada. Colunas gigantescas erguiam-se do chão

sustentando o teto abobadado. No ar, uma poeira fina flutuava quase imóvel

contra o brilho embaçado dos vitrais. Langdon e Vittoria encontravam-se sob um

extenso afresco de Pinturicchio e corriam os olhos pelo santuário desmantelado.

Nada se movia. Havia um silêncio mortal.

Vittoria segurou o revólver com as duas mãos estendidas diante de si.

Langdon verificou seu relógio: 8h04 da noite. Somos malucos por vir aqui,

pensou. É perigoso demais. No entanto, sabia que se o assassino estivesse dentro

da igreja poderia sair pela porta que quisesse e, portanto, seria completamente

inútil ficarem à espreita do lado de fora com uma única arma. O jeito seria pegá-lo

ali dentro, isto é, se ele ainda não tivesse ido embora. Langdon culpava-se pelo

fiasco que os fizera perder tempo no Panteão. Não lhe cabia agora insistir em

precauções. Era ele o responsável por estarem naquele beco sem saída.

Vittoria, aflita, examinava a igreja.

- Então - cochichou ela -, onde é que fica essa Capela Chigi?

Langdon olhou para a parte de trás da catedral através daquela meia-luz

fantasmagórica e estudou as paredes externas. Ao contrário do que se costuma

pensar, as catedrais renascentistas invariavelmente tinham diversas capelas, sendo

que grandes catedrais como a Notre-Dame possuíam muitas. Essas capelas não

eram aposentos e sim vãos, concavidades - nichos semicirculares contendo tumbas

ao longo do perímetro da igreja.

Más notícias, pensou Langdon ao divisar quatro recessos em cada uma das

paredes laterais. Havia um total de oito capelas. Embora oito não fosse um

número tão exagerado assim, as quatro aberturas estavam cobertas com imensos

plásticos transparentes por causa da obra, as cortinas translúcidas provavelmente

tendo a função de proteger da poeira as tumbas que ficavam dentro das capelas.

- Pode ser qualquer um desses espaços cobertos - respondeu Langdon.

- Não há como saber qual é a Capela Chigi sem olhar dentro de cada um. O

que é uma boa razão para esperar por Oliv...

- Qual é a segunda abside à esquerda? - perguntou ela.

Surpreso ao vê-la dominar a terminologia de arquitetura, ele repetiu:

- Segunda abside à esquerda?

Vittoria mostrou a parede atrás de si. Havia um azulejo decorativo

engastado na pedra. Nele estava gravado o mesmo símbolo que tinham visto do

lado de fora - uma pirâmide sob uma estrela reluzente. Ao lado, em uma placa

suja de poeira, lia-se:

BRASÃO DE ALEXANDER CHIGI

CUJA TUMBA ESTÁ LOCALIZADA NA

SEGUNDA ABSIDE À ESQUERDA DESTA CATEDRAL

Quer dizer que o brasão dos Chigi era uma pirâmide e uma estrela?, pensou

Langdon. E conjeturou se o abastado patrono Chigi não teria sido um Illuminatus.

Cumprimentou Vittoria.

- Bom trabalho, Nancy Drew.

- O quê?

- Nada. Eu...

Uma peça de metal caiu no chão a apenas alguns metros deles. O barulho

ecoou pela igreja inteira.

Langdon puxou Vittoria para trás de uma coluna e ela, ao mesmo tempo,

apontou o revólver para a direção de onde vinha o ruído, mantendo-o firme.

Silêncio. Eles esperaram. De novo, ouviu-se um som, dessa vez um ruído

farfalhante. Langdon prendeu a respiração. Nunca deveria ter consentido em

virmos para cá! O barulho ficou mais próximo, um som intermitente de um pé se

arrastando, como o de um homem que mancasse. Súbito, junto à base da coluna,

apareceu algo assustador.

- Figlio di una puttana! - xingou Vittoria em voz baixa, pulando para trás.

Langdon recuou junto com ela.

Ao lado da coluna, arrastando um sanduíche meio comido e embrulhado

em papel, havia um rato enorme.

A criatura parou quando deu com eles, examinou longamente o cano do

revólver de Vittoria e depois, sem se abalar, continuou a arrastar sua presa para

algum recanto da igreja.

- Filho da... - arquejou Langdon, o coração em disparada.

Vittoria abaixou a arma, recompondo-se rapidamente. Langdon esticou a

cabeça e viu, do outro lado da coluna, a lancheira de um operário caída no chão,

que o engenhoso rato derrubara de cima de um cavalete.

Langdon procurou alguma coisa em movimento dentro da igreja e

sussurrou:

- Se o sujeito está aqui, é claro que ouviu isso. Tem certeza de que não quer

esperar por Olivetti?

- Segunda abside à esquerda - repetiu Vittoria -, onde é?

A contragosto, Langdon tentou se orientar. A terminologia das catedrais

era igual à das instruções para a representação de uma peça teatral - o inverso do

que manda o instinto. Ficou de frente para o altar-mor.

Centro do palco. Então, apontou com seu polegar para trás por cima do

ombro.

Os dois se viraram e olharam para onde ele apontava.

A Capela Chigi estava localizada no terceiro dos quatro recessos à direita

deles. A boa notícia é que eles estavam do lado certo da igreja. A má é que

estavam na extremidade errada. Teriam de percorrer toda a extensão da catedral e

passar por três outras capelas, todas elas, assim como a Capela Chigi, cobertas por

cortinas de plástico translúcido.

- Espere - disse ele. - Vou na frente.

- Nem pensar.

- Fui eu quem fez a besteira de ir para o Panteão.

- Mas sou eu quem está com o revólver.

Ele via refletido em seu olhar, porém, o que ela estava realmente pensando.

Fui eu quem perdeu o pai.

Fui eu quem ajudou a criar uma arma de destruição em massa. Quero a pele

desse sujeito.

Langdon concluiu que era inútil insistir e deixou-a ir. Foi andando ao lado

dela, cautelosamente, pelo lado leste da basílica. Ao deixarem para trás a primeira

capela coberta, Langdon, tenso, sentiu-se como um concorrente de um daqueles

jogos da televisão. Escolho a cortina número três, pensou.

A igreja estava silenciosa, as grossas paredes de pedra bloqueavam todo

vestígio do mundo exterior. Ao passarem pelas absides, pálidas formas humanas

oscilavam como fantasmas atrás dos plásticos farfalhantes. Esculturas de

mármore, ele disse para si mesmo, torcendo para estar certo. Eram 8h06 da noite.

Será que o assassino tinha sido pontual e caído fora antes que eles entrassem na

igreja? Ou ainda estava lá dentro? Langdon não sabia bem o que era pior.

Passaram pela segunda abside, sinistra na escuridão crescente da catedral.

A noite parecia estar caindo mais depressa, acentuada pelo colorido embaçado dos

vitrais. Quando seguiam adiante, a cortina de plástico a seu lado enfunouse

subitamente, como se fosse agitada por uma corrente de ar. Langdon se perguntou

se alguém em algum lugar teria aberto uma porta.

Vittoria diminuiu o passo quando a terceira capela surgiu diante deles.

Segurou o revólver à sua frente, indicando com a cabeça a estela ao lado da

abside. Em um bloco de granito havia duas palavras esculpidas:

CAPELLA CHIGI.

Langdon confirmou com um gesto. Sem fazer ruído, foram para um canto

da abertura, postando-se atrás de uma larga coluna. Dali, Vittoria curvou-se e

apontou o revólver para o plástico. Depois, fez sinal para Langdon afastar o

plástico.

Uma boa hora para começar a rezar, pensou ele. Relutante, estendeu o

braço por cima do ombro dela. Com o maior cuidado possível, começou a puxar o

plástico para o lado. O plástico deslocou-se alguns centímetros e encrespou-se

com um ruído alto. Os dois ficaram imóveis. Silêncio. Após um instante, em

câmara lenta, Vittoria inclinou-se para a frente e espiou através da brecha estreita.

Langdon espiou também, ainda por cima do ombro dela.

Por alguns segundos, nenhum dos dois sequer respirou.

- Vazia - disse Vittoria, afinal, abaixando a arma. - Chegamos tarde

demais. Langdon não escutou. Estava deslumbrado, transportado em um instante

para outro mundo. Jamais imaginara em toda a sua vida uma capela como aquela.

Inteiramente executada em mármore castanho, a Capela Chigi era de tirar o

fôlego. Seu olho treinado devorava tudo avidamente, às porções. A capela não

poderia ser mais terrena, quase como se Galileu e os Illuminati a tivessem

desenhado eles próprios.

No alto, a cúpula abobadada brilhava com um campo de estrelas

iluminadas e os sete planetas astronômicos. Abaixo, os sete signos do zodíaco -

símbolos pagãos, terrenos, cuja origem está associada à astronomia. O zodíaco

também estava ligado diretamente a Terra, Ar, Fogo e Água, os quadrantes

representando o poder, o intelecto, o ardor e a emoção respectivamente. Terra

corresponde a poder, recordou Langdon.

Mais adiante, ele viu na parede tributos às quatro estações temporais da

Terra - primavera, esta te, autunno, invérno. O mais incrível de tudo, porém, eram

as duas imensas estruturas que se elevavam no local. Langdon contemplava-as em

silêncio, pasmo. Não pode ser, pensava. Não é possível! Mas era.

De cada lado da capela, em rigorosa simetria, havia duas pirâmides de

mármore de três metros de altura.

- Não estou vendo nenhum cardeal - cochichou Vittoria. - Nem um

assassino.

Ela afastou o plástico e entrou na capela.

Os olhos de Langdon estavam fixos nas pirâmides. O que essas pirâmides

estão fazendo dentro de uma capela cristã? E, inacreditavelmente, ainda havia

mais. No centro de cada pirâmide, engastados em suas fachadas, encontravam- se

dois medalhões de ouro, medalhões como poucos que Langdon jamais vira:

elipses perfeitas. Os discos polidos brilhavam à luz do sol poente que se infiltrava

pela cúpula. As elipses de Galileu? Pirâmides? Uma abóbada de estrelas? O

aposento tinha mais significado Illuminati do que se Langdon o tivesse inventado

em sua cabeça.

- Robert - Vittoria disse abruptamente, a voz trêmula. - Olhe!

Langdon girou nos calcanhares, voltando à realidade ao bater com os olhos

no que ela estava mostrando.

- Raios! - gritou ele, pulando para trás.

Rindo com escárnio para eles do chão havia a imagem de um esqueleto -

um mosaico de mármore intricadamente detalhado representando "a morte em

vôo". O esqueleto carregava uma placa com a mesma imagem da pirâmide e

estrela que tinham visto lá fora. Não havia sido a figura, entretanto, que gelara o

sangue de Langdon. Fora o fato de estar encaixada em uma pedra circular -

chamada cupermento - que tinha sido removida como uma tampa de poço e estava

agora pousada ao lado de uma negra abertura no piso.

- A cova do demônio - disse Langdon com voz entrecortada.

Ele ficara tão absorto no teto que nem notara aquilo. Aproximou-se

devagar do poço. O mau cheiro que vinha dali era insuportável.

Vittoria colocou a mão sobre a boca.

- Che puzzo.

- Eflúvios - disse ele. - Emanações de ossos em decomposição. - Ele

respirou através da manga de sua roupa e inclinou-se para o buraco tentando

distinguir algo dentro dele. Trevas completas. - Não enxergo nada.

- Será que tem alguém lá embaixo?

- Não dá para saber.

Vittoria mostrou a outra extremidade do buraco, onde uma escada de

madeira apodrecida descia para as profundezas.

Langdon sacudiu a cabeça.

- Nem pensar.

- Talvez haja uma lanterna aí fora, junto com aquelas ferramentas. - Ela

parecia ansiosa por uma desculpa para escapar do mau cheiro. - Vou procurar.

- Cuidado! - preveniu ele. - Não temos certeza se o assassino...

Mas Vittoria já se fora.

Mulher voluntariosa, pensou Langdon.

Ao se virar de novo para a cova, ficou um pouco tonto com as emanações.

Prendendo a respiração, deixou a cabeça cair abaixo da borda e esforçou-se para

ver alguma coisa na escuridão. Lentamente, conforme seus olhos se acostumavam,

começou a divisar vagas formas lá embaixo. A cova parecia dar em uma pequena

câmara. A cova do demônio. Pensou em quantas gerações de Chigi teriam sido

jogadas ali sem a menor cerimônia. Fechou os olhos e esperou, forçando suas

pupilas a se dilatarem para enxergar melhor no escuro. Quando abriu os olhos de

novo, uma figura muda e esmaecida pairou nas trevas. Langdon estremeceu, mas

lutou contra a vontade instintiva de sair, de se levantar. Estou vendo coisas?

Aquilo é um corpo? A figura sumiu aos poucos. Ele fechou os olhos outra vez e

esperou mais tempo agora, de modo que seus olhos pudessem apreender a menor

claridade que existisse.

Uma tonteira instalou-se e seus pensamentos vagaram na escuridão. Só

mais uns segundos. Não sabia se era porque estava respirando aqueles gases ou se

por estar com a cabeça inclinada para baixo, mas decididamente começava a se

sentir nauseado. Quando enfim abriu os olhos, a imagem diante dele era

totalmente inexplicável.

Estava olhando para uma cripta banhada em uma misteriosa luz azulada.

Um leve som sibilante reverberava em seus ouvidos. A luz bruxuleava nas

paredes escarpadas da cavidade. De repente, uma longa sombra materializou-se

acima dele. Assustado, tentou levantar-se depressa.

- Preste atenção! - alguém exclamou atrás dele.

Antes que pudesse se virar, sentiu uma dor aguda na nuca. Deu com

Vittoria afastando dele um maçarico aceso, a chama assoviando e lançando uma

luz azul pela capela.

Langdon pôs a mão na nuca.

- Que diabos está fazendo?

- Estava iluminando o poço para você - disse ela. - Você levantou direto

em cima de mim.

Langdon lançou um olhar feroz para o maçarico portátil na mão dela.

- Foi o melhor que consegui arranjar- explicou ela. - Não achei nenhuma

lanterna.

Langdon esfregou o pescoço.

- Não ouvi você chegar.

Vittoria entregou-lhe o maçarico, fazendo uma careta para o fedor da

cripta.

- Acha que esses gases são combustíveis?

- Tomara que não.

Ele pegou o maçarico e levou-o devagar para perto do buraco. Com

cuidado, aproximou-se da borda e apontou a chama para baixo, para dentro do

buraco, iluminando a parede lateral. Direcionou a luz, acompanhando o contorno

da parede na descida. A cripta era circular e tinha cerca de seis metros de

diâmetro. Uns dez metros abaixo, o facho de luz encontrou o chão. Um chão

escuro e mosqueado. De terra.

Então Langdon viu o corpo.

Seu instinto foi recuar.

- Ele está lá - disse, forçando-se a não sair dali.

A figura pálida contrastava com o chão de terra.

- Acho que está nu - e a imagem do cadáver despido de Leonardo Vetra

surgiu como um breve clarão em sua mente.

- É um dos cardeais?

Langdon não tinha a menor idéia, mas não imaginava quem mais poderia

ser. Ele examinou a silhueta clara.

Imóvel. Sem vida. E no entanto... Langdon hesitou. Havia algo muito

estranho na posição daquela figura. Parecia que ele estava...

Langdon chamou:

-Ei!

- Acha que ele está vivo?

Não houve resposta vinda de baixo.

- Ele não está se mexendo - disse Langdon -, mas parece... - Não,

impossível.

- Parece o quê? - Vittoria agora também estava espiando lá para baixo.

Langdon apertou os olhos para a penumbra da cova.

- Parece que ele está de pé.

Vittoria prendeu a respiração e inclinou mais o rosto para enxergar melhor.

Depois de um momento, ela ergueu o tronco.

- Você tem razão. Ele está de pé! Talvez esteja vivo e precise de ajuda! -

Ela gritou para dentro do buraco.

- Alô?! Mi puó sentire?

Nenhum eco voltou do fundo do buraco. Só silêncio.

Vittoria dirigiu-se para a frágil escada de madeira.

- Vou descer.

Langdon segurou o braço dela.

- Não. É perigoso. Eu vou. Dessa vez, Vittoria não discutiu.

CAPÍTULO 66

Chinita Macri estava furiosa. Encontrava-se sentada no banco do

passageiro do furgão da BBC, parado em uma esquina na Via Tomacelli.

Gunther Glick estava verificando seu mapa de Roma, aparentemente

perdido.

Como ela temia, o homem misterioso ligara de novo, dessa vez com

informações.

- Piazza del Popolo - insistia Glick. - É o que estamos procurando. Há uma

igreja lá. E dentro está a prova.

- Prova. - Chinita parou de polir a lente que tinha na mão e voltou-se para

ele. - Prova de que um cardeal foi morto?

- Foi o que ele disse.

- Você acredita em tudo o que ouve? - Chinita gostaria, como sempre, que

fosse ela a tomar as decisões.

Os cinegrafistas, porém, ficavam à disposição dos repórteres malucos para

quem gravavam as matérias. Se Gunther Glick queria seguir uma dica idiota que

recebera pelo telefone, ela teria de ir atrás dele como um cachorrinho na coleira.

Ela o observou, sentado ao lado, a boca apertada, determinado. Os pais

dele, na certa, deviam ser comediantes frustrados para lhe darem aquele nome.

Não era à toa que o sujeito agia como se fizesse questão de provar alguma coisa.

Mesmo assim, apesar do nome e daquela mania irritante de se afirmar, Glick era

um doce, charmoso à sua moda, com aquela sua brancura e o jeito meio ansioso

de inglês. Um Hugh Grant tomando lítio.

- Não seria melhor voltarmos para a Praça São Pedro? - disse Macri, com a

maior paciência possível. - Podemos conferir esse mistério da igreja mais tarde. O

conclave começou há uma hora. E se os cardeais chegarem a uma conclusão

enquanto estamos fora?

Glick pareceu não escutar.

- Acho que temos de ir para a direita aqui. - Entortou o mapa e examinou-o

outra vez. - É, se eu for para a direita e logo em seguida para a esquerda. - E

arrancou com o carro pela rua estreita onde estavam.

- Cuidado! - gritou Macri.

Ela era operadora de vídeo e tinha visão aguçada. Felizmente, Glick

também era rápido. Enfiou o pé no freio e não entrou no cruzamento exatamente

quando uma fila de quatro Alpha Romeos surgiu do nada e passou correndo.

Depois de passarem, os carros diminuíram a velocidade e, cantando pneus,

entraram acelerados à esquerda no quarteirão seguinte, fazendo o mesmo caminho

que Glick pretendia fazer.

- Doidos! - gritou Macri.

Glick parecia abalado.

- Você viu?

- Claro que vi! Eles quase nos mataram!

- Não, estou falando dos carros - disse ele, a voz de repente excitada. -

Eram todos iguais.

- Então, eram doidos sem imaginação.

- Os carros também estavam cheios.

- E daí?

- Quatro carros idênticos, todos com quatro passageiros?

- Já ouviu falar de carona compartilhada?

- Na Itália? - Glick verificou o cruzamento. - Eles ainda nem ouviram falar

de gasolina sem chumbo. - E pisou no acelerador, disparando atrás dos carros.

Macri foi atirada contra o encosto de seu banco.

- Que diabos está fazendo?

Glick desceu a rua à toda e dobrou à esquerda seguindo os Alpha Romeos.

- Algo me diz que você e eu não somos os únicos que estão indo para

aquela igreja agora.

CAPÍTULO 67

A descida foi lenta.

Langdon ia de degrau em degrau pela escada que rangia, cada vez mais

fundo sob o piso da Capela Chigi. Para dentro da cova do demônio, lembrou.

Estava de frente para a parede lateral, de costas para a câmara e perguntou-se

quantos espaços escuros e apertados mais um único dia poderia proporcionar. A

escada gemia a cada passo e o cheiro penetrante de carne decomposta e de

umidade era quase asfixiante. Onde estaria o cretino do Olivetti, pensava

Langdon.

A silhueta de Vittoria ainda era visível acima segurando o maçarico dentro

do buraco, iluminando o caminho de Langdon. À medida que ele descia, o brilho

azulado que vinha do alto ficava mais fraco. A única coisa mais forte era o cheiro.

Doze degraus abaixo, aconteceu. O pé dele se apoiou em um ponto escorregadio

da madeira apodrecida e ele se desequilibrou. Atirou o corpo para a frente e

agarrou-se na escada, onde bateu com os antebraços, para evitar uma queda até o

fundo. Amaldiçoando a dor latejante dos braços machucados, puxou o corpo de

volta para os degraus e recomeçou a descida.

Três degraus depois, quase caiu de novo, mas dessa vez por um motivo

diferente - um sobressalto de medo. Ao passar por um nicho escavado na parede,

deu de cara com um monte de caveiras. Quando recuperou o fôlego e olhou em

torno, percebeu que naquele trecho havia diversas aberturas em forma de

prateleiras - nichos funerários -, todas cheias de esqueletos.

Formavam, sob a luminosidade fosforescente, uma colagem sobrenatural

de órbitas vazias e gaiolas torácicas em decomposição tremeluzindo à sua volta.

Esqueletos à luz da fogueira, pensou ele, fazendo uma careta e lembrando

que, por coincidência, vivera uma noite de certa forma semelhante no mês

anterior. Uma noitada de ossos e chamas. O jantar beneficente à luz de velas do

Museu de Arqueologia de Nova York - salmão flambado à sombra de um

esqueleto de brontossauro. Comparecera a convite de Rebecca Strauss, ex-modelo

e agora crítica de arte do Times, um turbilhão de veludo negro, cigarros e seios

em destaque sem qualquer sutileza. Ela lhe telefonara duas vezes desde então e ele

não ligara de volta. Muito pouco cavalheiresco, censurava-se, imaginando quanto

tempo Rebecca Strauss resistiria em uma cloaca como aquela.

Foi um alívio sentir o chão de terra fofa depois do último degrau. Sob os

sapatos, sentiu a umidade do solo. Depois de se assegurar que as paredes não se

fechariam sobre ele, voltou-se para a cripta. Era circular, com uns seis metros de

diâmetro. Respirando de novo através da manga do paletó, olhou para o corpo. Na

semi-obscuridade, a imagem era indistinta. Um vulto branco, corpulento. Virado

para o lado oposto. Imóvel. Silencioso.

Avançando pela cripta mal iluminada, Langdon tentou entender o que via.

O homem estava de costas para ele, não podia ver-lhe o rosto, mas parecia mesmo

estar de pé.

- Olá? - disse Langdon, a voz abafada na manga.

Nada. À medida que se aproximava, percebia que o homem era muito

baixo. Baixo demais...

- O que está acontecendo aí? - Vittoria chamou do alto, deslocando o foco

de luz.

Langdon não respondeu. Encontrava-se agora próximo o suficiente para

ver tudo. Com um arrepio de repulsa, compreendeu de imediato. A cripta pareceu

contrair-se em torno dele. Emergindo como um demônio do chão de terra, havia

um homem idoso, ou metade dele. Fora enterrado até a cintura.

Completamente despido. As mãos atadas atrás do tronco com uma faixa

vermelha de cardeal. Estava molemente inclinado, a espinha arqueada para trás

como uma espécie de medonho saco de treinamento de pugilismo, os olhos

voltados para o céu como se implorasse a ajuda do próprio Deus.

- Ele está morto? - perguntou Vittoria.

Langdon andou para perto do corpo. Espero que sim, para o próprio bem

dele. A poucos centímetros, Langdon viu os olhos azuis voltados para o alto,

esbugalhados e injetados. Curvou-se para escutar se o homem ainda respirava,

mas recuou de imediato.

- Deus do céu!

- O que foi?

Langdon quase vomitou.

- Ele está morto, sim. Acabei de descobrir a causa da morte.

A cena era horripilante. A boca do homem fora escancarada e entulhada de

terra.

- Alguém lhe enfiou uma porção de terra na boca. Ele morreu sufocado.

- Terra? - disse Vittoria.

Langdon caiu em si. Terra. Quase esquecera. As marcas. Terra, Ar, Fogo,

Água. O assassino ameaçara marcar cada vítima com um dos antigos elementos da

ciência. O primeiro elemento era Terra.

Da tumba terrena de Santi. Tonto por causa das emanações, Langdon

rodeou o cadáver, ficando de frente para ele. Ao fazê-lo, o simbologista dentro

dele reafirmou enfaticamente o desafio artístico de criar o mítico ambigrama.

Terra? Como? E, entretanto, um instante depois, estava diante dele. Séculos de

lendas sobre os Illuminati rodopiaram em sua mente. A marca no peito do cardeal

era uma queimadura de onde exsudava líquido. A carne estava carbonizada. La

lingua pura...

Langdon fixou o olhar na marca e tudo começou a girar.

EARTH

- Earth - ele sussurrou, virando a cabeça para ler o símbolo ao contrário.

- Terra.

Então, com uma sensação de terror, veio uma percepção final. Há mais

três.

CAPÍTULO 68

A despeito da suave luz de velas na Capela Sistina, o cardeal Mortati

estava nervoso, O conclave começara oficialmente. E começara de uma forma

muito pouco auspiciosa.

Meia hora antes, no horário determinado, o camerlengo Cano Ventresca

entrara na capela. Dirigira-se para o altar-mor e fizera a prece de abertura. Depois,

abrira os braços e falara-lhes da maneira mais direta que Mortati jamais ouvira

alguém falar daquele altar da Capela Sistina.

- Todos têm conhecimento - disse o camerlengo - de que nossos quatro

preferiti não estão presentes no conclave neste momento. Peço-lhes, em nome de

Sua Santidade falecida, que prossigam como deve ser, com fé e determinação.

Que todos possam ter Deus diante de seus olhos.

E preparou-se para sair.

Um dos cardeais não se conteve.

- Mas onde estão eles?

O camerlengo parou.

- Isso, sinceramente, não posso dizer.

- Quando vão voltar?

- Isso, sinceramente, não posso dizer.

- Eles estão bem?

- Isso, sinceramente, não posso dizer.

- Eles vão voltar?

Fez-se uma longa pausa.

- Tenham fé - disse o camerlengo. E saiu da capela.

As portas da Capela Sistina haviam sido seladas por fora, como era o

costume, com duas pesadas correntes. Quatro guardas suíços estavam de sentinela

no saguão ao lado. Mortati sabia que as portas só poderiam ser abertas agora,

antes da eleição de um Papa, se alguém ali dentro caísse seriamente doente ou se

os preferiti chegassem. Ele rezava para que fosse a última alternativa a acontecer,

embora o nó em seu estômago não lhe desse tanta certeza.

Prossigamos como deve ser, decidiu Mortati, tomando como exemplo a

firmeza na voz do camerlengo.

Por isso, iniciara a votação. O que mais poderia fazer?

Haviam sido necessários trinta minutos para que se completassem os rituais

preparatórios desse primeiro escrutínio. Mortati esperara pacientemente no altarmor

que cada cardeal, em ordem de antiguidade, se aproximasse e realizasse o

procedimento específico de votação.

Agora, enfim, o último cardeal havia chegado ao altar e ajoelhava-se diante

dele.

- Chamo como testemunha - declarou o cardeal, exatamente como todos os

outros antes dele - Cristo, o Senhor, que saberá que meu voto está sendo dado

àquele que, diante de Deus, julgo que deve ser o eleito.

O cardeal levantou-se. Ergueu sua ficha de voto bem alto, acima da cabeça,

para todos verem. Depois, baixou-a até o altar, onde um prato estava pousado

sobre um grande cálice. Colocou a ficha de voto em cima do prato. Em seguida,

pegou o prato e usou-o para deixar cair a ficha de voto dentro do cálice. O uso do

prato era para garantir que ninguém disfarçadamente pusesse mais de um papel no

cálice.

Após dar seu voto, ele recolocou o prato sobre o cálice, inclinou-se na

direção da cruz e voltou para seu lugar.

O último voto fora depositado no cálice.

Chegara a hora de Mortati trabalhar.

Deixando o prato sobre o cálice, Mortati sacudiu as fichas de voto para

misturá-las. Em seguida, retirou o prato e tirou uma ao acaso de dentro do cálice.

Desdobrou-o. A ficha de voto tinha exatos cinco centímetros de largura. Ele leu

em voz alta para todos ouvirem.

"Eligo in summum pontificem...", declarou, lendo o texto gravado em

relevo no alto de cada ficha de voto.

Elejo como Sumo Pontífice... E anunciou o nome do indicado que fora

escrito abaixo. Depois de ler o nome, apanhou uma agulha preparada com um fio,

levantou-a e furou a ficha de voto na palavra Eligo, fazendo-a deslizar com

cuidado pelo fio. E tomou nota do voto em um livro de registro.

Em seguida, repetiu o procedimento. Escolheu uma ficha de voto dentro do

cálice, leu o que estava escrito em voz alta, enfiou a ficha no fio e fez a anotação

no livro. Quase imediatamente Mortati percebeu que essa primeira votação não

daria em nada. Não havia consenso. Após sete votos apenas, sete diferentes

cardeais já haviam sido citados. Como era normal, os cardeais haviam procurado

disfarçar a própria letra floreando a escrita ou escrevendo em letra de imprensa. O

disfarce era uma ironia nesse caso porque eles estavam obviamente votando em si

mesmos. Mortati sabia que essa aparente vaidade nada tinha a ver com ambição

pessoal. Tratava-se de uma forma de retenção. Uma manobra defensiva. Uma

tática de protelação para que nenhum cardeal recebesse votos suficientes para

vencer e fosse necessário realizar outra votação.

Os cardeais estavam esperando por seus preferiti

Quando a última ficha de voto foi marcada, Mortati declarou que a votação

malograra.

Pegou o fio com todas as fichas de voto presas, amarrou suas pontas

formando um anel e depositou o anel de votos em uma bandeja de prata.

Acrescentou os produtos químicos devidos e levou a bandeja até uma pequena

lareira atrás de si. Ali, pôs fogo nos papéis. Quando estes se queimaram, os

produtos químicos que ele utilizara criaram uma fumaça negra. A fumaça subiu

por um tubo até uma abertura no telhado, de onde se espalhou acima da capela

para todos lá fora verem. O cardeal Mortati acabara de enviar sua primeira

comunicação ao mundo exterior.

Uma primeira votação. O Papa não fora escolhido.

CAPÍTULO 69

Quase asfixiado pelos gases que emanavam da cova, Langdon subiu com

dificuldade pela escada na direção da luz no alto do poço. Ouviu vozes acima,

mas nada fazia sentido. Sua cabeça estava girando com imagens do cardeal

marcado a fogo.

Terra... Terra...

Enquanto se esforçava para subir, sua visão escureceu e ele receou perder a

consciência. A dois degraus da abertura perdeu o equilíbrio. Atirou-se para cima

tentando segurar a borda, mas não a alcançou. As mãos soltaram-se da escada e

ele quase caiu de costas na escuridão. Sentiu uma dor aguda embaixo dos braços e

de repente estava no ar, as pernas balançando loucamente no abismo.

As mãos fortes de dois guardas suíços puxaram-no para cima pelas axilas.

No momento seguinte, a cabeça de Langdon emergiu da cova do demônio,

tossindo e arquejando. Os guardas arrastaram-no e deitaram-no de costas no piso

frio de mármore.

Por um instante, Langdon não soube onde estava. Via estrelas lá em cima,

planetas em órbita. Figuras nebulosas passavam por ele correndo. Pessoas

gritavam. Tentou sentar-se. Estava deitado na base de uma pirâmide de pedra. O

conhecido azedume de uma voz irritada ecoou dentro da capela e então ele voltou

a si.

Olivetti estava gritando com Vittoria.

- Por que cargas d'água vocês não viram isso antes?

Vittoria tentava explicar a situação.

Olivetti interrompeu-a no meio de uma frase e vociferou uma saraivada de

ordens para seus homens.

- Retirem aquele corpo de lá! Vasculhem o resto da igreja!

Langdon fez um esforço para se sentar. A Capela Chigi estava cheia de

guardas suíços. A cortina de plástico que fechava a capela fora arrancada e o ar

fresco encheu seus pulmões. Enquanto ele recobrava lentamente os sentidos,

Vittoria veio em sua direção. Ela se ajoelhou, o rosto igual ao de um anjo.

- Você está bem? - Ela pegou o braço dele e examinou-lhe o pulso. Sentiu a

maciez das mãos dela em sua pele.

- Obrigado - disse ele, sentando-se por completo. - Olivetti está uma fera.

Vittoria assentiu.

- Tem razão de estar. Nós estragamos tudo.

- Eu estraguei tudo.

- Então, redima-se. Pegue-o da próxima vez.

Próxima vez? Langdon achou o comentário cruel. Não haverá próxima

vez! Nós perdemos a chance!

Vittoria verificou o relógio de Langdon.

- Mickey está dizendo que temos quarenta minutos. Ponha a cabeça de

volta no lugar e me ajude a procurar o próximo marco.

- Já lhe disse, Vittoria, as esculturas foram retiradas. O Caminho da

Iluminação está... - e ele se deteve.

Vittoria sorriu com suavidade.

De um salto, Langdon se pôs de pé, cambaleando. Girou de um lado para

outro, zonzo, olhando para as obras de arte que o rodeavam. Pirâmides, estrelas,

planetas, elipses. E tudo lhe voltou. Este é que é o primeiro altar da ciência! Não o

Panteão! Deu-se conta de como toda a capela era tão perfeitamente Illuminati, de

uma forma muito mais sutil e seletiva do que o mundialmente famoso Panteão. A

Capela Chigi era uma alcova afastada, literalmente um buraco na parede, um

tributo a um grande patrono da ciência, decorada com simbologia referente à

Terra. Perfeita.

Langdon encostou-se na parede e examinou as enormes pirâmides

esculpidas. Vittoria estava coberta de razão. Sendo o primeiro altar da ciência, a

capela devia conter ainda a escultura Illuminati que servira de primeiro marco.

Veio- lhe uma sensação eletrizante de esperança ao perceber que ainda havia uma

chance.

Se o marco ainda estivesse ali e pudessem segui-lo até o próximo altar da

ciência, talvez houvesse mesmo outra oportunidade de pegar o assassino.

Vittoria aproximou-se.

- Descobri quem era o escultor Illuminati desconhecido.

A cabeça de Langdon virou-se como se fosse de mola.

-Você o quê?

- Agora só temos de descobrir qual das esculturas aqui dentro é o...

- Espere aí! Você disse que sabe quem era o escultor Illuminati?

Ele passara anos tentando encontrar aquela informação.

Vittoria sorriu.

- Era Bernini - e fez uma pausa. - O Bernini.

Ele tinha certeza de que Vittoria estava enganada. Bernini era uma

impossibilidade. Gianlorenzo Bernini foi o segundo mais famoso escultor de

todos os tempos, sua fama eclipsada apenas pela do próprio Michelangelo.

Durante o século XVII, Bernini criou mais esculturas do que qualquer outro

artista. O homem que procuravam era supostamente um desconhecido, um joãoninguém.

Vittoria franziu as sobrancelhas.

- Você não ficou muito entusiasmado.

- É impossível ser Bernini.

- Por quê? Bernini foi contemporâneo de Galileu. Era um escultor

brilhante.

- Era um homem muito famoso e era católico.

- Sim - replicou Vittoria -, exatamente como Galileu.

- Não - argumentou ele -, nem um pouco como Galileu. Galileu era uma

pedra no sapato do Vaticano.

Bernini era o menino-prodígio do Vaticano. A Igreja adorava Bernini. Foi

escolhido como a maior autoridade artística do Vaticano. Ele praticamente viveu a

vida inteira dentro da Cidade do Vaticano!

- Um disfarce perfeito. Infiltração Illuminati.

Langdon estava exaltado.

- Vittoria, os Illuminati referiam-se a seu artista secreto como il maestro

ignoto, o mestre desconhecido!

- Sim, desconhecido para eles. Pense no sigilo dos maçons. Só os membros

do escalão superior sabiam de tudo. Galileu pode ter mantido em segredo para a

maior parte dos membros a verdadeira identidade de Bernini, tendo em vista a

própria segurança de Bernini. Desse jeito, o Vaticano nunca descobriria.

Langdon não se convencera, mas tinha de admitir que a lógica de Vittoria

fazia sentido. Os Illuminati eram famosos por manter informações secretas

compartimentadas, só revelando a verdade aos membros de nível mais alto. Era a

pedra de toque de sua capacidade de se manterem secretos: muito poucos sabiam a

história completa.

- E a filiação de Bernini aos Illuminati - Vittoria acrescentou com um

sorriso - explica por que ele projetou estas duas pirâmides.

Langdon voltou-se para as duas imensas pirâmides esculpidas e sacudiu a

cabeça.

- Bernini era um escultor religioso. Jamais teria esculpido estas pirâmides.

Vittoria deu de ombros.

- Diga isso para a placa atrás de você.

Langdon virou-se para a placa:

ARTE DA CAPELA CHIGI

Rafael foi o responsável pela arquitetura, e todas

as peças de ornamentação interior são de autoria de Gianlorenzo Bernini.

Langdon leu a placa duas vezes e ainda assim não se convenceu.

Gianlorenzo Bernini era célebre por suas intricadas esculturas religiosas da

Virgem Maria, de anjos, profetas, de papas.

Como iria esculpir pirâmides?

Langdon olhou para os altivos monumentos e ficou completamente

desorientado. Duas pirâmides, cada uma com um reluzente medalhão elíptico.

Não poderia haver duas esculturas menos cristãs. As pirâmides, as estrelas acima,

os signos do zodíaco. Todas as peças de ornamentação interior são de autoria de

Gianlorenzo Bernini. Se isso fosse verdade, Vittoria tinha de estar certa. À

revelia, Bernini era o mestre Illuminati desconhecido. Ninguém mais contribuíra

com obras de arte para a Capela Chigi! As implicações vieram rápido demais para

que Langdon as processasse.

Bernini era um Illuminatus.

Bernini desenhou os ambigramas dos Illuminati.

Bernini projetou e realizou o Caminho da Iluminação.

Langdon mal conseguia falar. Seria possível que ali, na pequena Capela

Chigi, o mundialmente famoso Bernini tivesse colocado uma escultura que

apontava para o próximo altar da ciência através de Roma?

- Bernini - disse. - Jamais teria imaginado.

- Quem mais senão um famoso artista do Vaticano teria influência política

para colocar suas obras de arte em capelas católicas específicas por Roma afora e

criar o Caminho da Iluminação? Não um desconhecido qualquer.

Langdon ponderou a questão. Examinou as pirâmides, conjeturando se

alguma delas poderia ser o marco.

Quem sabe, ambas?

- As pirâmides estão voltadas para direções opostas - disse Langdon, sem

saber bem como avaliá-las. - Também são idênticas, por isso não sei qual...

- Não acho que as pirâmides sejam o que estamos procurando.

- Mas são as únicas esculturas aqui.

Vittoria interrompeu-o apontando na direção de Olivetti e alguns de seus

guardas, reunidos em torno da cova do demônio.

Langdon acompanhou a linha da mão dela até a parede mais distante. A

princípio, não viu nada. Então, alguém se moveu e ele entreviu alguma coisa.

Mármore branco. Um braço. Um tronco. Depois, um rosto esculpido.

Parcialmente oculto em seu nicho. Duas figuras juntas, em tamanho natural. O

pulso de Langdon acelerou-se. Ficara tão absorvido pelas pirâmides e pela cova

do demônio que sequer vira aquela escultura. Cruzou o recinto pelo meio de todas

as pessoas. Ao se aproximar, reconheceu o puro estilo de Bernini na obra - a

intensidade da composição artística, a complexidade dos rostos e os trajes

ondulantes, tudo feito com o mais puro mármore branco que o dinheiro do

Vaticano podia comprar. Somente quando ficou de frente para ela é que reconhece

a própria escultura. Levantou a cabeça para contemplar os dois rostos e perdeu o

fôlego.

- Quem são eles? - perguntou Vittoria, ansiosa, aproximando-se por trás

dele.

Langdon continuava boquiaberto.

- Habacuc e o Anjo - disse ele, a voz quase inaudível.

A peça era um trabalho bastante conhecido de Bernini que aparecia em

alguns livros de História da Arte.

Langdon esquecera que estava ali.

- Habacuc?

- É. O profeta que previu a aniquilação da Terra.

Apreensiva, Vittoria perguntou:

- E você acha que esse é o marco?

Langdon balançou a cabeça, extasiado. Nunca em sua vida tivera tanta

certeza de alguma coisa. Aquele era o primeiro marco Illuminati. Sem qualquer

dúvida. Embora esperasse que a escultura de alguma forma "apontasse" para o

próximo altar da ciência, não contava que isso fosse literal. Tanto o anjo quanto

Habacuc tinham os braços estendidos e apontavam para longe.

Vittoria estava excitada mas confusa.

- Ambos estão apontando, mas um contradiz o outro. O anjo está

apontando para um lado e o profeta para o lado oposto.

Langdon deu uma risadinha. Era verdade. As duas figuras estavam de fato

apontando para longe, mas para direções totalmente contrárias. No entanto, ele já

resolvera este problema. Com um impulso de energia, dirigiu-se para a porta.

- Onde é que você vai? - perguntou Vittoria.

- Para fora da igreja! - As pernas de Langdon estavam leves outra vez

quando ele correu para a porta.

- Tenho de ver para qual direção a escultura está apontando!

- Espere aí! Como sabe qual dos dedos tem de acompanhar?

- O poema - ele gritou por cima do ombro. - O último verso!

- Que os anjos o guiem em sua busca sublime? - Ela levantou a cabeça e

viu o dedo estendido do anjo. Seus olhos enevoaram-se sem querer. - Ora, não é

que é mesmo?!

CAPÍTULO 70

Gunther Glick e Chinita Macri estavam sentados dentro do furgão da BBC

do outro lado da Piazza del Popolo, onde havia menos claridade. Tinham chegado

logo depois dos quatro Alpha Romeos, a tempo de presenciar uma inconcebível

sucessão de acontecimentos. Chinita sequer fazia idéia do significado de tudo

aquilo, mas mesmo assim mantivera a câmera funcionando.

Logo ao chegarem, Chinita e Glick tinham visto um verdadeiro exército de

homens sair depressa dos Alpha Romeos e cercar a igreja. Alguns seguravam

armas. Um deles, mais velho e empertigado, saiu acompanhado de um grupo

direto para as escadarias da frente da igreja. Os soldados sacaram armas e

arrebentaram com tiros os cadeados que trancavam as portas. Macri não ouviu

nada e presumiu que eles deviam estar usando silenciadores. Aí, os soldados

entraram na igreja.

Chinita recomendou que os dois ficassem sentados quietos filmando tudo

de longe. Afinal de contas, os outros estavam armados e eles podiam ver tudo

muito bem do furgão. Glick nem discutira. Agora, do outro lado da piazza, havia

homens entrando e saindo da igreja. Gritavam uns para os outros. Chinita ajustou

sua câmera para seguir uma equipe que estava revistando a área ao redor. Todos

eles, apesar de vestidos com roupas civis, se moviam com precisão militar.

- Quem você acha que esses homens devem ser? - perguntou ela.

- Sei lá! - Glick parecia hipnotizado. - Tá pegando tudo?

- Cada cena.

Glick perguntou, cheio de si:

- Ainda acha que devíamos voltar para o plantão do Papa?

Chinita não tinha certeza. Obviamente, algo estava acontecendo ali, mas

ela já trabalhava com jornalismo havia bastante tempo e sabia que muitas vezes

acontecimentos interessantes têm explicações absolutamente sem graça.

- Isso pode não ser nada - disse ela. - Esses caras podem ter recebido a

mesma dica que você e estarem só verificando. Pode ser um alarme falso.

Glick puxou o braço dela.

- Ali! Focalize bem! - e apontou para a igreja.

Chinita girou a câmera de volta para o alto das escadas.

- Olá! - disse ela, acompanhando o homem que agora saía da igreja.

- Quem é o arrumadinho? - perguntou Glick.

Chinita mexeu na lente para obter um dose.

- Nunca o vi antes. - Focalizou o rosto do homem e sorriu. - Mas não me

importaria nem um pouco em vê-lo de novo.

Robert Langdon desceu correndo as escadas do lado de fora da igreja e foi

para o meio da piazza.

Escurecia, o sol de primavera desaparecia tarde no sul de Roma. Àquela

hora, já se escondera por trás dos prédios e havia sombras riscando a praça.

- Muito bem, Bernini - disse ele para si mesmo em voz alta. - Para onde o

seu bendito anjo está apontando?

Examinou a posição da igreja de onde acabara de sair. Imaginou a Capela

Chigi e a estátua do anjo dentro dela. Sem hesitar, virou-se diretamente para oeste,

para o iminente pôr-do-sol. O tempo estava se evaporando.

- Sudoeste - disse, fechando a cara para as lojas e apartamentos que

bloqueavam sua visão. - O próximo marco fica naquela direção.

Quebrando a cabeça, repassou página por página da História da Arte

italiana.

Apesar de Langdon conhecer bem a obra de Bernini, o escultor fora prolixo

demais para alguém que não fosse especialista em saber tudo sobre seu trabalho.

Ainda assim, considerando-se a relativa fama do primeiro marco, Habacuc

e o Anjo, Langdon esperava que o segundo fosse uma obra de que ele se

lembrasse.

Terra, Ar, Fogo, Água, pensou. Terra já tinham encontrado - dentro da

Capela da Terra -, Habacuc, o profeta que prognosticara a aniquilação da Terra.

Ar é o próximo. Langdon obrigou-se a pensar depressa. Uma escultura de

Bernini que tenha a ver com Ar! Sua cabeça era um branco total. De qualquer

maneira, sentia-se energizado. Estou no Caminho da Iluminação! O caminho

ainda está intacto!

Voltando-se para o sudoeste, esforçou-se para enxergar uma flecha ou uma

torre de igreja projetando-se acima dos obstáculos. Não viu nada. Precisava de um

mapa. Se conseguissem descobrir quais as igrejas que ficavam a sudoeste dali,

talvez uma delas pudesse acender alguma luz na memória de Langdon. Ar, insistiu

ele. Ar. Bernini. Escultura. Pense!

Ele subiu de volta as escadas da catedral. Encontrou-se com Vittoria e

Olivetti debaixo do andaime.

- Sudoeste - disse, arfando. - A próxima igreja fica a sudoeste daqui.

O sussurro de Olivetti saiu frio.

- Tem certeza desta vez?

Langdon não aceitou a provocação.

- Precisamos de um mapa. Um que mostre todas as igrejas de Roma.

O comandante estudou-o um momento, o rosto impassível.

Langdon olhou para o seu relógio.

- Só temos meia hora.

Olivetti passou por ele, desceu as escadas e encaminhou-se para o seu

carro, estacionado bem em frente à igreja. Langdon esperava que ele tivesse ido

buscar um mapa.

Vittoria estava animada.

- Quer dizer que o anjo está apontando para sudoeste? Tem idéia de quais

são as igrejas que ficam a sudoeste?

- Não consigo enxergar além dos malditos prédios. - Virou-se para a praça

de novo. - E não conheço as igrejas de Roma o suficien... - Ele se deteve.

- O que foi? - perguntou Vittoria, assustada.

Langdon correu os olhos pela praça mais uma vez. Por ter subido as

escadas, tinha uma visão melhor ali do alto. Ainda não dava para ver nada, mas

sabia que a direção estava certa. Examinou a instável torre de andaimes acima de

sua cabeça: da altura de um edifício de seis andares, chegava até a rosácea da

igreja.

Em um instante Langdon resolveu o que faria em seguida.

Do outro lado da praça, Chinita Macri e Gunther Glick estavam grudados

no pára-brisa do furgão da BBC.

- Tá pegando isso aí? - perguntou Gunther.

Macri concentrou-se no homem que agora subia pelos andaimes.

- Ele está bem vestido demais para brincar de Homem Aranha, na minha

opinião.

- E quem é a senhora Aranha?

Chinita deu uma olhada na mulher atraente que estava embaixo dos

andaimes.

- Aposto que você gostaria de descobrir.

- Acha que devo ligar para a redação?

- Ainda não. Vamos observar. É melhor ter alguma coisa mais concreta

antes de admitir que abandonamos o conclave.

- Será que alguém matou mesmo um dos velhotes aí dentro da igreja?

Chinita deu uma risada.

- Você vai com toda certeza para o inferno.

- Mas vou levando o Pulitzer comigo.

CAPÍTULO 71

Os andaimes tornavam-se menos estáveis quanto mais Langdon subia. Sua

visão de Roma, entretanto, ficava melhor a cada etapa. E ele continuou a subir.

Respirava com mais dificuldade do que esperava quando alcançou a última

plataforma. Puxou o corpo para cima, sacudiu o pó da roupa e ficou de pé. A

altura não o incomodava nada. Na realidade, era até revigorante.

A vista era espetacular. Como um oceano de fogo, os telhados vermelhos

de Roma estendiam-se a seus pés, incandescentes ao pôr-do-sol escarlate. Daquele

ponto, pela primeira vez em sua vida, Langdon viu Roma além da poluição e do

tráfego, enxergou a cidade e suas antigas origens: Città di Dio, a cidade de Deus.

Apertando os olhos para o poente, examinou os telhados à procura de uma

igreja. Mas, apesar de olhar cada vez mais longe na direção do horizonte, não viu

nenhuma. Existem centenas de igrejas em Roma, pensou. Deve existir alguma a

sudoeste daqui! Isto, se a igreja for visível, lembrou a si mesmo. Diabos, e se

ainda estiver de pé!

Obrigando os olhos a traçarem a linha bem devagar, ele reiniciou a busca.

Sabia que nem todas as igrejas teriam flechas visíveis, principalmente as menores

e mais afastadas. Sem falar que Roma mudara muito desde o século XVII, quando

as igrejas eram por lei as construções mais altas. Agora, havia edifícios de

apartamentos, prédios altíssimos, torres de TV.

Pela segunda vez, o olhar de Langdon alcançou o horizonte sem distinguir

nada. Nem uma única flecha.

Ao longe, nos limites de Roma, o colossal domo de Michelangelo encobria

o pôr-do-sol. A Basílica de São Pedro. A Cidade do Vaticano. Langdon deu por si

imaginando como os cardeais estariam se saindo, se a Guarda Suíça já teria

encontrado a antimatéria. Algo lhe dizia que ainda não tinham encontrado nada e

que não iriam encontrar.

O poema ecoava de novo em sua cabeça. Ele o analisou com cuidado,

verso por verso. Da tumba terrena de Santi com a cova do demônio. Já tinham

encontrado a tumba de Santi. Através de Roma se estendem os místicos

elementos. Os místicos elementos eram Terra, Ar, Fogo e Água. O caminho da luz

está preparado, o teste sagrado. O Caminho da Iluminação formado pelas

esculturas de Bernini. Que os anjos o guiem em sua busca sublime.

E o anjo apontava para sudoeste...

CAPÍTULO 72

- As escadas da frente! - Glick exclamou, apontando freneticamente através

do pára-brisa do furgão da BBC. - Alguma coisa está acontecendo!

Chinita voltou sua câmera para a entrada principal. Alguma coisa sem

dúvida estava acontecendo. O homem de aparência militar estacionara um dos

Alpha-Romeos ao do pé da escadaria e abrira a mala do carro. Agora, estava

correndo os olhos pela praça para verificar se havia alguém observando. Por um

segundo, Macri achou que o homem os localizara, mas os olhos continuaram o

exame. Aparentemente satisfeito, ele pegou um walkie-talkie e falou no aparelho.

Quase no mesmo instante, foi como se um exército saísse de dentro da

igreja. Tal qual um time de futebol americano se organizando, os soldados

formaram uma linha reta no alto da escada. Movendo-se como uma parede

humana, começaram a descer. Atrás deles, quase completamente ocultos pela

parede, quatro soldados carregavam um volume. Pesado. Desajeitado.

Glick inclinou-se mais para perto do pára-brisa.

- Será que estão roubando alguma coisa da igreja?

Chinita aproximou mais ainda a imagem de sua câmera, usando a

teleobjetiva para sondar a barreira humana e tentar achar uma abertura. Uma

fração de segundo, pediu ela. Uma enquadrada. Bastauma, só preciso de uma.

Mas os homens deslocavam-se em bloco. Vamos lá! Ela acompanhou-os e valeu a

pena. Quando os soldados tentaram levantar o objeto para colocá-lo na mala do

carro, Macri conseguiu a brecha. Por ironia, foi o chefe quem cometeu o erro.

Apenas por um instante, mas pelo tempo suficiente, ela conseguiu o

enquadramento. Na realidade, conseguiu mais do que isso, conseguiu registrar

bem a imagem.

- Ligue para a redação - disse Chinita. - Temos um cadáver aqui.

Longe dali, no CERN, Maximilian Kohler manobrou sua cadeira de rodas

dentro do escritório de Leonardo Vetra. Com eficiência mecânica, revistou os

arquivos de Vetra. Sem ter encontrado o que buscava, Kohler passou para o

quarto de dormir de Vetra. A gaveta de cima da mesa-de-cabeceira estava

trancada. Kohler arrombou-a com uma faca da cozinha.

Dentro, achou exatamente o que estava procurando.

Langdon desceu do andaime para o chão. Limpou a poeira da roupa.

Vittoria o esperava.

- E então, nada?

Ele fez que não com a cabeça.

- Puseram o cardeal na mala do carro.

Langdon olhou para o carro estacionado e viu Olivetti e um grupo de

guardas com um mapa aberto sobre o capô.

- Estão procurando na direção sudoeste?

Ela concordou.

- Mas não há igrejas. Daqui, a primeira é São Pedro.

Langdon murmurou algo. Pelo menos, nisso eles estavam de acordo. Foi ao

encontro de Olivetti. Os soldados afastaram-se para deixá-lo passar.

Olivetti dirigiu-se a ele.

- Nada. Mas este mapa não mostra todas as igrejas, só as grandes. Mais ou

menos umas cinqüenta.

- Onde estamos? - perguntou Langdon.

Olivetti mostrou a Piazza del Popolo e traçou uma linha reta para sudoeste.

A linha passava longe, e bem longe, do agrupamento de quadrados escuros que

indicavam a posição das maiores igrejas de Roma.

Lamentavelmente, as grandes igrejas de Roma também eram as mais

antigas que teriam existido no século XVII.

- Tenho de resolver algumas coisas - disse Olivetti. - Tem certeza mesmo

de que a direção é essa?

Langdon lembrou do dedo estendido do anjo e uma sensação de urgência

tomou conta dele outra vez.

- Sim, senhor, absoluta.

Olivetti deu de ombros e traçou a linha reta outra vez. O caminho cruzava a

Ponte Margherita, a Via Cola di Riezo e passava pela Piazza dei Risorgimento

sem encontrar qualquer igreja até terminar abruptamente no centro da Praça de

São Pedro.

- Por que não pode ser São Pedro? - perguntou um dos soldados. Ele tinha

uma cicatriz profunda sob o olho esquerdo. - É uma igreja.

Langdon sacudiu a cabeça.

- Tem de ser um lugar público. Neste momento, não é nada público.

- Mas a linha atravessa a Praça de São Pedro - acrescentou Vittoria,

olhando por cima do ombro de Langdon -, e a praça é pública.

Langdon já considerara aquela possibilidade.

- Mas não há estátuas lá.

- Não há um monumento de pedra no centro?

Ela estava certa. Havia um monólito egípcio na Praça de São Pedro.

Langdon olhou para o monólito diante deles na praça. Pirâmide elevada. Uma

estranha coincidência, pensou ele. Mas deixou-a de lado.

- O monólito do Vaticano não é de Bernini. Foi levado para lá por Calígula.

E não tem nada a ver com Ar. - Ainda havia outro problema. - Além disso, o

poema diz que os elementos estão espalhados através de Roma. A Praça de São

Pedro é na Cidade do Vaticano, não é em Roma.

- Depende do ponto de vista - aparteou um guarda.

Langdon encarou-o.

- O quê?

- Sempre foi um pomo de discórdia. A maioria dos mapas mostra a Praça

de São Pedro como pertencendo à Cidade do Vaticano, mas, por ficar fora dos

muros da cidade, há séculos que as autoridades romanas alegam que é parte de

Roma.

- Está brincando - disse Langdon, que nunca soubera disso.

- Só mencionei o assunto - continuou o guarda - porque o comandante

Olivetti e a senhorita Vetra estavam falando sobre uma escultura relacionada ao

Ar.

Langdon arregalou os olhos.

- E você conhece uma na Praça de São Pedro?

- Mais ou menos. Não é bem uma escultura. Talvez nem seja relevante.

- Fale - Olivetti pressionou-o.

O homem fez um gesto com o ombro.

- Só sei disso porque em geral fico de sentinela na piazza. Conheço cada

cantinho da Praça de São Pedro.

- A escultura - insistiu Langdon. - Como é? - Ele já considerava a

possibilidade de os Illuminati terem tido a audácia de instalar o segundo marco na

frente da Basílica de São Pedro.

- Passo por ela todos os dias, a serviço - disse o guarda. - Fica no centro,

direto para onde esta linha aponta. Foi o que me fez pensar nela. Como já disse,

não se trata propriamente de uma escultura. É mais um bloco.

Olivetti, agitado, perguntou:

- Um bloco?

- Sim, senhor, um bloco de mármore no meio da praça. Na base do

monólito. Mas o bloco não é um retângulo, é uma elipse. E tem gravado nele a

imagem de um sopro de vento, ondulante. - Ele fez uma pausa. - De Ar, para usar

a palavra mais científica.

Langdon, estupefato, tinha os olhos fixos no jovem soldado.

- Um relevo! - exclamou de repente.

Todos olharam para ele.

- Relevo - disse Langdon - é a outra modalidade de escultura! - Escultura é

a arte de dar forma a figuras em redondo e também em relevo. Escrevera a

definição em quadros-negros durante anos a fio. Os relevos eram essencialmente

esculturas bidimensionais, como o perfil de Abraão Lincon nas moedas norteamericanas

de centavo. Os medalhões de Bernini na Capela Chigi eram outro

exemplo perfeito.

- Bassorelevo? - perguntou o guarda, usando o termo artístico italiano.

- Isso! Baixo-relevo! - Langdon deu pancadinhas seguidas no capô do

carro.

- Nem me ocorreu essa expressão! A pedra de que está falando se chama

West Ponente - Vento Oeste. Também é conhecida como Respiro di Dio.

- Sopro de Deus?

- Isso! Ar! E foi esculpida e colocada lá pelo arquiteto original!

Vittoria não entendeu.

- Mas não foi Michelangelo que projetou São Pedro?

- Foi, a basílica! - exclamou Langdon, com triunfo na voz. - A praça foi

projetada por Bernini!

Quando a caravana de Alpha Romeos saiu correndo da Piazza dei Popolo,

todos estavam com tanta pressa que nem notaram o furgão da BBC arrancando

atrás deles.

CAPÍTULO 73

Gunther Glick afundou o no acelerador do furgão da BBC e foi dando

guinadas e se desviando do trânsito para seguir os quatro rápidos Alpha Romeos

através do rio Tibre pela Ponte Margherita. Normalmente, Glick teria procurado

manter uma distância que não chamasse a atenção, mas naquela hora ele mal

conseguia acompanhá-los.

Os caras estavam voando.

Macri estava em seu local de trabalho dentro do furgão, acabando de falar

ao telefone com Londres.

Quando desligou, gritou para ser ouvida por Glick em meio ao ruído do

trânsito:

- Quer as boas ou as más notícias?

Glick fechou a cara. Nada jamais era simples quando se lidava com a sede.

-As más.

- Os editores ficaram furiosos porque abandonamos nosso posto.

- Grande surpresa.

- Eles também acham que o seu informante é um impostor.

- Claro.

- E o chefe acabou de me avisar que devem estar faltando uns parafusos na

sua cabeça.

Glick ficou carrancudo.

- Beleza. E as boas notícias?

- Eles concordaram em dar uma espiada na fita que gravamos.

A carranca de Glick amenizou-se em um sorriso irônico. Então, vamos ver

na cabeça de quem é que faltam parafusos.

- Então, despache logo essa coisa.

- Não posso transmitir enquanto não pararmos e eu tiver um sinal estável.

Glick entrou com o furgão a toda velocidade na Via Cola di Rienzo.

- Não dá para parar agora.

Foi atrás dos Alpha Romeos dando uma guinada violenta à esquerda para

contornar a Piazza Risorgimento.

Macri agarrou seu equipamento lá atrás enquanto tudo deslizava.

- Se quebrar meu transmissor - avisou ela -, vamos ter de levar a fita a pé

até Londres.

- Segure firme, meu bem. Algo me diz que estamos quase chegando.

-Onde?

Glick lançou um olhar para o conhecido domo que ia crescendo na frente

deles. E deu um sorriso.

- Ao lugar de onde saímos.

Os quatro Alpha Romeos desviaram-se com agilidade do tráfego ao redor

da Praça de São Pedro.

Separaram-se e espalharam-se contornando a piazza, enquanto deixavam

homens discretamente em pontos escolhidos. Os guardas que desceram dos carros

se misturaram à multidão de turistas e furgões da imprensa e logo ficaram

invisíveis. Alguns deles se dirigiram para a floresta de colunas que rodeava a

praça. Esses também pareceram evaporar-se nos arredores. Observando tudo

através do vidro do carro, Langdon sentiu que um cerco se fechava em torno de

São Pedro.

Além dos homens que acabara de despachar, Olivetti comunicara-se antes

com o Vaticano e destacara mais guardas à paisana para o ponto central onde o

West Ponente de Bernini estava localizado. Os amplos espaços abertos da praça

trouxeram de volta à mente de Langdon a velha pergunta. Como o assassino

Illuminati planeja se safar? Como vai passar com um cardeal por todas essas

pessoas e matá-lo diante de todos? O seu relógio de Mickey Mouse marcava 8h54

da noite. Faltavam seis minutos.

Do banco da frente, Olivetti virou-se para Langdon e Vittoria.

- Quero vocês dois plantados bem em cima daquela placa de Bernini, ou

bloco, ou seja lá o que for. O mesmo truque de antes. Fingindo que são turistas.

Usem o telefone se virem alguma coisa.

Antes que Langdon pudesse responder, Vittoria agarrou a mão dele e

puxou-o para fora do carro.

O sol de primavera escondia-se por trás da Basílica de São Pedro e uma

imensa sombra se espalhava, engolindo toda a praça. Langdon teve um mau

pressentimento quando os dois penetraram na fria e negra penumbra. Infiltrandose

na multidão, Langdon examinava cada rosto pelo qual passavam, imaginando

se o assassino estaria por perto. Sentia o calor da mão de Vittoria na sua.

Ao cruzarem o amplo espaço aberto da Praça de São Pedro, ele constatou

como a praça produzia o efeito exato que o artista pretendera ao criá-la, o que lhe

fora encomendado: o de "despertar um sentimento de humildade em todos que

nela entrassem" Langdon com certeza sentia-se mais humilde naquele momento.

Humilde e faminto, percebeu ele, espantado que uma idéia tão corriqueira

lhe viesse à cabeça àquela altura dos acontecimentos.

- Para o obelisco? - perguntou Vittoria.

Langdon concordou, dirigindo-se para a esquerda através da praça.

- Que horas são? - perguntou Vittoria, andando em passo ligeiro mas

descontraído.

- Faltam cinco.

Vittoria não disse nada, mas apertou com mais força a mão dele. Langdon

ainda trazia o revólver no bolso.

Esperava que Vittoria não decidisse que precisava dele. Não conseguia

imaginá-la sacando uma arma na Praça de São Pedro e explodindo os miolos de

um assassino para toda a imprensa mundial assistir. Entretanto, um incidente

desses não seria nada em comparação com um assassinato ali, em público, de um

cardeal marcado a fogo.

Ar, pensou Langdon. O segundo elemento da ciência. Tentou imaginar

como seria a marca. O método do assassinato. Mais uma vez, correu os olhos pelo

pavimento de granito sob seus pés - a Praça de São Pedro, um descampado

rodeado pela Guarda Suíça. Se o assassino realmente ousasse fazer aquilo,

Langdon não sabia como ele poderia escapar.

No centro da piazza elevava-se o obelisco egípcio de Calígula, pesando

350 toneladas. Tinha 25 metros de altura até a ponta piramidal, encimada por uma

cruz de aço vazada. Alta o suficiente para captar os últimos raios do sol, a cruz

brilhava como se acesa por um passe de mágica, supostamente contendo relíquias

da cruz em que Jesus fora crucificado.

Duas fontes ladeavam o obelisco em perfeita simetria. Os historiadores

sabiam que as fontes assinalavam com precisão os focos da elipse da piazza de

Bernini, mas constituíam uma singularidade arquitetural que Langdon até então

não levara em conta. Parecia que Roma de repente estava cheia de elipses,

pirâmides e elementos geométricos surpreendentes.

Ao se aproximarem do obelisco, Vittoria diminuiu o ritmo. Expeliu com

força o ar dos pulmões, como se incentivasse seu companheiro a relaxar junto

com ela. Langdon colaborou soltando os músculos dos ombros e afrouxando a

tensão dos maxilares.

Em algum ponto em torno do obelisco, audaciosamente colocado junto à

maior igreja do mundo, estava o segundo altar da ciência - o West Ponente de

Bernini, uma placa elíptica na Praça de São Pedro.

Gunther Glick observava tudo protegido pelas sombras das colunas que

circundavam a Praça de São Pedro. Em qualquer outro dia, o homem de paletó de

tweed e a mulher de short cáqui não lhe teriam despertado o mínimo interesse.

Aparentavam ser nada mais do que turistas passeando na praça. Mas aquele não

era um dia qualquer. Aquele fora um dia de informações pelo telefone, carros

policiais sem identificação correndo por Roma afora e um homem de paletó de

tweed subindo em andaimes à procura de sabe-se lá o quê Glick ia ficar atrás dos

dois.

Olhou para o outro lado da praça e viu Macri. Ela fora direto para onde ele

lhe dissera para ir, para o outro lado do casal, rondando na retaguarda deles. Macri

carregava sua câmera de vídeo com ar informal, mas, apesar de estar fazendo

força para imitar uma entediada representante da imprensa, ela chamava mais

atenção do que Glick gostaria. Não havia outros repórteres naquele ponto da praça

e a sigla BBC bem visível em sua câmera estava atraindo os olhares de alguns

turistas.

A fita que Macri gravara mostrando o corpo despido sendo colocado na

mala do carro estava naquele mesmo instante no transmissor de vídeo instalado na

parte detrás do furgão. Glick sabia que as imagens estariam viajando agora via

satélite a caminho de Londres. Imaginava o que o pessoal de lá iria dizer.

Lamentava que ele e Macri não tivessem chegado e encontrado o corpo

mais cedo, antes que o exército de soldados à paisana aparecesse. O mesmo

exército, ele sabia, agora se espalhara e rodeara a praça. Alguma coisa muito

importante estava para acontecer.

A mídia é o braço direito da anarquia, dissera o assassino. Glick

conjeturava se não teria perdido sua grande chance. Olhou os outros furgões da

imprensa à distância e viu Macri seguindo o casal misterioso pela praça. Algo lhe

dizia que o jogo ainda não terminara.

CAPÍTULO 74

Langdon encontrou o que procurava uns dez metros antes de chegarem. Em

meio aos turistas esparsos, a elipse de mármore branco do West Ponente de

Bernini destacava-se dos cubos de granito cinzento que compunham o piso do

resto da piazza. Vittoria também a avistou. Sua mão ficou mais tensa.

- Relaxe - murmurou Langdon. - Faça aquela coisa da respiração.

Vittoria afrouxou o aperto da mão.

À medida que chegavam mais perto, tudo lhes parecia inquietantemente

normal. Turistas vagavam, freiras conversavam ao longo da praça, uma menina

dava comida aos pombos junto à base do obelisco.

Langdon preferiu não olhar o relógio. Sabia que estava quase na hora.

A seus pés surgiu a elipse de pedra e os dois pararam, como se fossem

apenas dois turistas que se detêm para admirar um detalhe de ligeiro interesse.

- West Ponente - disse Vittoria, lendo a inscrição na pedra.

Langdon contemplou o relevo de mármore e sentiu-se subitamente

ingênuo. Nunca, em seus livros de arte ou em suas numerosas viagens a Roma,

nunca o significado pleno do West Ponente lhe saltara tanto aos olhos.

Nunca, até aquele momento.

O relevo era elíptico, com uns 90 centímetros de comprimento, e mostrava

um rosto rudimentar, uma representação do Vento Oeste com um semblante de

anjo. Saindo da boca do anjo, Bernini desenhara um vigoroso sopro de ar que

vinha da direção do Vaticano - o Sopro de Deus. Esse era o tributo de Bernini ao

segundo elemento, Ar, um zéfiro etéreo brotando dos lábios de um anjo. Enquanto

o examinava, Langdon deu-se conta de que o significado do relevo era ainda mais

profundo. Bernini esculpira o sopro de ar com cinco traços distintos - cinco! E

mais, havia duas estrelas reluzentes ladeando o medalhão. Langdon pensou em

Galileu. Duas estrelas, o sopro de cinco traços, elipses, simetria. Sentiu um vazio

e sua cabeça doía.

Vittoria recomeçou a andar quase imediatamente, guiando-o para longe do

relevo.

- Acho que alguém está nos seguindo - disse ela.

- Onde? - perguntou Langdon, levantando a cabeça.

Vittoria deslocou-se bem uns 30 metros antes de falar. Apontou para o alto

do Vaticano como se mostrasse algo no domo a Langdon.

- A mesma pessoa que vem vindo atrás de nós o tempo todo através da

praça. - De modo despreocupado, deu uma espiada para trás. - E ainda está aí.

Continue andando.

- Acha que é o Hassassin?

Vittoria fez que não com a cabeça.

- A não ser que os Illuminati contratem mulheres com câmeras da BBC.

Quando os sinos de São Pedro iniciaram seu alarido ensurdecedor, tanto

Langdon quanto Vittoria se sobressaltaram. Estava na hora. Tinham se afastado

do West Ponente fazendo um movimento circular mas agora estavam voltando

para perto do relevo.

Apesar do ressoar dos sinos, o local parecia perfeitamente calmo. Turistas

andavam de um lado para outro.

Um mendigo bêbado cochilava meio desajeitado na base do obelisco. A

menina dava comida aos pombos.

Langdon ponderou se a repórter teria espantado o assassino. Duvido,

concluiu ele, lembrando-se da promessa do matador. Farei de seus cardeais

luminares da mídia.

Quando o eco da nona badalada dissipou-se ao longe, um silêncio tranqüilo

desceu sobre a praça.

Então, a menina começou a gritar.

CAPÍTULO 75

Langdon foi o primeiro a alcançar a menina que gritava. Aterrorizada, a

garotinha apontava para a base do obelisco, onde um bêbado decrépito e

maltrapilho estava meio caído nas escadas. O homem tinha um aspecto miserável,

devia ser um dos sem-teto de Roma.

As mechas gordurosas do cabelo grisalho caíam-lhe pelo rosto e o corpo

inteiro estava enrolado em um pano sujo. A menina continuou a gritar enquanto

corria para longe, misturando-se às pessoas.

Langdon foi tomado por uma nova onda de apreensão ao correr na direção

do velho. Havia uma mancha escura se espalhando pelos trapos do homem.

Sangue fresco.

Depois, foi como se tudo acontecesse ao mesmo tempo.

O velho tombou para a frente, oscilante. Langdon precipitou-se para

ampará-lo, mas não houve tempo. O homem rolou as escadas e bateu no chão com

o rosto para baixo. Imóvel.

Langdon caiu de joelhos. Vittoria chegou ao seu lado. Formou-se um

ajuntamento de pessoas.

Vittoria colocou os dedos no pescoço do homem por trás.

- Tem pulso - afirmou. - Vire-o.

Langdon já estava em ação. Segurou o homem pelos ombros e virou-lhe o

corpo. Ao fazê-lo, os trapos que o envolviam soltaram-se como pele morta. O

homem caiu de costas, flácido. Bem no meio de seu peito nu havia uma grande

queimadura.

Vittoria prendeu a respiração e recuou.

Langdon ficou paralisado, em um estado intermediário entre a náusea e o

assombro. O símbolo era de uma simplicidade aterrorizante.

- Ar - arquejou Vittoria. - É ele.

Os guardas suíços surgiram vindos do nada, gritando ordens, correndo atrás

de um assassino invisível.

Perto, um turista explicou que, minutos antes, um homem de pele escura

tivera a gentileza de ajudar aquele pobre mendigo ofegante a atravessar a praça e

chegara a sentar-se por um momento nas escadas com o enfermo antes de voltar e

sumir na multidão.

Vittoria arrancou o resto dos trapos de cima do abdômen do velho. Havia

duas perfurações profundas, uma de cada lado da marca, logo abaixo das costelas.

Ela inclinou a cabeça do homem para trás e iniciou uma respiração boca a boca.

Langdon não estava preparado para o que aconteceu em seguida. Quando

Vittoria soprou, as duas feridas no tórax do homem sibilaram e esguicharam

sangue como se fossem respiradouros de baleia. O líquido salgado atingiu

Langdon no rosto.

Vittoria parou, horrorizada.

- Os pulmões dele... - ela gaguejou - foram perfurados.

Langdon enxugou os olhos e viu as perfurações. Os orifícios gorgolejavam.

Os pulmões do cardeal haviam sido destruídos. Ele estava morto.

Vittoria tentou ocultar o corpo enquanto os guardas suíços se

aproximavam.

Langdon levantou-se, desorientado. E foi quando a viu. A mulher que os

seguira antes estava agachada ali perto. Tinha sua câmera de vídeo com a sigla

BBC apoiada no ombro, voltada para ele e funcionando. Os dois se entreolharam

e ele percebeu que ela gravara tudo. Depois, como um gato, ela fugiu.

CAPÍTULO 76

Chinita Macri estava fugindo. Conseguira a melhor matéria de toda a sua

vida.

Sua câmera de vídeo pesava-lhe como uma âncora enquanto ela

atravessava com dificuldade a Praça de São Pedro, abrindo caminho entre a

multidão cada vez maior. A maioria vinha no sentido oposto ao dela, em direção

ao tumulto que se formara. Macri estava tentando se afastar ao máximo de lá. O

homem do paletó de tweed a vira e agora ela tinha a impressão de que havia

outros em seu encalço, outros que ela não sabia onde estavam e que se

aproximavam de todos os lados.

Macri ainda estava horrorizada com as imagens que acabara de gravar.

Pensava se o homem morto seria realmente quem ela imaginava que fosse. O

contato telefônico misterioso de Glick agora lhe parecia menos maluco.

Ela continuava a seguir apressada para o furgão da BBC quando um rapaz

com inconfundível aspecto militar destacou-se do meio da multidão diante dela.

Seus olhos se encontraram e ambos pararam. Rápido, ele sacou um walkie-talkie e

falou ao aparelho. Depois, andou ao encontro dela. Macri fez meia-volta e

misturou-se às pessoas, o coração batendo forte.

Tropeçando no mar de braços e pernas, ela retirou a fita de vídeo gravada

de dentro da câmera. Ouro puro, pensou, enfiando a fita na parte de trás do seu

cinto, escondida pelas abas do casaco. Ao menos uma vez estava satisfeita com

seu excesso de peso. Glick, seu desgraçado, onde está você?

Outro soldado apareceu à sua esquerda, aproximando-se. Macri sabia que

tinha pouco tempo. Meteu-se pelo meio do povaréu outra vez. Tirou uma fita

virgem da maleta e enfiou-a na câmera. E começou a rezar.

Estava a uns 30 metros do furgão quando os dois homens se materializaram

na frente dela, os braços cruzados. Ela não iria a mais lugar nenhum.

- O filme - disse um. - Agora.

Macri recuou, protegendo sua câmera com os dois braços.

- De jeito nenhum.

Um dos homens abriu a jaqueta, mostrando uma arma no coldre.

- Pode atirar em mim, se quiser - disse Macri, espantada com o atrevimento

de sua própria voz.

- O filme - repetiu o primeiro.

Onde foi parar esse maldito Glick? Macri bateu o pé e gritou o mais alto

que pôde.

- Sou uma profissional da BBC! Pelo artigo 12 da Lei da Liberdade de

Imprensa, este filme é propriedade da British Broadcast Corporation!

Os homens nem se abalaram. O que mostrara a arma deu um passo em sua

direção e disse:

- Sou tenente da Guarda Suíça e, de acordo com a Sagrada Doutrina que

rege a propriedade na qual se encontra agora, a senhora está sujeita a busca e

apreensão.

Muitas pessoas agora começavam a se reunir em torno deles.

Macri gritou:

- Eu me recuso terminantemente a entregar a vocês o filme que está nesta

câmera antes de falar com meu editor em Londres. Sugiro que vocês...

Os guardas não a deixaram continuar. Um arrancou a câmera das mãos

dela. O outro agarrou-a à força pelo braço e virou-a na direção do Vaticano.

- Grazie - dizia ele, empurrando-a através da multidão que se acotovelava.

Macri rezava para que não a revistassem e encontrassem a fita. Se de

algum jeito conseguisse esconder o filme até dar tempo para...

Subitamente, aconteceu o impensável. Alguém estava pondo a mão por

baixo do seu casaco. Macri sentiu a fita ser puxada. Girou o corpo depressa, mas

engoliu as palavras. Atrás dela, um ofegante Glick piscou com uma cara marota e

desapareceu outra vez no meio da multidão.

CAPÍTULO 77

Robert Langdon entrou meio cambaleante no banheiro particular ao lado

do escritório do Papa. Enxugou o sangue no rosto e nos lábios. O sangue não era

seu, mas do cardeal Lamassé, que morrera de modo terrível havia pouco na praça

cheia de gente. Sacrifícios de virgens nos altares da ciência. Até então, o

Hassassin cumprira sua ameaça.

Langdon sentiu-se sem forças ao olhar no espelho. Seu rosto estava

abatido, a barba curta começara a escurecer sua face. O aposento em que se

encontrava era imaculado e luxuoso - mármore negro com ferragens douradas,

toalhas de algodão e sabonetes perfumados.

Tentou apagar de sua mente a marca cruel que vira no peito do cardeal. Ar.

A imagem permanecia. Já vira três ambigramas desde que acordara naquela

manhã e sabia que mais dois estavam a caminho.

Do lado de fora da porta, Olivetti, o camerlengo e o capitão Rocher

estavam discutindo o que fazer em seguida. Pelo jeito, a busca da antimatéria não

dera em nada até aquele momento. Ou os guardas não tinham visto o tubo ou o

intruso fora mais longe dentro do Vaticano do que o comandante Olivetti gostaria

de admitir.

Langdon enxugou o rosto e as mãos. Depois, procurou um mictório. Não

havia mictório, somente um vaso sanitário. Ele levantou a tampa do vaso.

De pé ali, a tensão de seu corpo diminuindo, um atordoamento e uma

grande exaustão invadiram-no. As emoções que se emaranhavam em seu peito

eram muitas e muito incongruentes. Estava cansado, sem dormir nem comer,

percorrendo o Caminho da Iluminação e traumatizado por dois assassinatos

brutais.

Experimentou um sentimento de horror ainda mais profundo quando

pensou no possível desenlace daquele drama.

Pense, disse a si mesmo. Mas sua mente estava em branco.

Quando acionou a descarga, ocorreu-lhe um pensamento inesperado. Este é

o banheiro do Papa.

Acabei de fazer pipi no banheiro do Papa. Teve de rir. No Trono Sagrado.

CAPÍTULO 78

Em Londres, uma funcionária da BBC tirou uma fita de vídeo de um

gravador conectado via satélite e saiu às pressas da sala de controle. Irrompeu pela

sala do chefe de redação, colocou a fita no aparelho de vídeo dele e apertou o

botão play.

Enquanto viam a fita, ela lhe contou sobre a conversa que acabara de ter

com Gunther Glick na Cidade do Vaticano. E acrescentou que obtivera logo

depois uma confirmação da identidade da vítima da Praça de São Pedro nos

arquivos fotográficos da BBC.

Quando o redator-chefe saiu de sua sala, veio tocando uma sineta. Tudo

parou na redação.

- Ao vivo em cinco minutos! - bradou o homem com voz estrondosa.

- Quero gente com talento para editar e colocar no ar! Coordenadores de

mídia, quero seus contatos on-line! Temos uma história para vender! E temos o

filme!

Eles pegaram depressa seus cadernos de telefone.

- Especificação do filme? - gritou um deles.

- Tomada de 30 segundos! - respondeu o chefe.

- Assunto?

- Homicídio ao vivo.

Os coordenadores mostraram-se animados.

- Preço para uso e licença?

- Um milhão de dólares.

Cabeças levantaram-se, rápidas.

- O quê?

- Isto mesmo que vocês ouviram! Quero o topo da cadeia alimentar. CNN,

MSNBC e depois as três grandes!

Ofereçam uma apresentação prévia. Dêem a eles uns cinco minutos para se

organizarem antes que a BBC solte a matéria.

- Que diabos aconteceu? - alguém perguntou. - O primeiro-ministro foi

esfolado vivo?

O chefe balançou a cabeça.

- Muito melhor.

Naquele instante preciso, em algum ponto de Roma, o Hassassin desfrutava

de um fugaz momento de repouso em uma cadeira confortável. Admirava o

lendário aposento onde se encontrava. Estou sentado na Igreja da Iluminação,

pensou. No refúgio dos Illuminati. Quase não acreditava que o local ainda

estivesse ali depois de passados tantos séculos.

Zeloso, discou o número do repórter da BBC com quem falara antes.

Estava na hora. O mundo ainda não ouvira a notícia mais chocante de todas.

CAPÍTULO 79

Vittoria Vetra tomou pequenos goles de água e beliscou distraída uns

bolinhos que um dos guardas suíços acabara de lhe servir. Sabia que precisava

comer, mas não tinha vontade, O escritório do Papa estava fervilhante agora,

cheio do som de conversas tensas. O capitão Rocher, o comandante Olivetti e uma

meia dúzia de guardas avaliavam os prejuízos e debatiam o próximo passo a ser

dado.

Robert Langdon estava por perto olhando para fora, para a Praça de São

Pedro, com um ar bastante desanimado. Vittoria foi até ele.

- Alguma idéia?

Ele fez que não.

- Quer um bolinho?

O ânimo dele pareceu melhorar ao ver algo para comer.

- Puxa, se quero. Obrigado. - E devorou uns bolinhos.

A conversa atrás deles silenciou de repente quando o camerlengo entrou

pela porta acompanhado por dois guardas suíços. Se o camerlengo já parecera

esgotado antes, pensou Vittoria, agora parecia vazio.

- O que aconteceu? - ele perguntou a Olivetti. Pela expressão de seu rosto,

já tinham lhe contado o pior.

O informe oficial de Olivetti soou como um relatório de baixas em

combate. Enumerou os fatos com seca eficiência.

- O cardeal Ebner foi encontrado morto na igreja de Santa Maria del

Popolo logo depois das oito horas.

Havia sido asfixiado e marcado com a palavra ambigramática "Terra". O

cardeal Lamassé foi assassinado na Praça de São Pedro dez minutos atrás. Morreu

de perfurações no peito. Foi marcado a fogo com a palavra "Ar', também

ambigramática. O assassino escapou nas duas oportunidades.

O camerlengo cruzou a sala, sentou-se pesadamente atrás da escrivaninha

do Papa e baixou a cabeça.

- Os cardeais Guidera e Baggia, entretanto, ainda estão vivos.

A cabeça do camerlengo levantou-se de um golpe, no rosto uma expressão

de dor.

- E isso por acaso nos serve de consolo? Dois cardeais foram assassinados,

comandante. E os outros dois pelo jeito também não vão permanecer vivos por

muito tempo, a não ser que o senhor os encontre.

- Vamos encontrá-los - garantiu Olivetti -, estamos esperançosos.

- Esperançosos? Só tivemos fracassos.

- Não é verdade. Perdemos duas batalhas, signore, mas estamos vencendo a

guerra. Os Illuminati pretendiam transformar esta noite em um espetáculo para a

mídia. Até agora, frustramos os planos deles.

Os corpos dos dois cardeais foram resgatados sem incidentes. Além disso -

continuou Olivetti -, o capitão Rocher contou-me que está fazendo grandes

avanços na busca da antimatéria.

O capitão Rocher, com sua boina vermelha na cabeça, deu um passo à

frente. Vittoria observou que de certa forma ele parecia mais humano do que os

outros guardas, firme mas não tão rígido. A voz de Rocher era cristalina, com um

tom emocionado, como um violino.

- Espero trazer o tubo para o senhor dentro de uma hora, signore.

- Capitão - disse o camerlengo -, desculpe-me se não demonstro confiança,

mas tive a impressão de que a busca da Cidade do Vaticano levaria muito mais

tempo do que isso.

- Uma busca completa, sim. No entanto, depois de avaliar a situação, creio

que o tubo de antimatéria esteja localizado em uma de nossas zonas brancas, os

setores do Vaticano acessíveis ao público em geral, os museus e a Basílica de São

Pedro, por exemplo. Já desligamos a energia elétrica nessas zonas e estamos

realizando a nossa varredura.

- Vocês pretendem procurar em só uma pequena parcela da Cidade do

Vaticano?

- Sim, signore. É muito improvável que um intruso tenha tido acesso às

zonas mais centrais do Vaticano, O fato de a câmera de segurança em

questão ter sido roubada em uma área aberta ao público, um vão de escada de um

dos museus, claramente indica que o invasor tinha acesso limitado. Portanto, só

poderia reinstalar a câmera e deixar a antimatéria em outra área aberta ao público.

É nestas áreas que estamos concentrando nossas buscas.

- Mas esse homem seqüestrou quatro cardeais. O que decerto supõe uma

infiltração mais profunda do que pensávamos.

- Não necessariamente. Precisamos lembrar que os quatro cardeais

passaram grande parte do dia nos museus do Vaticano e na Basílica de São Pedro,

desfrutando destes locais sem a presença do público. É provável que os cardeais

tenham sido capturados em um desses pontos.

- E como foram levados para fora de nossos muros?

- Ainda estamos analisando isto.

- Compreendo. - O camerlengo suspirou e levantou-se. Aproximou-se de

Olivetti. - Comandante, gostaria de saber qual é o seu plano de contingência para

uma evacuação da cidade.

- Ainda estamos formalizando isto, signore. Nesse meio tempo, acredito

que o capitão Rocher vá encontrar o tubo.

Rocher bateu os calcanhares em apreço pelo voto de confiança.

- Meus homens já examinaram dois terços das zonas brancas. Há um alto

grau de confiança.

O camerlengo não demonstrava o mesmo sentimento.

Naquele momento, o guarda com a cicatriz sob um dos olhos entrou

trazendo uma pequena prancheta e um mapa.

Dirigiu-se a Langdon.

- Senhor Langdon? Trouxe a informação que o senhor solicitou sobre o

West Ponente.

Langdon engoliu seu bolinho.

- Ótimo. Vamos a ela.

Os outros continuaram conversando enquanto Vittoria juntava-se a Robert

e aos guardas e eles abriam o mapa sobre a escrivaninha do Papa.

O soldado apontou para a Praça de São Pedro.

- Aqui é onde estamos. O traço do meio do sopro de West Ponente aponta

para leste, direto para fora da Cidade do Vaticano. - O guarda traçou uma linha

com seu dedo a partir da Praça de São Pedro, atravessando o rio Tibre e entrando

no coração da velha Roma. - Como vêem, a linha passa por quase toda Roma.

Existem umas 20 igrejas católicas perto desta linha.

Langdon quase desmontou.

- Vinte?

- Talvez mais.

- A linha passa exatamente em cima de alguma dessas igrejas?

- Algumas estão mais próximas - disse o guarda -, mas transferir as

orientações do West Ponente para um mapa vai dar margem a muitos erros.

Langdon olhou para a Praça de São Pedro por um instante. Depois, coçou o

queixo e perguntou.

- E com relação afogo? Será que uma delas não teria alguma obra de

Bernini relacionada a fogo?

Silêncio.

- E obeliscos? - perguntou ele. - Existe alguma perto de um obelisco?

O guarda examinou de novo o mapa.

Vittoria viu um lampejo de esperança no rosto de Langdon e adivinhou o

que ele estava pensando. Ele tem razão! Os dois primeiros marcos ficavam perto

de praças que tinham obeliscos. Quem sabe se os obeliscos não seriam o tema?

Pirâmides elevadas marcando a trilha dos Illuminati? Quanto mais Vittoria

pensava mais apropriado lhe parecia: quatro sinais proeminentes erguendo-se

acima de Roma para marcar os altares da ciência.

- É uma probabilidade remota - disse Langdon -, mas sei que muitos dos

obeliscos de Roma foram erigidos ou levados de um lugar para outro no tempo de

Bernini. Ele com certeza esteve envolvido na instalação deles.

- Ou - acrescentou Vittoria - Bernini poderia ter colocado seus marcos

perto de obeliscos já existentes.

- É verdade - concordou Langdon.

- Más notícias - disse o guarda. - Nenhum obelisco nessa reta. - Correu o

dedo pelo mapa. - Nem perto dela. Nada.

Langdon suspirou.

Vittoria deixou os ombros caírem. Achara a idéia boa, mas, pelo jeito, não

ia ser tão fácil quanto esperavam. Esforçou-se para continuar sendo positiva.

- Robert, pense. Você deve conhecer alguma estátua de Bernini que tenha

alguma coisa a ver com fogo. Qualquer coisa.

- Acredite, estive pensando nisso. Bernini era incrivelmente produtivo.

Criou centenas de obras. Contava que o West Ponente indicasse uma única igreja.

Algo que chamasse a atenção.

- Fuàco - insistiu ela. - Fogo. Nenhum título de obra de Bernini lhe ocorre?

- Existem os famosos desenhos de Fogos de Artifício, mas não são

escultura e estão em Leipzig, na Alemanha.

Vittoria fez uma careta.

- E tem certeza de que o sopro é o que indica a direção?

- Você viu o relevo, Vittoria. O desenho é inteiramente simétrico. A única

referência a direção é o sopro.

Vittoria sabia que ele tinha razão.

- Sem falar que, pelo fato de o West Ponente significar Ar, seguir o sopro é

simbolicamente apropriado - acrescentou ele.

Muito bem, pensou ela, então vamos seguir o sopro. Mas para onde?

Olivetti aproximou-se.

- O que encontraram?

- Igrejas demais - disse o soldado. - Umas vinte e tantas. Se puséssemos

quatro homens em cada igreja...

- Esqueça - disse Olivetti. - Já deixamos esse sujeito escapar duas vezes

sabendo exatamente onde ele ia estar. Um cerco maciço deixaria a Cidade do

Vaticano desprotegida e nos obrigaria a cancelar a busca à antimatéria.

- Precisamos de uma obra de referência - disse Vittoria. - Um índice das

obras de Bernini. Se examinarmos os títulos delas, talvez nos ocorra alguma idéia.

- Não sei, não - disse Langdon. - Se for uma obra que Bernini criou

especificamente para os Illuminati, pode ser muito obscura. Não é muito provável

que conste de alguma lista em um livro.

Vittoria recusava-se a acreditar.

- As outras duas esculturas eram muito famosas. Você as conhecia.

- Pois é - disse Langdon.

- Se procurarmos referências à palavra "fogo" em uma lista de títulos,

talvez encontremos uma estátua que esteja na direção certa.

Langdon convenceu-se de que valia a pena tentar. Dirigiu-se a Olivetti.

- Preciso de uma lista de todas as obras de Bernini. Será que vocês têm por

aqui um desses livros grandes sobre Bernini, desses que as pessoas colocam em

cima de mesas baixas para serem folheados?

Olivetti não entendeu a que tipo de livro Langdon se referia.

- Deixe para lá. Qualquer lista de obras serve. No Museu do Vaticano eles

devem ter referências sobre Bernini.

O guarda com a cicatriz fez um aparte.

- O museu está sem luz no momento e a sala de registros é gigantesca. Sem

a equipe de lá para ajudar...

- A obra de Bernini em questão - interrompeu Olivetti - teria sido criada

enquanto Bernini trabalhava aqui no Vaticano?

- Isso é praticamente certo - respondeu Langdon. - Ele passou quase toda a

carreira aqui. E certamente estava aqui durante o período dos conflitos da Igreja

com Galileu.

Olivetti balançou a cabeça.

- Então, existem outras referências.

Vittoria sentiu um lampejo de otimismo.

- Onde?

O comandante não respondeu. Falou à parte e em voz baixa com o guarda.

O guarda pareceu inseguro, mas assentiu com a cabeça, obediente. Quando

Olivetti acabou de falar, o guarda dirigiu-se a Langdon.

- Venha comigo, por favor, senhor Langdon. São 9h 15. Temos de nos

apressar.

Langdon e o guarda se dirigiram para a porta.

Vittoria saiu atrás deles.

- Vou junto para ajudar.

Olivetti pegou-a pelo braço.

- Não, senhorita Vetra. Preciso falar com a senhorita.

A pressão da mão dele era firme.

Langdon e o guarda saíram. O rosto de Olivetti parecia uma dura máscara

de madeira quando a levou para um lado.

Entretanto, o que quer que ele fosse dizer, não teve mais oportunidade. Seu

walkie-talkie crepitou alto.

- Commandante?

Todos na sala se viraram.

A voz no transmissor soou desagradável.

- É melhor o senhor ligar a televisão.

CAPÍTULO 80

Ao deixar os Arquivos Secretos do Vaticano apenas duas horas antes,

Langdon jamais pensou que fosse voltar lá. Agora, meio sem fôlego por ter feito

todo o percurso correndo com o guarda suíço que o acompanhava, Langdon

encontrava-se de volta.

Seu acompanhante, o guarda com a cicatriz, conduziu Langdon ao longo

das filas de cubículos transparentes. O silêncio nos arquivos de certa forma

parecia mais ameaçador do que antes e Langdon ficou satisfeito quando o guarda

o quebrou.

- Ali adiante, acho - disse ele, conduzindo Langdon para os fundos da sala,

onde uma sucessão de câmaras menores enfileirava-se ao longo da parede. O

guarda examinou os títulos das câmaras e indicou uma delas.

- Isso mesmo, aqui está. Onde o comandante disse que estaria.

Langdon leu o título. ATTIVI VATICANI. Ativos do Vaticano? Deu uma

espiada na lista de assuntos. Imóveis, moeda, Banco do Vaticano, antiguidades - a

lista prosseguia.

- Documentos de todos os ativos do Vaticano - disse o guarda.

Langdon olhou para o cubículo. Jesus! Mesmo no escuro, dava para ver

que estava lotado.

- Meu comandante disse que tudo o que Bernini criou enquanto trabalhava

para o Vaticano deve estar listado aqui como ativo.

Langdon concordou, achando que o palpite do comandante talvez desse

resultado. No tempo de Bernini, tudo o que um artista criava sob o patrocínio do

Papa tornava-se, por lei, propriedade do Vaticano. Era mais feudalismo do que

mecenato, mas os grandes artistas viviam bem e raramente se queixavam.

- Inclusive obras localizadas em igrejas fora da Cidade do Vaticano?

O soldado lançou-lhe um olhar enviesado.

- Claro. Todas as igrejas católicas de Roma são propriedade do Vaticano.

Langdon deu uma olhada na lista que tinha na mão. Continha o nome das

vinte e tantas igrejas localizadas na linha reta determinada pelo sopro de West

Ponente.

O terceiro altar da ciência era uma delas e ele esperava que tivesse tempo

de descobrir qual. Em outras circunstâncias, teria de muito bom grado explorado

pessoalmente cada uma das igrejas. Naquele dia, porém, tinha cerca de 20 minutos

para encontrar o que procurava: a igreja que guardava um tributo de Bernini ao

fogo.

Encaminhou-se para a porta giratória eletrônica da câmara. O guarda não o

seguiu. Langdon percebeu uma hesitação nele. Deu um sorriso.

- O ar está ótimo. Rarefeito, mas respirável.

- Minhas ordens foram para acompanhá-lo até aqui e depois voltar

imediatamente para o centro de segurança.

- Você vai embora?

- Vou. A Guarda Suíça não tem permissão para entrar nos Arquivos. Já

estou quebrando o protocolo por acompanhá-lo até este ponto. O comandante

mencionou isto para mim.

- Quebrando o protocolo? Tem alguma noção de o que está se passando por

aqui esta noite? De que lado o seu comandante está, afinal?

Toda a afabilidade desapareceu do rosto do guarda. A cicatriz sob seu olho

estremeceu. Suas feições endureceram e ele ficou bastante parecido com o próprio

Olivetti.

- Desculpe - disse Langdon, arrependendo-se de ter feito o comentário. - É

só porque um pouco de ajuda seria bom.

O guarda nem pestanejou.

- Fui treinado para cumprir ordens. Não para discuti-las. Quando encontrar

o que procura, entre em contato com o comandante imediatamente.

Langdon ficou confuso.

- Mas onde ele vai estar?

O guarda retirou seu walkie-talkie e colocou-o sobre uma mesa próxima.

- Canal um.

E desapareceu na escuridão.

CAPÍTULO 81

O aparelho de televisão que havia no escritório do Papa era um enorme

Hitachi escondido em um armário do lado oposto da escrivaninha. As portas do

armário tinham sido abertas e todos estavam reunidos diante da TV. Vittoria

também foi para perto do aparelho. Quando a tela se acendeu, mostrou uma jovem

repórter morena com olhos castanhos de gazela.

- Para o jornal da MSNBC - anunciou ela -, sou Kelly Horan-Jones, ao vivo

da Cidade do Vaticano.

Atrás da moça, uma imagem noturna da Basílica de São Pedro com todas

as luzes brilhando.

- Você não está ao vivo coisa nenhuma - disparou Rocher. - As luzes da

basílica estão apagadas neste momento!

Olivetti calou-o com um psiu.

A repórter continuou, com voz tensa.

- Graves acontecimentos abalaram a eleição no Vaticano esta noite. Temos

a informação de que dois membros do Colégio dos Cardeais foram brutalmente

assassinados em Roma.

Olivetti soltou uma praga em voz baixa.

Enquanto a moça falava na televisão, um guarda apareceu à porta,

esbaforido.

- Comandante, a mesa telefônica central comunicou que todas as linhas

estão chamando. Solicitam nossa posição oficial sobre...

- Desliguem a mesa telefônica - disse Olivetti, sem tirar os olhos da TV.

O guarda ficou hesitante.

- Mas, comandante...

-Vá!

O guarda saiu correndo.

Vittoria notou que o camerlengo quis dizer alguma coisa, mas se conteve.

Em vez de falar, ele olhou prolongada e firmemente para Olivetti antes de se

voltar outra vez para a televisão.

A MSNBC estava agora mostrando cenas gravadas. A Guarda Suíça

descendo as escadas de Santa Maria del Popolo com o corpo do cardeal Ebner,

depois o levantando-o para colocar no Alpha Romeo. A imagem era congelada e o

corpo despido do cardeal aparecia em dose antes de ser depositado na mala do

carro.

- Quem foi o desgraçado que filmou isso? - perguntou Olivetti.

A repórter da MSNBC continuava falando.

- Acredita-se que esse seja o corpo do cardeal Ebner, de Frankfurt,

Alemanha. Os homens que estão retirando seu corpo da igreja pertencem

provavelmente à Guarda Suíça do Vaticano.

A repórter dava a impressão de estar fazendo o máximo de esforço para

aparentar emoção. Em seguida, um close de seu rosto sugeria uma profunda

consternação.

- Neste momento, a MSNBC gostaria de avisar aos seus espectadores que

as imagens que vamos mostrar agora são extremamente dramáticas e não são

recomendadas para todas as pessoas.

Vittoria fez pouco da falsa preocupação da emissora com a sensibilidade

dos espectadores, reconhecendo aquela observação como o supremo recurso da

mídia para chamar a atenção. Ninguém mudava de canal depois de um aviso como

aquele.

A repórter insistiu.

- Repetimos, as cenas a que vamos assistir podem perturbar alguns

espectadores.

- Que cenas? - perguntou Olivetti. - Vocês já mostraram...

Surgiu na TV um casal andando no meio da multidão da Praça de São

Pedro. Vittoria logo reconheceu as duas pessoas como sendo ela própria e Robert

Langdon. Em um canto da tela, lia-se em letras pequenas um texto sobreposto:

CORTESIA DA BBC. Um sino tocava ao fundo.

- Ah, não - disse Vittoria em voz alta. - Ah... não.

O camerlengo parecia não compreender. Dirigiu-se a Olivetti.

- Você não me disse que havia confiscado essa fita?

Subitamente, na televisão, havia uma criança gritando. A câmera deslocouse

para uma garotinha apontando para o que aparentava ser um mendigo

ensangüentado. Robert Langdon apareceu abruptamente tentando ajudar a menina.

O cinegrafista estabilizou a câmera no mesmo ponto.

Todos no escritório do Papa assistiram em silêncio, horrorizados, ao drama

desenrolar-se diante deles. O corpo do cardeal tombou e ele caiu com o rosto no

chão. Vittoria apareceu e começou a agir. Havia sangue. A marca a fogo. Uma

tentativa horripilante e fracassada de administrar respiração boca a boca.

- Essas cenas incríveis - a repórter estava dizendo - foram filmadas poucos

minutos atrás fora do Vaticano. Nossas fontes nos informam que se trata do

cardeal Lamassé, da França. Por que ele estaria vestido daquela maneira e por que

não estava no conclave são perguntas que permanecem sem resposta. Até agora, o

Vaticano recusou-se a fazer qualquer comentário. - E a fita recomeçou a ser

exibida.

- "Recusou-se a fazer qualquer comentário"? - disse Rocher. - Não tivemos

nem tempo!

A repórter continuava a falar com grande intensidade, as sobrancelhas

franzidas.

- A MSNBC ainda não obteve confirmação sobre o motivo do ataque, mas

nossas fontes asseguram que um grupo que se autodenomina Illuminati assumiu a

responsabilidade pelos assassinatos.

Olivetti explodiu.

- O quê?!

- . . . saiba mais sobre os Illuminati visitando nosso site em...

- Non é posibile! - declarou Olivetti. E mudou de canal.

Na outra estação havia um repórter hispânico falando:

- . . . um culto satânico conhecido como os Illuminati, que alguns

historiadores acreditam...

Olivetti começou a apertar freneticamente o controle remoto. Todos os

canais estavam transmitindo a notícia ao vivo.

Muitos deles, em inglês.

- . . . Guarda Suíça removendo um corpo de uma igreja no princípio desta

noite. Acredita-se que o corpo seja o do cardeal...

- . . . as luzes da basílica e dos museus foram apagadas e especula-se que...

- . . . dentro em pouco falaremos com o especialista em teorias

conspiratórias Tyler Tingley sobre esse espantoso reaparecimento...

- ...há rumores sobre mais dois assassinatos planejados para mais tarde esta

noite...

- . . .dúvidas se o provável Papa, o cardeal Baggia, estaria entre os

desaparecidos...

Vittoria afastou-se. Tudo estava acontecendo rápido demais. Lá fora, na

noite que descia, o rude magnetismo da tragédia humana parecia atrair mais

pessoas para a Cidade do Vaticano. A multidão na praça aumentava quase a cada

instante. Os pedestres chegavam incessantemente enquanto novas equipes de

imprensa descarregavam seus furgões e faziam valer seus direitos na Praça de São

Pedro.

Olivetti largou o controle remoto e dirigiu-se ao camerlengo.

- Signore, não posso imaginar como isso aconteceu. Nós pegamos a fita

que estava naquela câmera!

O camerlengo parecia momentaneamente atordoado para falar.

Ninguém dizia uma palavra sequer. A Guarda Suíça mantinha-se rígida,

atenta.

- Tudo indica - disse finalmente o camerlengo, em um tom de voz arrasado

demais para estar zangado - que não soubemos conter essa crise tão bem quanto

fui levado a acreditar. - Olhou pela janela, para a massa de gente que se formava

lá fora. - Preciso fazer um pronunciamento.

Olivetti sacudiu a cabeça.

- Não, signore. Isso é precisamente o que os Illuminati querem que faça.

Legitimá-los, admitir seu poder. Temos de nos manter em silêncio.

- E essas pessoas? - O camerlengo apontou para a janela. - Logo haverá

milhares. Depois, centenas de milhares. Deixar que essa charada prossiga só vai

colocá-las em perigo. Tenho de preveni-las. E em seguida temos de tirar daqui o

nosso Colégio de Cardeais.

- Ainda há tempo. Deixe que o capitão Rocher encontre a antimatéria.

O camerlengo encarou-o.

- Está querendo me dar ordens?

- Não, estou lhe dando um conselho. Se está preocupado com o povo lá

fora, podemos anunciar que houve um escapamento de gás e desimpedir a área,

mas admitir a nossa vulnerabilidade pode ser perigoso.

- Comandante, só vou dizer isto uma vez. Não vou usar esse cargo como

um púlpito para mentir para o mundo. Se eu anunciar alguma coisa, só poderá ser

a verdade.

- A verdade? A Cidade do Vaticano está ameaçada de ser destruída por

terroristas satânicos! Só vai enfraquecer nossa posição.

O camerlengo fulminou-o com o olhar.

- Nossa posição não pode ficar mais fraca do que já está.

Rocher gritou repentinamente, apoderando-se do controle remoto e

aumentando o volume da televisão. Todos se viraram para o aparelho.

No ar, a mulher da MSNBC parecia agora verdadeiramente amedrontada.

Ao lado dela haviam sobreposto uma fotografia do último Papa.

- ... divulgar informações. Acabamos de receber a notícia da BBC... - ela

relanceou o olhar para a câmera como se quisesse confirmar que tinha realmente

de dar aquela notícia. Aparentemente tendo recebido confirmação, voltou-se para

os espectadores. - Os Illuminati acabaram de assumir a responsabilidade pela... -

ela hesitou. - Eles assumiram a responsabilidade pela morte do Papa 15 dias atrás.

O queixo do camerlengo caiu.

Rocher largou o controle remoto.

Vittoria mal conseguia processar a informação.

- Pela lei do Vaticano - a mulher prosseguiu -, jamais se realiza uma

autópsia formal em um Papa, portanto não se pode confirmar a declaração de

assassinato feita pelos Illuminati. Seja como for, os Illuminati afirmam que a

causa da morte do último Papa não foi um derrame, como relatou o Vaticano, mas

envenenamento.

A sala inteira ficou em silêncio completo outra vez.

Olivetti irrompeu em exclamações.

- Loucura! Que mentira descarada!

Rocher começou a mudar rapidamente os canais outra vez. O boletim

espalhara-se como uma praga de uma estação para outra. Todas tinham a mesma

história. As chamadas competiam pelo maior sensacionalismo possível.

ASSASSINATO NO VATICANO

PAPA ENVENENADO

SATÃ NA CASA DE DEUS

O camerlengo afastou os olhos da tela.

- Que Deus nos ajude.

Quando Rocher estava mudando de canal, passou pela BBC.

- . . .me avisou sobre o assassinato em Santa Maria del Popolo...

- Espere! - disse o camerlengo. - Volte.

Rocher voltou. Na tela, um locutor empertigado estava sentado diante da

escrivaninha do jornal da BBC. Acima do ombro dele destacava-se uma foto de

um homem esquisito com uma barba ruiva. Sob a foto estava escrito:

GUNTHER GLICK - AO VIVO DA CIDADE DO VATICANO.

O repórter Glick transmitia suas notícias pelo telefone, a ligação

entremeada de chiados intermitentes.

- . . . minha cinegrafista conseguiu gravar a cena do cardeal sendo

removido da Capela Chigi.

- Devo lembrar aos nossos espectadores - disse o âncora em Londres - que

o repórter Gunther Glick, da BBC, foi quem primeiro divulgou esta história.

Até agora manteve dois contatos telefônicos com o suposto assassino

Illuminati. Gunther, você confirma que o assassino telefonou há pouco para

transmitir uma mensagem dos Illuminati?

- Sim, confirmo.

- E a mensagem informava que os Illuminati foram de alguma forma

responsáveis pela morte do Papa? - A voz do âncora revelava incredulidade.

- Correto. A pessoa me disse que a morte do Papa não foi causada por um

derrame, como o Vaticano pensou, mas que o Papa foi envenenado pelos

Illuminati.

No escritório do Papa todos estavam paralisados.

- Envenenado? - perguntou o âncora. - Mas como?

- Ele não especificou - respondeu Glick - só me disse que o mataram com

uma droga conhecida como... - ouviu-se um ruído de papéis sendo folheados -

alguma coisa conhecida como heparina.

O camerlengo, Olivetti e Rocher trocaram olhares embaraçados.

- Heparina? - Rocher perguntou, espantado. - Mas não era...?

O camerlengo empalideceu.

- A medicação do Papa.

Vittoria ficou atordoada.

- O Papa estava tomando heparina?

- Ele tinha tromboflebite - disse o camerlengo. - Tomava uma injeção por

dia.

Rocher estava perplexo.

- Mas a heparina não é veneno. Por que os Illuminati diriam que...

- A heparina é letal nas dosagens erradas - esclareceu Vittoria. - Trata-se de

um anticoagulante poderoso. Uma dose excessiva poderia causar uma grande

hemorragia interna e hemorragia cerebral.

Olivetti perguntou, desconfiado:

- Como sabe disso?

- Os biólogos usam heparina em mamíferos marinhos em cativeiro para

evitar coágulos causados pela diminuição de atividade. Já morreram animais por

administração errada do remédio. - Ela fez uma pausa. - Uma dose excessiva de

heparina em um ser humano pode causar sintomas que seriam facilmente

confundidos com os de um derrame, sobretudo se não se fizer uma autópsia

adequada.

O camerlengo agora se mostrava profundamente perturbado.

- Signore - disse Olivetti -, isso é obviamente uma manobra dos Illuminati

para atrair mais publicidade. Seria impossível alguém dar uma dose excessiva de

remédio ao Papa. Ninguém tinha acesso. E mesmo que engolíssemos a isca e

tentássemos refutar a declaração deles, como poderíamos? A lei papal proíbe a

autópsia. E mesmo que se fizesse a autópsia, nada ficaria esclarecido, porque se

encontraria heparina no corpo dele, a das injeções que ele tomava todos os dias.

- É verdade. - E a voz do camerlengo tornou-se mais penetrante. - No

entanto, algo mais me incomoda. Ninguém de fora sabia que Sua Santidade estava

tomando heparina.

Fez-se silêncio.

- Se ele tomou uma dose excessiva de heparina - disse Vittoria -, seu corpo

teria sinais disso.

Olivetti girou o corpo para encará-la.

- Senhorita Vetra, caso não tenha escutado, as autópsias papais são

proibidas pela Lei do Vaticano. Não vamos profanar o corpo de Sua Santidade,

cortando-o todo só porque um inimigo fez declarações ridículas!

Vittoria sentiu-se constrangida.

- Eu não estava sugerindo... - Ela não tivera intenção de desrespeitar

ninguém. - Com certeza, não sugeri que exumassem o Papa...

Ainda assim, hesitava em falar. Algo que Robert lhe contara em Chigi

passara por sua mente como um fantasma. Ele mencionara que os sarcófagos

papais eram mantidos acima do solo e nunca fechados com cimento, talvez um

costume vindo do tempo dos faraós, quando se acreditava que lacrar e enterrar um

caixão prendia a alma do defunto lá dentro. A gravidade tornara-se a alternativa à

argamassa, com tampas de caixões que às vezes pesavam centenas de quilos.

Tecnicamente, ela percebia, seria possível...

- Que espécie de sinais? - perguntou inesperadamente o camerlengo.

Vittoria sentiu seu coração palpitar de medo.

- As doses excessivas podem causar sangramento da mucosa oral.

- Da...

- As gengivas da vítima sangrariam. Algum tempo após a morte, o sangue

coagularia e o interior da boca ficaria negro.

Certa vez, Vittoria tinha visto uma foto tirada em um aquário de Londres

em que um par de baleias havia sido medicado em excesso por um engano de seu

treinador. As baleias boiavam mortas dentro do tanque, as bocas abertas e as

línguas negras como piche.

O camerlengo não fez nenhum comentário. Pensativo, olhava pela janela.

A voz de Rocher perdera todo o otimismo.

- Signore, se essa história de envenenamento for verdadeira...

- Não é - declarou Olivetti, categórico. - O acesso ao Papa por uma pessoa

de fora é absolutamente impossível.

- Se a história for verdadeira - repetiu Rocher - e nosso Santo Padre tiver

sido mesmo envenenado, isto tem enormes implicações para a procura da antimatéria.

Um suposto assassinato significa uma infiltração muito maior no

Vaticano do que calculamos. Procurar só nas zonas brancas pode ser inútil. Se

estivermos a tal ponto comprometidos, talvez não encontremos o tubo de antimatéria

a tempo.

Olivetti dirigiu um olhar gelado a seu capitão.

- Capitão, vou lhe dizer o que vai acontecer.

- Não - disse o camerlengo, virando-se repentinamente. - Eu vou lhe dizer

o que vai acontecer. - Encarou Olivetti.

- Isso já foi longe demais. Em 20 minutos vou decidir se cancelo o

conclave e esvazio a Cidade do Vaticano ou não.

Minha decisão vai ser definitiva. Ficou bem claro?

Olivetti nem piscou. Nem reagiu.

O camerlengo falava agora energicamente, como se recorresse a uma

reserva escondida de força.

- O capitão Rocher vai completar sua busca nas zonas brancas e prestar

contas diretamente a mim quando terminar.

Rocher curvou a cabeça, endereçando um olhar constrangido a Olivetti.

O camerlengo então destacou dois guardas.

- Quero o repórter da BBC, o senhor Glick, aqui neste escritório

imediatamente. Se os Illuminati andaram se comunicando com ele, talvez possa

nos ajudar. Andem.

Os dois soldados desapareceram.

O camerlengo então dirigiu-se aos guardas restantes.

- Cavalheiros, não vou permitir que mais vidas se percam esta noite. Até as

dez horas vocês vão localizar os dois últimos cardeais e capturar o monstro

responsável por essas mortes. Será que me fiz compreender?

- Mas, signore - objetou Olivetti -, não temos a menor idéia de onde...

- O senhor Langdon está trabalhando nisso. Ele parece competente. Tenho

esperanças.

Com isto, o camerlengo encaminhou-se para a porta, suas passadas

revelando uma nova determinação. Antes de sair, apontou para três guardas.

- Vocês três, venham comigo. Agora.

Os guardas o seguiram.

Junto da porta, o camerlengo se deteve. Falou com Vittoria.

- Senhorita Vetra, venha também, por favor.

Vittoria ficou insegura.

- Aonde vamos?

Ele saiu porta afora.

- Ver um velho amigo.

CAPÍTULO 82

No CERN, a secretária Sylvie Baudeloque estava faminta, querendo ir para

casa. Para sua decepção, Kohler parecia ter sobrevivido ao seu passeio à

enfermaria. Ele telefonara e mandara - não pedira, mandara - que Sylvie ficasse

até mais tarde naquele dia. Sem a menor explicação.

No decorrer dos anos, Sylvie programara-se para ignorar as bizarras

oscilações de humor e as excentricidades de Kohler - sua convivência silenciosa,

sua mania irritante de filmar reuniões em segredo com a câmera de vídeo portátil

de sua cadeira de rodas. Intimamente, desejava que um dia ele desse um tiro por

engano em si mesmo durante a sua visita semanal ao estande recreativo de tiro ao

alvo do CERN, mas pelo jeito ele era um exímio atirador.

Agora, sentada sozinha diante de sua escrivaninha, Sylvie sentia o

estômago roncar. Kohler não voltara nem lhe dera nenhum trabalho extra para

aquela noite. Pois sim que vou ficar plantada aqui passando fome e me

aborrecendo sem fazer nada, decidiu. Deixou um bilhete para Kohler e foi até a

cantina fazer um lanche.

Mas não chegou lá.

Ao passar pelas suítes de loisir do CERN, uma área de lazer formada por

um comprido corredor com saguões onde havia televisões, notou que as salas

estavam transbordando de empregados que deviam ter abandonado o jantar para

assistir às notícias. Alguma coisa importante estava acontecendo. Sylvie entrou na

primeira suíte. Estava lotada de jovens programadores de computador. Quando

viu as manchetes na TV, ela tomou um susto.

TERRORISMO NO VATICANO

Sylvie escutou o comentário, mal acreditando no que ouvia. Uma

fraternidade antiga matando cardeais? Para provar o quê? O ódio deles? O

domínio? A ignorância?

E o mais inacreditável é que o humor reinante naquela suíte era tudo,

menos sombrio.

Dois jovens técnicos passaram correndo, exibindo camisetas que traziam

um retrato de Bill Gates e a inscrição: E OS NERDS HERDARÃO A TERRA!

- Illuminati! - gritou um. - Eu disse para você que esses caras existiam!

- Incrível! Pensei que fosse só um jogo!

- Eles mataram o Papa, cara! O Papa!

- É! Quanto pontos será que se ganha por isto?

E foram embora dando risadas.

Sylvie ficou parada ali, estarrecida. Como católica e trabalhando em um

meio de cientistas, de vez em quando ouvia uma ou outra observação antireligiosa,

mas a festa que os garotos estavam fazendo era de total euforia pela

perda que a Igreja sofrera. Como podiam ser tão insensíveis? Por que tanto ódio?

Para Sylvie, a Igreja fora sempre uma entidade inofensiva, um local de

companheirismo e introspecção e, às vezes, apenas um lugar onde podia cantar em

voz alta sem que as pessoas olhassem para ela. A Igreja registrava as referências

de sua vida - funerais, casamentos, batismos, feriados - e não pedia nada em troca.

Até as doações em dinheiro eram voluntárias. Seus filhos todas as semanas

saíam melhores da igreja dominical, cheios de idéias sobre ajudarem os outros e

serem mais bondosos. O que poderia haver de errado aí?

Sempre se admirara que tantas das chamadas "mentes brilhantes" do CERN

deixassem de compreender a importância da Igreja. Será que de fato acreditavam

que quarks e mésons também serviam de inspiração para a média dos seres

humanos? Ou que as equações podiam substituir a necessidade de uma pessoa ter

fé no divino?

Aturdida, Sylvie foi andando pelo corredor e passando pelos outros

saguões. Todas as salas de TV estavam cheias de gente. Refletiu sobre aquele

telefonema que Kohler recebera do Vaticano mais cedo.

Coincidência? Talvez. O Vaticano ligava para o CERN de tempos em

tempos como "cortesia" antes de divulgar declarações mordazes condenando as

pesquisas do CERN - a mais recente fora sobre os avanços do CERN em

nanotecnologia, um campo que a Igreja denunciava por causa de suas implicações

para a engenharia genética. O CERN jamais dava importância às críticas.

Invariavelmente, minutos após uma das investidas do Vaticano, o telefone de

Kohler tocava sem parar com chamadas das companhias de investimento em

tecnologia querendo permissão para utilizar a nova descoberta. Kohler sempre

dizia:

"Nada melhor do que a má propaganda."

Sylvie ponderou se deveria mandar uma mensagem pelo pager de Kohler,

onde quer que ele estivesse metido, e dizer-lhe para ver as notícias. Será que se

interessaria? Ou já ouvira tudo? Claro que já deveria ter ouvido. Provavelmente,

estava gravando toda a reportagem com sua frenética filmadora, sorrindo pela

primeira vez em todo o ano.

Continuando seu percurso pelo corredor, ela finalmente encontrou um

saguão com um ambiente mais calmo, quase melancólico. Os cientistas que se

encontravam ali vendo televisão eram alguns dos mais velhos e mais respeitados

do CERN. Nem repararam quando Sylvie entrou e se sentou.

Do outro lado do CERN, no frígido apartamento de Leonardo Vetra,

Maximiian Kohler acabara de ler o diário de capa de couro que tirara da mesa-decabeceira

de Vetra. Agora, estava assistindo às notícias da televisão. Depois de

alguns minutos, guardou o diário, desligou a TV e saiu do apartamento.

Longe dali, na Cidade do Vaticano, o cardeal Mortati levou outra bandeja

cheia de fichas de voto para a lareira da Capela Sistina. Queimou-as e a fumaça

saiu negra.

Duas votações. Não se elegera o Papa.

CAPÍTULO 83

A luz fraca das lanternas pouco adiantava naquele volumoso negrume da

Basílica de São Pedro. O vácuo acima de suas cabeças pesava sobre eles como

uma noite sem estrelas. Vittoria sentiu o vazio espalhar-se em torno dela como um

oceano solitário. Mantinha-se perto do camerlengo e dos guardas suíços enquanto

caminhavam. No alto, uma pomba arrulhou e esvoaçou para longe, as asas

farfalhando.

Parecendo notar aquele desconforto, o camerlengo deixou-se ficar para trás

e pousou a mão em seu ombro.

Uma força tangível transferiu-se para ela com aquele toque, como se o

homem magicamente lhe infundisse a calma de que precisava para o que iam

fazer.

O que vamos fazer?, pensou. Isto é loucura!

Contudo, Vittoria sabia que, apesar de toda a irreverência e do inevitável

horror da situação, a tarefa que se apresentava era inescapável. As graves decisões

que o camerlengo tinha de tomar exigiam informações - informações encerradas

em um sarcófago nas Grutas do Vaticano. Perguntava a si mesma o que iriam

encontrar. Será que os Illuminati mataram mesmo o Papa? O poder deles chegaria

de fato tão longe? Será que estou prestes a realizar a primeira autópsia em um

Papa?

Vittoria achou uma ironia estar mais apreensiva naquela igreja escura do

que se estivesse nadando à noite no mar no meio das barracudas. A natureza era

seu refúgio. Ela compreendia a natureza. As questões humanas e espirituais é que

a deixavam desorientada. A idéia de peixes assassinos reunindo-se no escuro

trazia-lhe à cabeça imagens da imprensa reunindo-se do lado de fora da basílica.

As filmagens dos corpos marcados lembravam-lhe o cadáver de seu pai e a risada

grosseira do matador. O matador estava à solta lá fora, em algum lugar. A raiva

abafou o medo de Vittoria.

Quando contornaram uma coluna - de diâmetro maior do que o de qualquer

sequóia imaginável -, Vittoria divisou um brilho alaranjado adiante. A luz parecia

emanar de baixo do piso no centro da basílica. Ao se aproximarem, ela

compreendeu o que estava vendo. Tratava-se do famoso santuário escavado sob o

altar principal - a suntuosa câmara subterrânea que continha as relíquias mais

sagradas do Vaticano. Junto ao portão que rodeava a abertura, Vittoria olhou para

baixo e viu a arca dourada no meio de inúmeras lamparinas a óleo acesas.

- São os ossos de São Pedro? - perguntou, sabendo muito bem que eram.

Todo mundo que visitava a Basílica de São Pedro sabia o que havia dentro da

pequena arca dourada.

- Na realidade, não - respondeu o camerlengo. - Um engano bastante

comum. Isso não é um relicário. Dentro da arca são guardados os palliums, faixas

tecidas que o Papa dá aos cardeais recém-eleitos.

- Mas pensei...

- Como todos. Os guias turísticos dizem que aqui é a tumba de São Pedro,

mas o verdadeiro túmulo dele fica dois níveis abaixo de nós, enterrado no solo. O

Vaticano escavou-o nos anos 1940. Ninguém tem permissão para descer lá.

Vittoria estava impressionada. À medida que saíam do nicho reluzente e

voltavam para a escuridão, pensou nas histórias que ouvira de peregrinos que

viajavam milhares de quilômetros para ver aquela caixa dourada, achando que

estavam na presença de São Pedro.

- O Vaticano não deveria dar essa informação às pessoas?

- Todos nos beneficiamos de uma sensação de contato com a divindade,

mesmo que a sensação seja apenas imaginada.

Vittoria, como cientista, não podia discutir aquela lógica. Lera inúmeros

estudos sobre os efeitos do placebo - aspirinas curando câncer de pessoas que

acreditavam estar usando uma droga milagrosa. O que era a fé, afinal de contas?

- Mudanças - disse o camerlengo - não são algo que fazemos muito bem

aqui na Cidade do Vaticano. Admitir nossos erros do passado, modernização, são

coisas que historicamente evitamos. Sua Santidade estava tentando modificar isto.

- Ele fez uma pausa. - Para alcançar o mundo moderno. Procurar novos caminhos

para chegar a Deus.

Mesmo no escuro, Vittoria fez um gesto de concordância.

- Como a ciência?

- Para ser franco, a ciência me parece irrelevante.

- Irrelevante? - Vittoria conseguia pensar em uma porção de palavras para

definir ciência, mas, no mundo moderno, "irrelevante" não era uma delas.

- Quando o senhor sentiu sua vocação?

- Antes do meu nascimento.

Vittoria olhou para ele.

- Desculpe - explicou o camerlengo -, essa questão sempre parece estranha.

O que quero dizer é que sempre soube que iria servir a Deus. Desde o momento

em que comecei a pensar. Só quando rapaz, porém, no exército, é que compreendi

verdadeiramente meu objetivo.

Ela ficou surpresa.

- O senhor esteve no exército?

- Dois anos. Recusei-me a disparar uma arma, então me puseram para

pilotar helicópteros Medevac. Na realidade, ainda vôo de vez em quando.

Vittoria tentou imaginar o jovem padre pilotando um helicóptero. O

interessante é que conseguia vê-lo perfeitamente por trás dos controles. O

camerlengo Ventresca possuía uma firmeza de caráter que intensificava suas

convicções em vez de tirar-lhes o brilho.

- O senhor chegou a transportar o Papa alguma vez?

- Não, de jeito nenhum. Deixávamos esse passageiro precioso para os

profissionais. Sua Santidade às vezes permitia que eu levasse o helicóptero para

nosso retiro em Gandolfo. - Ele fez uma pausa, olhando para ela. - Senhorita

Vetra, obrigada por sua ajuda aqui hoje. Sinto muito por seu pai. Sinceramente.

- Obrigada.

- Nunca conheci meu pai. Morreu antes que eu nascesse. Perdi minha mãe

quando tinha dez anos.

- O senhor ficou órfão? - ela sentiu uma afinidade repentina entre eles.

- Sobrevivi a um acidente. Um acidente que levou minha mãe.

- Quem tomou conta do senhor?

- Deus - disse o camerlengo. - Ele quase literalmente me enviou outro pai.

Um bispo de Palermo apareceu junto à minha cama de hospital e tomou conta de

mim. Na ocasião, não me surpreendi. Já sentia a mão vigilante de Deus sobre mim

desde pequeno. O aparecimento do bispo simplesmente confirmou o que eu já

desconfiava, que Deus de certa forma me escolhera para servi-lo.

- O senhor acreditava que Deus o havia escolhido?

- Sim, e ainda acredito. - Não havia qualquer vestígio de vaidade na voz do

camerlengo, só de gratidão.

- Trabalhei sob a tutela do bispo durante muitos anos. Ele acabou se

tornando cardeal. Mas nunca me esqueceu. Ele é o pai de quem me lembro.

A luz de uma das lanternas passou pelo rosto do camerlengo e Vittoria

vislumbrou a solidão em seus olhos.

O grupo chegou junto a uma coluna gigantesca e a luz de suas lanternas

convergiu para uma abertura no chão. Ao olhar para a escadaria que mergulhava

no vazio, Vittoria de repente teve vontade de voltar atrás.

Os guardas já estavam ajudando o camerlengo a descer. Em seguida,

ajudaram Vittoria.

- O que aconteceu com ele? - ela perguntou enquanto desciam, tentando

manter a voz firme. - Com o cardeal que tomou conta do senhor?

- Ele deixou o Colégio dos Cardeais para assumir outro posto.

Vittoria surpreendeu-se.

- E depois, sinto muito dizer, ele faleceu.

- Le mie condoglianze - disse ela. - Recentemente?

O camerlengo virou-se para ela, as sombras acentuando a dor em seu rosto.

- Há exatamente 15 dias. Vamos vê-lo agora.

CAPÍTULO 84

As luzes escuras espalhavam seu fulgor avermelhado no interior da câmara

dos Arquivos do Vaticano. Essa câmara era muito menor do que aquela em que

Langdon estivera antes. Menos ar. Menos tempo. Arrependeu-se de não ter pedido

a Olivetti para ligar os ventiladores de renovação do ar.

Langdon localizou rapidamente a seção de ativos que continha os livros de

registros das Belle Arti. Não havia como não encontrar a seção. Ocupava quase

oito estantes completas. A Igreja Católica possuía milhões de peças pelo mundo

todo.

Ele examinou as prateleiras à procura do nome de Gianlorenzo Bernini.

Começou sua busca no meio do segundo grupo de estantes, mais ou menos

onde deveria começar a letra B. Depois de um breve momento de pânico temendo

que aquele catálogo em especial estivesse faltando, ele descobriu, desanimado,

que os catálogos não tinham sido dispostos em ordem alfabética. Por que isto não

me surpreende tanto assim?

Só depois de contornar tudo, voltar ao início e subir uma escada com

rodízios para chegar à prateleira mais alta é que compreendeu o critério da

organização da câmara. Empoleirado na parte superior das estantes, encontrou os

catálogos mais grossos, referentes aos mestres da Renascença: Michelangelo,

Rafael, Da Vinci e Botticelli. Bem de acordo com uma câmara chamada "Ativos

do Vaticano", os catálogos eram dispostos segundo o valor monetário total da

coleção de cada artista. Entre os de Rafael e Michelangelo, Langdon encontrou o

catálogo com o nome de Bernini. Tinha uns 12 centímetros de espessura.

Já sem fôlego e segurando desajeitadamente o incômodo volume, Langdon

desceu a escada. Então, como um garoto que vai ler uma revista em quadrinhos,

estendeu-se no chão e abriu o livro.

O catálogo tinha capa de pano e era muito compacto. Fora escrito à mão

em italiano. Cada página tratava de uma única obra, com uma breve descrição, a

data, a localização, o custo dos materiais e às vezes um esboço simples da peça.

Langdon folheou o livro de mais de 800 páginas. Bernini fora um homem

ocupado.

Quando Langdon era um jovem estudante de arte, sempre o intrigara como

um único artista podia produzir tantos trabalhos durante a vida. Mais tarde, para

grande desapontamento seu, descobriu que os artistas famosos criavam na

realidade muito pouco de sua própria obra. Dirigiam estúdios onde treinavam

jovens artistas para executar seus projetos. Escultores como Bernini criavam

miniaturas em barro e contratavam outros para ampliá-las em mármore. Se

Bernini tivesse sido obrigado a realizar pessoalmente todas as suas encomendas,

ainda estaria trabalhando até hoje.

- Índice - disse ele em voz alta, tentando manter afastadas as teias de

aranha mentais. Foi para o final do livro com a intenção de procurar na letra F os

títulos com a palavra fuàco - fogo -, mas os Fs não estavam juntos. Que diabos

esse pessoal tem contra a ordem alfabética?

As entradas obedeciam a uma ordem cronológica, uma a uma, à medida

que Bernini criava uma nova obra. Tudo estava listado por data. Não adiantava

procurar ali.

Enquanto contemplava a lista, outro pensamento desalentador ocorreu-lhe.

O título da escultura que procurava podia nem conter a palavra Fogo. As duas

obras anteriores - Habacuc e o Anjo e West Ponente - não tinham referências

específicas a Terra ou Ar.

Passou um ou dois minutos folheando o catálogo ao acaso na esperança de

alguma ilustração lhe dar alguma pista. Nenhuma deu. Encontrou inúmeras obras

obscuras de que nunca ouvira falar, mas também muitas que reconheceu:

Daniel e o Leão, Apolo e Dafne, além de várias fontes. Ao encontrar as

fontes, seus pensamentos deram um salto momentâneo para a frente. Água.

Imaginou se o quarto altar da ciência seria uma fonte.

Uma fonte seria um perfeito tributo à água. Langdon esperava que

pegassem o assassino antes que ele tivesse de considerar o elemento Água -

Bernini esculpira dezenas de fontes em Roma, a maioria em frente a igrejas.

E voltou para o assunto em questão, Fogo. Virando as folhas do livro,

lembrou-se das palavras de Vittoria para incentivá-lo. Você conhecia as duas

primeiras esculturas, provavelmente conhece essa também. Abriu o índice

novamente e procurou títulos que conhecia. Alguns lhe eram bem familiares, mas

nenhum despertou sua atenção. Langdon concluiu que jamais terminaria aquela

busca sem antes desmaiar e então decidiu, a contragosto, que teria de levar o

catálogo para fora do arquivo. É só um catálogo, disse a si mesmo. Não é como

tirar daqui um fólio original de Galileu. Lembrou-se do fólio no bolso de seu

paletó e recomendou a si mesmo que não podia esquecer de devolvê-lo antes de

sair.

Apressando-se, estendeu a mão para pegar o livro, mas, ao fazê-lo, viu algo

que o fez parar. Embora o índice fosse constituído de numerosas anotações, a que

atraiu seu olhar era significativa.

A anotação indicava que a famosa escultura de Bernini, O Êxtase de Santa

Teresa, pouco tempo depois de inaugurada, fora transferida de sua localização

original no Vaticano. Mas não foi esse o fato que chamou a atenção de Langdon,

sabedor das vicissitudes por que passara aquela escultura. Considerada uma obraprima

por alguns, o Papa Urbano VIII recusou O Êxtase de Santa Teresa alegando

que se tratava de uma obra sexualmente muito explícita para o Vaticano. Baniu-a

para uma capela obscura do outro lado da cidade. O que despertou o interesse de

Langdon foi constatar que essa capela era uma das cinco igrejas de sua lista. E,

ainda por cima, que a escultura fora transferida para lá per suggerimento dei

artista.

Por sugestão do artista? Não fazia sentido Bernini sugerir que sua obraprima

ficasse escondida em um lugar pouco conhecido. Todo artista quer sua obra

exposta em local destacado, não em uma remota...

Langdon hesitava. A menos que...

Receava até acalentar a idéia. Seria possível? Teria Bernini criado

intencionalmente uma obra tão explícita que forçara o Vaticano a enfurná-la em

algum lugar afastado? Um lugar que talvez Bernini pudesse sugerir?

Quem sabe uma igreja distante que ficasse em linha reta com o sopro de

West Ponente?

À medida que aumentava a excitação de Langdon, sua vaga familiaridade

com a estátua interferia, insistindo que a obra nada tinha a ver com fogo. A

escultura, como qualquer pessoa que a tivesse visto poderia confirmar, era tudo,

menos científica - pornográfica até, mas não científica, sem dúvida. Um crítico

inglês condenou O Êxtase de Santa Teresa, afirmando que era "o ornamento mais

impróprio que jamais fora colocado em uma igreja cristã" Langdon entendia a

razão da controvérsia. Apesar de brilhantemente executada, a estátua representava

Santa Teresa deitada de costas entregue a um orgasmo dos bons. Nada de acordo

com o gosto do Vaticano.

Langdon passou depressa para a descrição da obra no catálogo. Quando viu

o desenho, sentiu uma instantânea e inesperada centelha de esperança. No esboço,

Santa Teresa realmente parecia estar entregue ao gozo, mas havia uma outra

figura que Langdon esquecera e que fazia parte do conjunto.

Um anjo.

A sórdida lenda de repente voltou-lhe à memória...

Santa Teresa era uma freira que fora santificada depois de afirmar que um

anjo lhe fizera uma beatífica visita durante o sono. Os críticos mais tarde

concluíram que o encontro provavelmente havia sido mais sexual do que

espiritual. Rabiscado ao pé da página, Langdon leu um trecho conhecido do diário

da santa.

As próprias palavras de Santa Teresa pouco deixavam para a imaginação: .

sua grande lança dourada... cheia de fogo... penetrou em mim várias vezes.. até

minhas entranhas... uma doçura tão extrema que se desejaria que nunca cessasse.

Langdon sorriu. Se isto não é uma metáfora de sexo para valer, não sei o

que é. Sorriu também por causa da descrição da obra. Apesar de o parágrafo estar

escrito em italiano, a palavra fuàco aparecia uma meia dúzia de vezes.

• . .lança do anjo com a ponta de fogo...

• . .raios de fogo emanando da cabeça do anjo...

• . .mulher inflamada pelo fogo da paixão...

Langdon ainda não se convencera por completo até olhar de novo para o

desenho. A lança de fogo do anjo estava erguida como um farol apontando o

caminho. Que os anjos o guiem em sua busca sublime. E até o tipo de anjo que

Bernini escolhera parecia significativo. É um serafim, observou Langdon. Serafim

significa literalmente "o que é feito de fogo".

Robert Langdon não era um homem que algum dia tivesse esperado por

uma confirmação vinda do alto, mas quando leu o nome da igreja onde a escultura

agora se encontrava resolveu que, afinal de contas, poderia começar a acreditar

em alguma coisa.

Santa Maria dela Vittoria.

Vittoria, pensou ele, rindo. Perfeito.

Pôs-se de pé meio cambaleante e sentiu uma tonteira. Olhou para o alto da

escada, ponderando se deveria repor o livro no lugar. Ora, dane-se, pensou. O

Padre Jaqui pode fazer isso depois. Fechou o livro e colocou-o educadamente ao

pé da estante.

Quando se encaminhou para o botão luminoso na saída eletrônica da

câmara, sua respiração estava curta.

Ainda assim, sentia-se rejuvenescido por sua boa sorte.

Sua boa sorte, porém, terminou antes que alcançasse a saída.

Sem aviso, a câmara exalou um suspiro penoso. As luzes diminuíram e o

botão luminoso apagou-se. Então, como um enorme animal que expira, o arquivo

inteiro ficou às escuras. Alguém desligara a energia elétrica.

CAPÍTULO 85

As Grutas Santas do Vaticano estão situadas sob o chão da Basílica de São

Pedro. É lá que são enterrados os Papas.

Vittoria chegou ao fim da escada em espiral e entrou na gruta. O túnel

escuro lembrava o do Grande Colisor de Hádrons do CERN, o acelerador de

partículas - negro e frio. Iluminado agora apenas pela luz das lanternas da Guarda

Suíça, o túnel transmitia uma sensação nitidamente incorpórea. Dos dois lados

havia nichos cavados ao longo das paredes. Dentro desses vãos, até onde a luz

lhes permitia enxergar, assomavam volumosas as sombras dos sarcófagos.

Um calafrio fez seu corpo estremecer. É o ar frio, disse a si mesma,

sabendo entretanto que só em parte era verdade. Tinha a impressão de estarem

sendo observados, não por alguém de carne e osso, mas por espectros na

penumbra.

Em cima de cada túmulo, com todas as vestimentas papais, repousavam

figuras em tamanho natural com os traços de cada Papa falecido, retratado como

morto, os braços dobrados sobre o peito. Os corpos deitados pareciam emergir das

tumbas como se pressionados de encontro às tampas de mármore para tentar

escapar de sua reclusão mortal. A procissão de lanternas avançava e as silhuetas

dos Papas subiam e desciam nas paredes, prolongando-se e desaparecendo como

um macabro teatro de sombras.

Caíra um silêncio sobre o grupo, Vittoria não saberia dizer se de respeito

ou de apreensão. Ambos, talvez.

O camerlengo andava de olhos fechados, como se soubesse de cor cada

passo. Vittoria desconfiava que ele já fizera aquele lúgubre passeio muitas vezes

desde a morte do Papa, talvez para rezar junto à sua tumba em busca de

orientação.

Trabalhei sob a sua tutela durante muitos anos. Ele foi um pai para mim,

dissera o camerlengo. Vittoria lembrou-se do camerlengo dizendo essas palavras

ao se referir ao religioso que o "salvara" do exército. Agora, porém, ela

compreendia o resto da história. O mesmo homem que tomara o camerlengo sob

sua proteção chegara mais tarde ao papado e levara consigo seu jovem protegido

para servir como camarista.

Isto explica muita coisa, pensou Vittoria. Ela sempre possuíra uma intuição

bem afinada para as emoções íntimas das pessoas, e algo no camerlengo a vinha

intrigando o dia inteiro. Desde que o encontrara, percebera nele uma angústia

mais sentimental e pessoal do que a causada pela crise avassaladora que

enfrentava naquele momento. Por trás daquela calma piedosa, via um homem

atormentado por demônios particulares. Não só enfrentava a ameaça mais

devastadora da história do Vaticano, como o fazia sem seu amigo e mentor,

voando solo.

Os guardas diminuíram o passo, como se não soubessem exatamente onde,

naquela escuridão, o último Papa fora enterrado. O camerlengo continuou

andando, seguro, e se deteve diante de uma tumba cujo mármore ainda conservava

um brilho que as outras não tinham mais. Deitada sobre ela, uma imagem

esculpida do Papa falecido. Quando Vittoria reconheceu o rosto que via sempre na

televisão, sentiu uma pontada de medo. O que estamos fazendo?

- Sei que não temos muito tempo - disse o camerlengo -, mas ainda assim

pediria que fizéssemos uma rápida oração.

Os guardas suíços curvaram a cabeça. Vittoria fez o mesmo, seu coração

batendo forte naquele silêncio. O camerlengo ajoelhou-se junto à tumba e rezou

em italiano. Escutando aquelas palavras, Vittoria sentiu um pesar inesperado vir à

tona em forma de lágrimas - lágrimas por seu próprio mentor, seu próprio santo

pai. As palavras do camerlengo eram tão adequadas para o Papa quanto para seu

pai.

- Pai supremo, conselheiro, amigo. - A voz do camerlengo ecoava

mansamente na roda de pessoas. - O senhor me disse, quando eu era jovem, que a

voz de meu coração era a voz de Deus. Disse que eu deveria segui-la ainda que

me levasse para caminhos difíceis. Ouço essa voz agora, exigindo de mim tarefas

impossíveis. Dê-me forças. Conceda-me o perdão. O que faço é em nome de tudo

em que o senhor acreditava. Amém.

- Amém - murmuraram os guardas.

Amém, pai. Vittoria enxugou os olhos.

O camerlengo levantou-se devagar e afastou-se da tumba.

- Empurrem a tampa para o lado.

Os guardas suíços ficaram indecisos.

- Signore - disse um deles -, por lei, estamos sob suas ordens. - Fez uma

pausa. - Faremos o que mandar...

O camerlengo pareceu ler a mente do rapaz.

- Um dia, vou pedir perdão a vocês por tê-los colocado nesta situação.

Hoje, peço que me obedeçam. As leis do Vaticano foram estabelecidas para

proteger esta igreja. Com esse mesmo espírito, exijo que agora as infrinjam.

Houve um momento de silêncio e então o líder dos guardas deu a ordem.

Os três homens colocaram as lanternas no chão e suas sombras saltaram para o

alto. Iluminados de baixo para cima, aproximaram-se da tumba. Apoiaram as

mãos na tampa de mármore na altura da cabeceira da tumba, plantaram os pés no

chão com firmeza e prepararam-se para empurrar. A um sinal, todos empurraram

juntos, retesados de encontro à enorme lápide. Ao ver que a lápide não se

deslocara nem um pouco, Vittoria se deu conta de estar quase torcendo para que

fosse pesada demais. Temia o que poderiam encontrar ali dentro.

Os homens empurraram mais e a lápide não saiu do lugar.

- Ancora - disse o camerlengo, enrolando as mangas de sua batina e

tomando posição para empurrar junto com eles.

- Ora! - Todos empurraram ao mesmo tempo.

Vittoria estava prestes a oferecer ajuda, quando a lápide começou a

deslizar. Os homens deram impulso outra vez e, com um rangido de pedra contra

pedra que parecia um grunhido primal, a lápide girou em cima da tumba e parou

formando um ângulo - a cabeça esculpida do Papa dentro do nicho e seus pés

estendidos no corredor.

Todos recuaram.

Tateando, um dos guardas abaixou-se e apanhou sua lanterna no chão.

Depois, apontou-a para o interior da tumba. O facho de luz tremeu um pouco e

então o guarda o firmou. Os outros guardas reuniram-se ao primeiro, um a um.

Mesmo no escuro, Vittoria percebeu que eles recuaram e, sucessivamente, se

benzeram.

O camerlengo estremeceu quando olhou para dentro da tumba e seus

ombros caíram, pesados. Ficou parado algum tempo antes de se virar.

Vittoria receava que a boca do cadáver estivesse cerrada com o rigor mortis

e ela sugeriu que se quebrasse a mandíbula para ver a língua. Mas isso não seria

necessário. As faces haviam caído e a boca do Papa estava aberta.

Sua língua estava negra como a morte.

CAPÍTULO 86

Nenhuma UZ. Nenhum som.

Os Arquivos Secretos estavam imersos em negra escuridão.

O medo, notou Langdon, era um forte motivador. Sem fôlego, saiu

vacilante na direção da porta rotativa.

Encontrou o botão na parede e bateu nele com a palma da mão. Nada

aconteceu. Tentou de novo. A porta estava desligada.

Rodopiou às cegas, tentou chamar em voz alta, mas a voz saiu

estrangulada.

O estado crítico de sua situação tomou conta dele por completo. Seus

pulmões lutavam por oxigênio quanto mais a adrenalina acelerava sua batida

cardíaca.

A sensação era a de um soco no estômago.

Quando se atirou com todo o seu peso contra a porta, por um segundo

achou que ela começara a girar.

Empurrou de novo e viu estrelas. Deu-se conta de que era a sala inteira que

rodava, não a porta.

Desequilibrou-se, tropeçou na base de uma escada de rodízios e caiu

pesadamente no chão. Cortou o joelho na quina de uma estante. Xingando,

levantou-se e saiu procurando a escada.

Encontrou-a. Esperava que fosse de madeira pesada ou de ferro, mas era de

alumínio. Agarrou-a, segurou-a como um aríete e correu com ela no escuro para a

parede de vidro. A parede ficava mais perto do que ele imaginara. A escada bateu

e voltou. Pelo som fraco da colisão, ele percebeu que precisaria de muito mais do

que uma escada de alumínio para quebrar aquele vidro.

Ocorreu-lhe usar o revólver, mas suas esperanças se esvaíram tão depressa

quanto haviam surgido. A arma não estava mais com ele. Olivetti a tomara dele no

escritório do Papa, dizendo que não queria armas carregadas por perto com o

camerlengo presente. Na hora, fizera sentido.

Langdon chamou de novo, produzindo ainda menos som do que antes.

Em seguida, lembrou-se do walkie-talkie que o guarda deixara na mesa

fora da câmara. Por que diabos não o trouxe para dentro! Estrelinhas roxas

começaram a dançar diante de seus olhos e ele se esforçou para pensar. Você já

ficou preso antes, disse a si mesmo. Já sobreviveu a coisa pior.

Era só uma criança e conseguiu se safar. A escuridão tenebrosa inundou

tudo. Pense!

Langdon então se abaixou, deitou de costas no chão e estendeu os braços

ao lado do corpo. O primeiro passo era recuperar o autocontrole.

Relaxe. Poupe-se.

Sem ter mais que lutar contra a gravidade para bombear o sangue, o

coração de Langdon começou a bater mais devagar. Aquele era um truque que os

nadadores usavam para reoxigenar o sangue entre competições subseqüentes.

Tem ar mais do que suficiente aqui dentro, disse a si mesmo. Mais do que

suficiente. Agora, pense. Esperou, quase acreditando que a luz voltaria a qualquer

momento. Não voltou. Deitado ali, conseguindo respirar melhor, uma sinistra

resignação o invadiu. Sentiu-se em paz. E lutou contra aquela sensação.

Você vai se mexer, droga! Mas onde...

No seu pulso, Mickey Mouse brilhava alegremente, como se estivesse

gostando do escuro: 9h33 da noite.

Meia hora para o Fogo. Tinha a impressão de que fosse muito mais tarde.

Em sua cabeça, em vez de um plano para sair dali, vinham perguntas, a

necessidade de uma explicação. Quem teria desligado a luz?

Será que teria sido Rocher, expandindo sua busca? E Olivetti, por que não

informou Rocher que eu estava aqui dentro? Langdon sabia entretanto que, àquela

altura, não fazia diferença alguma.

Abrindo bem a boca e inclinando um pouco a cabeça para trás, conseguia

inalar o mais fundo que lhe era possível. A cada vez, a respiração ardia menos do

que a anterior. Sua mente clareou. Reorganizou seus pensamentos e forçou as

engrenagens a se movimentarem.

Paredes de vidro, ponderou. Mas um vidro danado de grosso.

Conjeturou se haveria livros guardados em um daqueles arquivos de aço

pesados, à prova de fogo.

Langdon já os encontrara algumas vezes em outros lugares, mas não vira

nenhum ali. Além disso, procurar no escuro levaria tempo demais. Não que ele, de

qualquer modo, fosse capaz de levantar um arquivo de aço, ainda mais naquele

estado.

Que tal a mesa de exame? Sabia que naquela câmara, como na anterior,

havia uma no meio das estantes. E daí? Não conseguiria levantá-la também. Sem

falar que, mesmo que tivesse forças para arrastar a mesa, não poderia ir muito

longe. As estantes ficavam muito juntas e as passagens entre elas eram estreitas

demais.

As passagens são estreitas...

De repente, soube o que iria fazer.

Em um rompante de confiança, pôs-se de pé mais depressa do que deveria.

Tonto, estendeu a mão à procura de um ponto de apoio. Sua mão encontrou uma

estante. Parou alguns segundos, obrigando-se a poupar energia. Precisaria de toda

a sua força para fazer o que pretendia.

Encostou o corpo na estante, firmou os pés no chão e empurrou. Se

conseguir fazer a estante se inclinar... Mas ela nem se moveu. Mudou de posição e

empurrou outra vez. Seus pés escorregaram para trás. A estante rangeu, mas nem

se abalou.

Precisava de uma alavanca.

Encontrou a parede de vidro de novo e pousou uma das mãos nela,

correndo até o fim da câmara. A parede do fundo surgiu de repente e ele bateu

com o ombro nela. Soltou um palavrão, contornou a prateleira e agarrou a estante

na altura do seu rosto. Em seguida, escorando um dos pés na parede de vidro atrás

de si e o outro nas prateleiras inferiores, começou a subir. Livros caíam em torno

dele, farfalhando na escuridão.

Nem se importou. O instinto de sobrevivência há muito que superara seu

decoro arquivístico. Reparou que a escuridão total afetava seu equilíbrio e fechou

os olhos, incentivando sua mente a ignorar o estímulo visual. Aos poucos foi se

deslocando com mais rapidez. Quanto mais subia, mais rarefeito ficava o ar.

Chegou com grande esforço às prateleiras do alto, pisando nos livros,

procurando apoio, puxando o corpo para cima. Então, como um alpinista que

acabou de conquistar uma plataforma de pedra, alcançou a última prateleira.

Estendendo as pernas para trás, fez seus pés andarem pela parede de vidro até seu

corpo ficar quase na horizontal.

É agora ou nunca, Robert, uma voz animou-o. Igual ao aparelho de

musculação para as pernas da academia de ginástica de Harvard.

Com um esforço sobre-humano, firmou os pés na parede atrás de si,

encostou o peito e os braços na estante e empurrou. Nada aconteceu.

Lutando para respirar, reposicionou-se e tentou de novo, esticando as

pernas. A estante mexeu-se ligeiramente, ele empurrou outra vez, a estante

balançou uns centímetros para a frente e voltou. Langdon aproveitou o balanço,

inalando o que lhe pareceu uma ausência total de oxigênio e deu novo impulso. A

estante oscilou mais um pouco.

Como um balanço, disse consigo. Mantenha o ritmo. Um pouco mais.

Langdon balançava a estante esticando mais as pernas a cada impulso. Seus

quadríceps ardiam, mas ele procurava bloquear a dor. O pêndulo estava em

movimento. Três empurrões mais, incentivou a si mesmo.

Só precisou de dois.

Houve um instante de incerteza, de ausência de peso. Depois, com uma

trovoada de livros escorregando das prateleiras, Langdon e a estante caíram para a

frente.

No meio do caminho, a estante bateu na estante seguinte. Langdon

segurou-se, jogando seu peso para a frente, obrigando a segunda estante a tombar.

Um segundo de pânico imóvel e, estalando com o peso, a segunda estante

começou a inclinar-se. Langdon recomeçou a cair.

Tal e qual enormes peças de dominó, as estantes tombaram uma após a

outra. Metal chocando-se com metal, livros vindo abaixo por todos os lados,

Langdon segurou-se como pôde enquanto sua estante se inclinava como uma

lingüeta de catraca em um macaco de automóvel. Tentava calcular quantas

estantes haveria no total. Quanto pesariam? O vidro na outra extremidade da

câmara era grosso...

A estante de Langdon caíra em uma posição quase horizontal quando ele

ouviu o que esperava - um tipo diferente de colisão. Longe. Do outro lado da

câmara. O choque estridente do metal no vidro. A câmara à sua volta foi sacudida

e ele teve certeza de que a última estante, derrubada pelo peso das outras, batera

violentamente no vidro, O som que se seguiu foi o menos bem-vindo que ele

ouvira até então.

Silêncio absoluto.

Não houve o ruído do vidro se despedaçando, só o baque surdo do peso das

estantes todas juntas encostando-se na parede. Langdon ficou parado em cima da

pilha dos livros, os olhos arregalados, à espera. Em algum ponto distante houve

um estalo. Langdon teria de bom grado prendido a respiração para escutar melhor

se ainda conseguisse respirar.

Um segundo. Dois...

Então, à beira da inconsciência, Langdon ouviu algo ceder, um murmúrio

propagando-se pelo vidro afora.

De repente, igual a um tiro de canhão, o vidro explodiu. A estante sobre a

qual ele estava acabou de despencar.

Como uma deliciosa chuva no deserto, estilhaços de vidro caíram

tilintando no escuro. Houve um grande silvo de sucção e o ar entrou jorrando.

Trinta segundos depois, nas Grutas do Vaticano, Vittoria estava de pé

diante de um cadáver quando o ruído eletrônico de um walkie-talkie rompeu o

silêncio. A voz alta e aguda soou arquejante.

- Aqui é Robert Langdon! Alguém está me ouvindo?

Vittoria levantou depressa a cabeça. Robert! Mal acreditava o quanto

desejava que ele estivesse ali naquela hora.

Os guardas trocaram olhares, confusos. Um deles tirou o aparelho do cinto.

- Senhor Langdon? O senhor está no canal três, O comandante está

esperando para falar com o senhor no canal um.

- Sei que ele está no canal um, droga! Não quero falar com ele. Quero falar

com o camerlengo. Agora!

Alguém o encontre para mim!

Na obscuridade dos Arquivos Secretos, Langdon encontrava-se no meio de

pedaços espatifados de vidro e tentava recuperar o fôlego. Sentiu algo quente

escorrendo em sua mão e notou que estava sangrando. A voz do camerlengo veio

de imediato, fazendo-o assustar-se.

- Aqui é o camerlengo Ventresca. O que está havendo?

Langdon apertou o botão, o coração ainda batendo forte.

- Acho que alguém tentou me matar!

Fez-se silêncio do outro lado da linha.

Langdon procurou acalmar-se.

- Também sei onde vai ser o próximo assassinato.

A voz que ouviu de volta não foi a do camerlengo. Foi a do comandante

Olivetti.

- Senhor Langdon. Não diga mais nenhuma palavra.

CAPÍTULO 87

O relógio de Langdon, todo lambuzado de sangue, marcava 9h41 quando

ele atravessou correndo o Pátio do Belvedere e se aproximou da fonte diante do

centro de segurança da Guarda Suíça. Sua mão parara de sangrar e agora doía

mais do que sua aparência fazia supor. Quando ele chegou, foi como se todos

tivessem chegado também ao mesmo tempo - Olivetti, Rocher, o camerlengo,

Vittoria e uma porção de guardas.

Vittoria correu para ele.

- Robert, você está machucado.

Antes que Langdon pudesse responder, Olivetti postou-se diante dele.

- Senhor Langdon, é um alívio vê-lo bem. Sinto muito pelas falhas de

comunicação nos Arquivos.

- Falhas de comunicação? - reclamou Langdon. - Você sabia muito bem...

- Foi minha culpa - adiantou-se Rocher, com ar contrito. - Não sabia que o

senhor estava nos Arquivos.

Parte de nossas zonas brancas tem ligação com aquele prédio. Estávamos

ampliando nossa busca. Fui eu quem desligou a energia elétrica. Se tivesse

sabido...

- Robert - disse Vittoria, segurando a mão ferida dele e examinando-a - o

Papa foi envenenado, Os Illuminati o mataram.

Langdon ouviu as palavras, mas não as registrou. Estava exausto. Só era

capaz de sentir o calor das mãos de Vittoria.

O camerlengo tirou um lenço de seda de sua batina e o entregou a Langdon

para que ele se limpasse. O homem não dizia nada. Seus olhos pareciam brilhar

com um novo fogo.

- Robert - insistiu Vittoria -, você disse que descobriu onde o próximo

cardeal vai ser morto?

Langdon sentia-se meio frívolo.

- Descobri, é na...

- Não - interrompeu Olivetti. - Senhor Langdon, quando lhe pedi para não

dizer mais nada no walkie-talkie, havia um motivo. - Virou-se para os guardas

suíços que os rodeavam. - Senhores, dêem-nos licença.

Os soldados desapareceram no centro de segurança. Sem qualquer

indignidade. Só submissão.

Olivetti voltou-se para o grupo que restara.

- Por mais que seja doloroso para eu dizer isto, o assassinato do nosso Papa

foi um ato perpetrado com a ajuda de alguém que vive dentro destes muros. Para o

bem de todos, não podemos confiar em mais ninguém. Até mesmo em nossos

guardas. - Ele parecia estar sofrendo ao falar aquilo.

Rocher, ansioso, disse:

- Conspiração interna, quer dizer que...

- Sim - disse Olivetti -, que a validade de sua busca está comprometida. No

entanto, é um risco que temos de correr. Continue procurando.

Rocher ia dizer alguma coisa, mas pensou melhor e foi embora.

O camerlengo respirou fundo. Ainda não dissera uma palavra sequer e

Langdon notou que havia uma nova austeridade no homem, como se tivesse

chegado a um momento decisivo.

- Comandante? - a voz do camerlengo era impenetrável. - Vou interromper

o conclave.

Olivetti apertou os lábios, obstinado.

- Não aconselho que faça isso. Ainda temos duas horas e vinte minutos.

- É quase nada.

O tom de Olivetti agora tinha um quê de desafio.

- O que pretende fazer? Tirar os cardeais do Vaticano sozinho?

- Pretendo salvar esta igreja com o poder que Deus me concedeu, seja qual

for. Como vou agir não é mais da sua conta.

Olivetti aprumou o corpo.

- O que quer que vá fazer... - ele fez uma pausa - não tenho autoridade para

impedi-lo. Principalmente depois do meu fracasso como chefe de segurança.

Peço-lhe apenas que espere. Espere vinte minutos, até depois de dez horas. Se a

informação do senhor Langdon estiver correta, ainda posso ter uma chance de

apanhar esse assassino. Existe ainda uma chance de manter o protocolo e o

decoro.

- Decoro? - o camerlengo deixou escapar uma risada abafada. - Já

deixamos a compostura para trás há muito tempo, comandante. Caso não tenha

percebido, isto é uma guerra.

Um guarda saiu do centro de segurança e falou com o camerlengo.

- Signore, acabei de receber a informação de que detivemos o repórter da

BBC, o senhor Glick.

O camerlengo fez um sinal com a cabeça e disse:

- Faça com que ele e sua cinegrafista me encontrem do lado de fora da

Capela Sistina.

Os olhos de Olivetti arregalaram-se.

- O que vai fazer?

- Vinte minutos, comandante. Só lhe dou mais vinte minutos.

E se foi.

Quando o Alpha Romeo de Olivetti saiu correndo da Cidade do Vaticano,

dessa vez não havia a fila de carros sem identificação vindo atrás dele. No banco

traseiro, Vittoria fazia um curativo na mão de Langdon, usando o material de um

estojo de primeiros-socorros que encontrara no porta-luvas.

Olivetti olhava para a frente.

- Então, senhor Langdon, para onde vamos?

CAPÍTULO 88

Mesmo com a sirene agora instalada e ligada, o carro de Olivetti não

parecia ser notado enquanto atravessava a ponte em louca disparada para o

coração da cidade velha. Todo o tráfego estava indo na direção contrária, para o

Vaticano, como se ir para a Santa Sé de uma hora para outra tivesse se tornado o

programa mais divertido de Roma.

Langdon ia sentado no banco de trás, um torvelinho de perguntas agitandose

em sua cabeça. Pensava no assassino, se iriam pegá-lo desta vez, se ele lhes

diria o que precisavam saber, se já não seria tarde demais. Quanto tempo teriam

até que o camerlengo anunciasse ao povo na Praça de São Pedro que estavam em

perigo? O incidente nos Arquivos ainda o intrigava. Um engano.

Olivetti nem uma única vez pisou no freio enquanto ziguezagueava com o

barulhento Alpha Romeo rumo à igreja de Santa Maria della Vittoria. Langdon

sabia que em qualquer outra ocasião os nós de seus dedos estariam brancos. No

momento, porém, sentia-se anestesiado. Só a mão latejante lembrava-lhe onde

estava.

E a sirene do carro uivava acima de suas cabeças. Nada melhor para avisar

a ele que estamos chegando, pensou Langdon. Mas avançavam numa rapidez

incrível. Olivetti provavelmente desligaria a sirene quando chegassem mais perto.

Com um pouco de tempo para refletir, ele se enchia de assombro com o

assassinato do Papa, agora que afinal assimilava a notícia. A idéia era

inconcebível e no entanto, ao mesmo tempo, parecia um acontecimento bastante

lógico. A infiltração sempre havia sido a base do poder dos Illuminati - a

redistribuição interna do poder. E não era a primeira vez que assassinavam um

Papa. Existiam inúmeros boatos de traições passadas, mas, como não se fazia

autópsia, nenhuma jamais fora confirmada. Até recentemente. Alguns acadêmicos

haviam obtido permissão para radiografar a tumba do Papa Celestino V, que

supostamente morrera nas mãos de seu muito apressado sucessor, Bonifácio VIII.

Os pesquisadores esperavam que os raios X pudessem revelar algum pequeno

indício de perfídia - um osso quebrado, no máximo. Mas o que se viu foi um

prego de 25 centímetros enfiado no crânio do Papa.

Langdon também se lembrou de diversos recortes de jornal que outros

estudiosos dos Illuminati lhe haviam enviado anos atrás. A princípio, achando que

se tratasse de uma brincadeira, ele consultara os arquivos de microfichas de

Harvard para confirmar se os artigos eram mesmo autênticos. E eram. Pregara-os

no seu quadro de avisos como exemplos de como até respeitáveis órgãos de

notícias podiam ser tomados pela paranóia dos Illuminati. Naquela hora, porém,

as suspeitas da mídia pareciam-lhe bem menos paranóicas. Os textos dos artigos

estavam bem claros em sua memória...

THE BRITISH BROADCASTING CORPORATION

14 de junho de 1998

O Papa João Paulo 1, que morreu em 1978, foi vítima de uma trama

arquitetada pela Loja Maçônica P2... A sociedade secreta P2 decidiu matar João

Paulo 1 quando soube que ele iria demitir o arcebispo norte-americano Paul

Marcinkus da presidência do Banco do Vaticano, O banco esteve implicado em

nebulosos acordos financeiros com a Loja Maçônica...

THE NEW YORK TIMES

24 de agosto de 1998

Por que o falecido João Paulo 1 estava na cama vestido com a camisa que

usava durante o dia? Por que a camisa estava rasgada? As perguntas não param aí.

Nenhuma investigação médica foi realizada, O cardeal Villot proibiu a autópsia

alegando que nenhum Papa fora submetido a um exame desses. E os remédios de

João Paulo 1 desapareceram misteriosamente de sua mesa-de-cabeceira, assim

como seus óculos, seus chinelos e seu testamento.

LONDON DAILY MAIL

27 de agosto de 1998

...uma conspiração envolvendo uma poderosa, implacável e ilegal loja

maçônica com tentáculos que chegam até o Vaticano.

O celular no bolso de Vittoria tocou, felizmente apagando aqueles

pensamentos da cabeça de Langdon.

Vittoria atendeu, sem imaginar quem poderia estar ligando para ela.

Mesmo de longe, Langdon reconheceu a voz cortante como laser que falava do

outro lado.

- Vittoria? Aqui é Maximilian Kohler. Já encontraram a antimatéria?

- Max? Você está bem?

- Vi as notícias. Não fizeram referência ao CERN nem à antimatéria. Isto é

bom. O que está acontecendo?

- Ainda não localizamos o tubo. A situação aqui está bastante complicada.

Robert Langdon tem sido de grande ajuda. Conseguimos uma vantagem sobre o

homem que está assassinando os cardeais. Neste momento, estamos indo para...

- Senhorita Vetra - interrompeu Olivetti. - Já falou demais.

Ela cobriu o bocal do telefone, aborrecida.

- Comandante, ele é o presidente do CERN. Tem o direito de saber...

- Ele teria o direito - retrucou Olivetti - de estar aqui lidando com esta

situação. A senhorita está falando em uma linha aberta de celular. E já falou

demais.

Vittoria suspirou.

- Max?

- Tenho uma informação para você - disse Max -, sobre seu pai... Talvez eu

saiba com quem ele falou a respeito da antimatéria.

O rosto de Vittoria anuviou-se.

- Max, meu pai disse que não contou nada a ninguém.

- Receio, Vittoria, que seu pai tenha contado tudo a alguém. Preciso

verificar alguns registros confidenciais. Volto a entrar em contato com você em

breve.

E desligou.

Vittoria estava pálida quando pôs de novo o telefone no bolso.

- Você está bem? - perguntou Langdon.

Ela sacudiu a cabeça, as mãos trêmulas denunciando a mentira.

- A igreja fica na Piazza Barberini - disse Olivetti, desligando a sirene e

verificando seu relógio. - Temos nove minutos.

Assim que Langdon descobriu qual era o terceiro marco, a localização da

igreja soou-lhe conhecida, mas não conseguia associar com quê. Piazza

Barberini...

Agora sabia o que era. A piazza tinha a ver com uma discutida estação de

metrô. Vinte anos antes, a construção de um terminal de metrô criara grande

alvoroço entre os historiadores de arte, que temiam que as escavações sob a

Piazza Barberini fizessem tombar um obelisco de muitas toneladas que havia no

centro da praça. Os urbanistas removeram o obelisco e o substituíram por uma

pequena fonte chamada o Tritão.

No tempo de Bernini, concluiu Langdon, a Piazza Barberini tinha um

obelisco! Qualquer dúvida que Langdon tivesse sobre a localização do terceiro

marco teria se evaporado naquele instante.

A um quarteirão da piazza, Olivetti entrou em uma viela, acelerou até o

meio do caminho e parou com uma derrapada. Tirou o paletó do uniforme,

enrolou as mangas da camisa e carregou sua arma.

- Não podemos correr o risco de vocês serem reconhecidos - disse. - Os

dois apareceram na televisão.

Quero que vão para o lado oposto da piazza, fora da vista, e observem a

entrada da frente. Vou entrar por trás. - Pegou o revólver e entregou-o a Langdon.

- Só para garantir.

Langdon franziu a testa. Era a segunda vez naquele dia que lhe davam

aquela arma. Guardou-a no bolso interno do paletó. Ao fazê-lo, reparou que ainda

carregava o fólio do Diagramma. Esquecera de deixá-lo nos Arquivos! Imaginou

o curador do Vaticano contorcendo-se em espasmos de raiva pela afronta de saber

que seu documento de valor incalculável andara de um lado para outro em Roma

como se fosse um mapa turístico. Depois, Langdon pensou na confusão de vidros

quebrados e livros espalhados que deixara para trás. O curador teria outros

problemas. Caso os arquivos durassem até o dia seguinte... Olivetti saiu do carro

e apontou para trás.

- A piazza fica para aquele lado. Fiquem de olhos bem abertos e não

deixem que ninguém os veja. - Deu um tapinha no telefone em seu cinto. -

Senhorita Vetra, vamos testar de novo nossa autodiscagem.

Vittoria tirou seu telefone do bolso e apertou o número que ela e Olivetti

tinham programado no Panteão. O telefone de Olivetti vibrou, com a campainha

desligada, no seu cinto.

O comandante disse:

- Muito bem, se virem alguma coisa, quero que me digam - e engatilhou a

arma. - Vou estar lá dentro esperando. Esse herege é meu.

Naquele mesmo momento, bem perto dali, outro telefone celular tocou.

O Hassassin atendeu.

- Fale.

- Sou eu, Janus.

O Hassassin sorriu.

- Olá, mestre.

- É possível que saibam onde você está. E saíram para tentar impedir que

você aja.

- Vão chegar tarde. Já fiz os preparativos aqui.

- Ótimo. Procure escapar com vida. Ainda há trabalho para ser feito.

- Os que se atravessarem no meu caminho vão morrer.

- Eles são instruídos.

- Está falando do especialista americano?

- Sabe quem é?

O Hassassin deu uma risadinha.

- É calmo mas ingênuo. Falei com ele ao telefone algumas horas atrás. Está

com uma mulher que parece ser o oposto.

O matador sentiu-se excitado ao lembrar o temperamento fogoso da filha

de Leonardo Vetra.

Houve um silêncio momentâneo na linha, a primeira hesitação que o

Hassassin percebia em seu mestre

Illuminati. Finalmente, Janus falou.

- Elimine-os se for necessário.

O matador riu.

- Considere isso feito.

Uma cálida expectativa espalhou-se por seu corpo. Embora talvez eu

guarde a mulher como recompensa.

CAPÍTULO 89

Explodira uma guerra na Praça de São Pedro.

A praça irrompera em um frenesi agressivo. Os furgões da mídia tomavam

posição cantando pneus, como se fossem veículos de assalto ocupando posições

estratégicas. Repórteres desenrolavam fios de equipamentos de última geração

com um nervosismo de soldados armando-se para uma batalha. Em toda a praça,

as redes de emissoras disputavam uma posição e corriam para levantar a mais

nova arma das guerras da mídia - os displays de tela plana.

Estes eram enormes telas de vídeo que podiam ser montadas no alto dos

furgões ou em armações portáteis. Serviam como uma espécie de anúncio de

outdoor para a rede, transmitindo a sua cobertura e ostentando o seu logotipo

como um cinema ao ar livre. Se a tela ficasse bem situada - na frente do local da

ação, por exemplo -, uma rede concorrente não poderia filmar a história sem fazer

ao mesmo tempo a propaganda da adversária.

A praça rapidamente se transformava não só em um extravagante

espetáculo multimídia, como em uma nervosa vigília pública. Chegavam pessoas

de todas as direções. Espaço em um local que habitualmente não tinha limites

começava a ser um artigo valioso. Os espectadores amontoavam-se em torno das

imensas telas e assistiam, agitados, atordoados, às reportagens ao vivo.

A apenas uns 100 metros de distância, dentro das grossas paredes da

Basílica de São Pedro, o mundo estava sereno. O tenente Chartrand e três outros

guardas andavam em meio à escuridão. Usando seus óculos infravermelhos,

cruzavam a nave movendo seus detectores de um lado para outro à sua frente. A

busca nas áreas do Vaticano abertas ao público até então não dera em nada.

- É melhor tirar os óculos aqui - disse o guarda mais velho.

Chartrand já estava fazendo isto. Aproximavam-se do Nicho dos Pálios - o

local rebaixado no centro da basílica. A luz de 99 lamparinas de óleo através do

infravermelho teria queimado os olhos deles.

Chartrand ficou satisfeito por tirar os pesados óculos e aproveitou para

alongar o pescoço enquanto desciam ao nicho para fazer a varredura daquela área.

O aposento era muito bonito, dourado e luminoso.

Ele nunca estivera ali antes.

Parecia que, desde a sua chegada na Cidade do Vaticano, todos os dias

Chartrand descobria um novo mistério daquele lugar. Aquelas lamparinas de óleo

eram um deles. Exatamente 99, acesas permanentemente. Era a tradição. Os

sacerdotes, vigilantes, enchiam as lamparinas com os óleos sagrados de modo que

nenhuma se apagasse. Dizia-se que queimariam até o fim dos tempos.

Ou no mínimo até a meia-noite de hoje, pensou Chartrand, com a boca seca

de novo.

Chartrand passou seu detector sobre as lamparinas de óleo. Nada escondido

ali. Não se surpreendeu. O tubo, de acordo com a imagem do vídeo, estava

escondido em uma área escura.

Andando pelo nicho, chegou a uma grade que cobria uma abertura no chão.

A abertura levava a uma escada íngreme e estreita que descia em linha reta.

Ouvira histórias sobre o que havia lá embaixo. Ainda bem que não teriam de

descer. As ordens de Rocher tinham sido bem claras. Procurem apenas nas áreas

abertas ao acesso do público.

- Que cheiro é esse? - perguntou, afastando-se da grade. Havia um perfume

muito forte e doce no ar.

- Vem das lamparinas - um deles explicou.

Chartrand surpreendeu-se.

- Cheira mais a colônia do que a querosene.

- Não é querosene. Essas lamparinas estão próximas ao altar do Papa, de

modo que se usa nelas uma mistura especial: etanol, açúcar, butano e perfume.

- Butano? - Chartrand olhou para as lamparinas, apreensivo.

O guarda confirmou.

- Cuidado para não entornar nenhuma delas. A mistura tem cheiro de águade-

colônia, mas queima como fogo.

Os guardas haviam terminado a busca no Nicho dos Pálios e estavam

andando pela basílica quando seus walkies-talkies começaram a funcionar juntos.

Era um alerta geral. Os guardas pararam para escutar, pasmos.

Pelo jeito, teriam surgido novos transtornos que não podiam ser

transmitidos pelos aparelhos, mas o camerlengo resolvera quebrar a tradição e

entrar no conclave para falar com os cardeais. Nunca antes na

História isto havia acontecido. Mas também, concluiu Chartrand, nunca

antes o Vaticano estivera sob a ameaça de algo parecido com uma ogiva nuclear

neotérica.

O que tranqüilizava Chartrand era saber que o camerlengo estava

assumindo o controle. Ele era a pessoa dentro do Vaticano a quem Chartrand mais

respeitava. Alguns dos guardas consideravam-no um beato - um fanático religioso

cujo amor a Deus beirava a obsessão -, mas até eles concordavam que, quando se

tratava de combater os inimigos de Deus, o camerlengo era o homem certo para

entrar na briga e jogar duro.

A Guarda Suíça tivera muito contato com o camerlengo naquela semana de

preparação do conclave e todos tinham comentado que o homem parecia meio

ríspido, os olhos verdes mais intensos do que de costume. Não era à toa, diziam.

Ele era o responsável por todo o planejamento do conclave e ainda por cima tinha

de providenciar tudo aquilo logo depois da perda de seu mentor, o Papa.

Havia poucos meses que Chartrand estava no Vaticano quando ouvira a

história da bomba que matara a mãe do camerlengo na frente do menino. Uma

bomba na igreja e agora está acontecendo tudo de novo.

Infelizmente, as autoridades nunca prenderam os desgraçados que

instalaram a tal bomba, provavelmente algum grupo extremista anticristão,

disseram, e o caso caíra no esquecimento. Talvez fosse por isso que o camerlengo

não gostava de apatia.

Uns dois meses antes, em uma tarde sossegada, Chartrand cruzara com o

camerlengo vindo por um dos caminhos que cortavam a Cidade do Vaticano.

O sacerdote reconhecera Chartrand como um dos novos guardas e

convidara-o para acompanhá-lo em um passeio a pé. Não conversaram sobre

nenhum assunto em especial, mas o camerlengo fez Chartrand sentir-se

imediatamente à vontade.

- Padre - disse Chartrand -, posso lhe fazer uma pergunta esquisita?

O camerlengo sorriu.

- Só se eu puder lhe dar uma resposta esquisita.

Chartrand achou graça.

- Já perguntei isto a todos os padres que conheço e continuo não

entendendo.

- O que é que você não entende?

O camerlengo ia na frente em passos rápidos, o pé levantando a ponta da

batina quando ele andava. Os sapatos eram pretos, de sola crepe, e combinavam

com ele, pensou Chartrand, como se refletissem a essência do homem: moderno

mas modesto e mostrando sinais de desgaste.

Chartrand respirou fundo.

- Não entendo o que vem a ser uma onipotência benevolente.

O camerlengo sorriu.

- Você anda lendo a Sagrada Escritura.

- Eu tento.

- E está confuso porque a Bíblia define Deus como uma divindade

onipotente e benevolente.

- Exato.

- Onipotente e benevolente significa apenas que Deus é todo-poderoso e

bem-intencionado.

- Compreendo o conceito. É que parece haver uma contradição aí.

- Sim. A contradição é a dor. A fome, as guerras, as doenças.

- Exatamente! - Chartrand sabia que o camerlengo compreenderia. - Coisas

terríveis acontecem neste mundo. A tragédia humana é como uma prova de que

Deus não pode ser simultaneamente todo-poderoso e bem-intencionado. Se Ele

nos ama e tem o poder de mudar nossa situação, Ele deveria também evitar nossas

dores, não é?

- Deveria mesmo? - perguntou o camerlengo.

Chartrand ficou embaraçado. Teria passado dos limites? Será que se tratava

de uma daquelas perguntas religiosas que não se devia fazer?

- Bem, se Deus nos ama, se é capaz de nos proteger, Ele deveria, sim.

Parece que Ele é onipotente e indiferente ou, ao contrário, benevolente e incapaz

de nos ajudar.

- Tem filhos, tenente?

Chartrand enrubesceu.

- Não, signore.

- Imagine se tivesse um filho de oito anos. Você o amaria?

- Claro.

- E faria tudo o que pudesse para evitar que ele sofresse na vida?

- Claro que sim.

- E deixaria que ele andasse de skate?

Chartrand estacou, admirado. O camerlengo parecia singularmente "por

dentro" para um sacerdote.

- Sim, acho que sim - disse Chartrand. - Com certeza deixaria que andasse

de skate, mas diria a ele para ter cuidado.

- Quer dizer que, como pai desse menino, você lhe daria uns bons

conselhos básicos e deixaria que saísse e cometesse seus próprios erros?

- Eu não correria atrás dele para mimá-lo, se é o que o senhor quer dizer.

- E se ele caísse e ralasse o joelho?

- Ele aprenderia a ser mais cuidadoso.

O camerlengo sorriu de novo.

- Então, quer dizer que, mesmo tendo o poder de interferir e evitar que seu

filho sentisse dor, você optaria por demonstrar seu amor deixando-o aprender suas

próprias lições?

- Claro, a dor é parte do crescimento. É como aprendemos.

O camerlengo sacudiu a cabeça.

- Exatamente.

CAPÍTULO 90

Langdon e Vittoria observavam a Piazza Barberini das sombras de uma

viela. A igreja ficava do lado oposto ao local onde se encontravam, a cúpula

enevoada emergindo de um vago aglomerado de construções do outro lado da

praça. A noite trouxera consigo um frescor agradável e Langdon não esperava

encontrar a praça tão deserta. Acima deles, pelas janelas abertas, o som das

televisões ligadas lembrou-lhe onde estavam as pessoas todas.

- . . .o Vaticano ainda não se pronunciou . . . assassinos Illuminati de dois

cardeais . . .presença satânica em Roma . . .especulações sobre maior infiltração...

As notícias se espalhavam como o incêndio de Nero. Roma inteira estava

siderada, assim como o resto do mundo. Langdon pensava se de fato eles seriam

capazes de interromper o percurso daquele trem descontrolado.

Examinando a praça enquanto esperava, ele notou que, apesar da invasão

de edifícios modernos, a piazza ainda era notavelmente elíptica. No alto, como

uma espécie de moderno sacrário para um herói do passado, um enorme letreiro

de néon piscava no teto de um hotel de luxo. Vittoria já o havia mostrado a

Langdon. O letreiro parecia sinistramente adequado.

HOTEL BERNINI

- Cinco para as dez - disse Vittoria, seus olhos felinos percorrendo vivamente

a praça.

Mal tinha acabado de falar, agarrou o braço de Langdon e puxou-o para

trás, escondendo-os na escuridão.

Fez um gesto em direção ao meio da praça.

Langdon acompanhou o gesto dela. Quando viu o que apontava, ele ficou

tenso. Atravessando a praça sob a luz de um poste, surgiram duas figuras

sombrias.

Ambas usavam capas e as cabeças vinham cobertas por xales negros, o

acessório tradicional das viúvas católicas. Poderiam ser mulheres, mas à noite não

dava para se ter certeza. Um dos vultos parecia mais velho e movia-se como se

sentisse dor, curvado, O outro, mais alto e forte, ajudava-o.

- Passe o revólver - disse Vittoria.

- Você não pode ir...

Ágil como um gato, ela pôs a mão no bolso dele e pegou mais uma vez a

arma. O metal do revólver cintilou.

Então, em silêncio absoluto, como se seus pés nem tocassem as pedras do

calçamento, ela rodeou a praça pela esquerda, sempre no escuro, para se

aproximar da dupla pelas costas. Langdon ficou paralisado ao vê-la desaparecer.

Depois, praguejando em voz baixa, saiu atrás dela.

A dupla avançava devagar e bastou meio minuto para Langdon e Vittoria

postarem-se atrás deles e irem se aproximando aos poucos. Vittoria escondeu o

revólver sob os braços cruzados displicentemente, fora da vista mas acessível em

um instante. À medida que o espaço entre eles diminuía, ela dava a impressão de

flutuar cada vez mais depressa, e Langdon se esforçava para acompanhá-la.

Quando o sapato dele esbarrou em uma pedra que saiu quicando, Vittoria

fulminou-o com um olhar de soslaio. Os dois vultos não escutaram, porém.

Estavam falando.

A uns dez metros de distância, Langdon começou a ouvir suas vozes. Mas

não distinguiu nenhuma palavra. Só leves murmúrios. Ao lado dele, Vittoria

andava mais rápido a cada passada, com os braços mais soltos e o revólver

começando a aparecer. Seis metros. As vozes ficaram mais nítidas - uma delas

muito mais alta do que a outra. Zangada. Reclamando. Parecia a voz de uma

mulher idosa. Rouca.

Andrógina. Tentou ouvir o que ela dizia quando uma outra voz cortou o

silêncio da noite.

- Mi scusi! - o tom amistoso de Vittoria acendeu a praça como um

holofote.

Langdon retesou-se ao ver o par embrulhado em suas capas parar de

repente e começar a virar. Vittoria continuava a andar na direção das duas pessoas

mais depressa ainda, em rota de colisão. De trás, Langdon viu os braços dela se

soltarem, a mão surgir e o revólver balançar para a frente. Depois, por cima do

ombro dela, enxergou um rosto iluminado pela luz do poste de rua. O pânico fez

suas pernas agirem e ele se precipitou para diante.

- Vittoria, não!

Vittoria, contudo, parecia estar uma fração de segundo à frente dele. Em

um movimento tão ligeiro quanto natural, ela levantou os braços de novo fazendo

desaparecer o revólver enquanto cingia o próprio corpo, como fazem as mulheres

em uma noite fria. Langdon chegou tropeçando ao lado dela, quase se chocando

com a dupla encasacada.

- Buona sera - disse Vittoria, abruptamente, a voz meio alterada por causa

do recuo.

Langdon suspirou aliviado. Duas senhoras idosas olhavam sérias para eles

sob seus xales. Uma era tão velha que a muito custo se mantinha de pé. A outra

amparava-a. Ambas seguravam rosários. Pareciam espantadas com a súbita

abordagem.

Vittoria sorriu, embora com expressão abalada.

- Dov'è la chiesa Santa Maria della Vittoria? Onde é a igreja de...

As duas apontaram juntas a silhueta maciça de um prédio na rua inclinada

de onde haviam saído.

- É là.

- Grazie - disse Langdon, pondo as mãos nos ombros de Vittoria e

puxando-a de leve para trás. Era inacreditável, mas quase tinham atacado duas

senhoras de idade.

- Non si puó entrare - preveniu uma das senhoras. - É chiusa temprano.

- Fechou mais cedo? - perguntou Vittoria, espantada. - Perchè?

Ambas explicaram ao mesmo tempo. Zangadíssimas. Langdon só entendeu

parte das palavras resmungadas em italiano. Aparentemente, 15 minutos antes, as

duas estavam na igreja rezando pelo Vaticano, que se encontrava naquela situação

difícil, quando um homem aparecera e dissera que a igreja iria ser fechada mais

cedo.

- Hanno conosciuto l'uomo?- indagou Vittoria, nervosa. - Conheciam o

homem? As mulheres sacudiram a cabeça. O homem era um straniero crudo,

completaram, e tinha obrigado todos que se encontravam lá dentro a sair, até o

jovem padre e o zelador, que disseram que iriam chamar a polícia. Mas o intruso

limitara-se a rir e lhes dissera para recomendar à polícia que não se esquecesse de

trazer câmeras.

Câmeras?, repetiu Langdon mentalmente.

Irritadas, as mulheres chamaram o homem de bar-àrabo e continuaram seu

caminho.

- Bar-àrabo? - Langdon perguntou a Vittoria. - Um bárbaro?

Vittoria enrijeceu-se de repente.

- Não. Bar-àrabo é um trocadilho pejorativo. Significa Àrabo, árabe.

Langdon sentiu um arrepio e virou-se para a igreja. Ao fazê-lo, divisou

algo através dos vitrais. A imagem encheu-o de pavor.

Sem reparar, Vittoria pegou seu celular e apertou o botão combinado para a

autodiscagem.

- Vou avisar Olivetti.

Sem fala, Langdon tocou no braço dela. Com a mão trêmula, apontou para

a igreja.

Vittoria prendeu a respiração.

Dentro da igreja, fulgurantes como pupilas diabólicas através do vidro

colorido, reluziam os clarões das primeiras chamas de um incêndio.


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