terça-feira, 24 de março de 2009


CAPÍTULO 11

- Satânico? - Kohler enxugou a boca e se remexeu, desconfortável, na

cadeira. - Esse símbolo é de um culto satânico?

Langdon andava de um lado para o outro no aposento gelado para se

aquecer.

- Os Illuminati eram satânicos. Mas não no sentido moderno da palavra.

De modo sucinto, Langdon explicou que a maioria das pessoas imaginava

que os cultos satânicos fossem rituais de adoração do demônio e, no entanto, os

satanistas eram historicamente homens instruídos que assumiam sua posição de

adversários da Igreja. Shaitan. Os rumores sobre sacrifícios satânicos de animais,

magia negra e rituais do pentagrama não passavam de mentiras disseminadas pela

Igreja como parte de uma campanha de difamação contra seus inimigos. Ao longo

do tempo, outros adversários da Igreja, querendo imitar os Illuminati, começaram

a acreditar nessas mentiras e a praticar os supostos rituais.

Dessa forma, nasceu o satanismo moderno.

Kohler resmungou abruptamente:

- Isso tudo é história antiga. Quero saber como esse símbolo veio parar

aqui.

Langdon respirou fundo.

- O símbolo em si foi criado por um artista anônimo do século XVI, um

dos Illuminati, como um tributo ao amor pela simetria de Galileu. Uma espécie de

logomarca sagrada dos Illuminati. A fraternidade manteve o desenho em segredo,

alegando que somente o revelaria quando tivesse reunido poder suficiente para

ressurgir e levar adiante seu objetivo final.

Kohler mostrou-se perturbado.

- Quer dizer que esse símbolo significa que a fraternidade dos Illuminati

está ressurgindo?

O rosto de Langdon se tornou sombrio.

- Acho impossível. Há um capítulo da história dos Illuminati que ainda não

expliquei.

Com intensidade na voz, Kohler disse:

- Então, faça o favor de explicar.

Langdon esfregou as palmas das mãos uma na outra, revendo mentalmente

as centenas de documentos que lera ou escrevera sobre os Illuminati.

- Os Illuminati eram sobreviventes. Quando fugiram de Roma, viajaram

por toda a Europa procurando um lugar seguro para se reagruparem. Foram

acolhidos por uma outra sociedade secreta, uma fraternidade de ricos pedreiros

bávaros chamados franco-maçons.

- Os maçons? - espantou-se Kohler.

Langdon concordou, nem um pouco surpreso que Kohler tivesse ouvido

falar do grupo. A fraternidade dos maçons tinha mais de cinco milhões de

membros no mundo inteiro, sendo que a metade deles nos Estados Unidos e mais

de um milhão na Europa.

- Os maçons com toda a certeza não são satânicos - Kohler declarou, de

repente parecendo cético.

- Claro que não. Eles foram vítimas de sua própria benevolência. Depois de

receberem os cientistas refugiados nos anos 1700, os maçons, sem saber,

tornaram-se uma fachada para os Illuminati. Estes cresceram em suas fileiras,

assumindo gradualmente posições de poder dentro das lojas. Na surdina,

restabeleceram sua fraternidade científica no seio da maçonaria, uma espécie de

sociedade secreta dentro de outra sociedade secreta. Em seguida, os Illuminati

usaram a rede mundial de lojas maçônicas para espalhar sua influência.

Langdon respirou fundo o ar frio e prosseguiu.

- Eliminar o catolicismo era o compromisso principal dos Illuminati. A

fraternidade sustentava que os dogmas supersticiosos impostos pela Igreja eram os

maiores inimigos da humanidade. Temia que o progresso científico cessasse de

vez caso a Igreja continuasse a promover mitos piedosos como se fossem fatos

absolutos, e que dessa forma a humanidade fosse condenada a um futuro sem

perspectivas, com guerras santas sem o menor sentido.

- Mais ou menos o que acontece hoje em dia.

Kohler tinha razão. As guerras santas ainda freqüentavam as manchetes

dos jornais. Meu Deus é melhor do que o seu Deus. Parecia sempre haver uma

estreita relação entre crentes fervorosos e altos números de mortos.

- Continue - disse Kohler.

Langdon organizou outra vez seus pensamentos e retomou a narrativa.

- Os Illuminati ficaram mais poderosos na Europa e voltaram a atenção

para a América, cujo governo ainda novato tinha maçons como líderes - George

Washington, Benjamim Franklin -, homens honestos, tementes a Deus, que

ignoravam que a sociedade maçônica era o reduto dos Illuminati. Estes

aproveitaram a possibilidade de infiltração e ajudaram a fundar bancos,

universidades e indústrias para financiar a realização de seu objetivo máximo. -

Langdon fez uma pausa. - A criação de um único estado mundial unificado, uma

espécie de Nova Ordem Mundial secular.

Kohler mantinha-se imóvel.

- Uma Nova Ordem Mundial - repetiu Langdon - baseada em

conhecimentos científicos, em um novo Iluminismo. Chamavam-na de Doutrina

Luciferiana. A Igreja alega que Lúcifer era uma referência ao demônio, mas a

fraternidade insistia que sua intenção era o significado literal da palavra, em latim,

aquele que traz a luz. Ou Iluminador.

Kohler suspirou e sua voz de repente ficou solene.

- Senhor Langdon, por favor, sente-se.

Langdon sentou-se como pôde em uma cadeira já esbranquiçada por uma

camada de gelo.

Kohler aproximou-se dele em sua cadeira de rodas.

- Não sei se compreendi bem tudo o que o senhor acabou de me contar,

mas de uma coisa eu sei. Leonardo Vetra era um dos maiores trunfos do CERN. E

era também meu amigo. Preciso que me ajude a localizar os Illuminati.

Langdon não sabia o que responder.

- Localizar os Illuminati? - Ele só pode estar brincando. - Receio, senhor

Kohler, que isto seja totalmente impossível.

Uma ruga surgiu na testa de Kohler.

- Como assim? O senhor não...

- Senhor Kohler - Langdon inclinou-se na direção dele, sem saber muito

bem como fazê-lo compreender o que iria dizer -, não terminei minha história.

Apesar das aparências, é bastante improvável que essa marca tenha sido feita

pelos Illuminati. Não houve comprovação da existência deles por mais de meio

século e a maioria dos estudiosos afirma que a fraternidade dos Illuminati está

extinta há muitos anos.

As palavras foram recebidas com silêncio. Kohler olhava através da névoa

com uma expressão entre estupefata e enraivecida.

- Que diabos, como pode dizer que esse grupo está extinto quando o nome

dele está marcado a fogo no peito daquele homem?

Aquela era a pergunta que Langdon vinha fazendo a si mesmo a manhã

inteira. O aparecimento do ambigrama dos Illuminati era espantoso. Os

simbologistas de todo o mundo ficariam fascinados. Ainda assim, o acadêmico em

Langdon compreendia que a reemergência da marca não provava absolutamente

nada sobre os Illuminati.

- Os símbolos de forma alguma confirmam a presença de seus criadores

originais.

- O que quer dizer com isso?

- Quando filosofias organizadas como a dos Illuminati deixam de existir,

seus símbolos permanecem...prontos para serem adotados por outros grupos.

Chama-se a isso de transferência. É muito comum em simbologia. Os nazistas

tomaram a suástica dos hindus, os cristãos adotaram a cruz dos egípcios, os...

- Esta manhã - provocou Kohler -, quando digitei a palavra "Illuminati" no

computador, obtive milhares de referências atuais. Ao que parece, muita gente

ainda pensa que o grupo está vivo.

- Mania de conspiração - replicou Langdon.

Sempre o irritara a superabundância de teorias conspiratórias que

circulavam na moderna cultura pop. Os meios de comunicação adoravam

manchetes apocalípticas, e pessoas que se autoproclamavam "especialistas em

cultos" ainda estavam faturando à custa da intensa publicidade em torno da

mudança do milênio com histórias sobre os Illuminati estarem vivos, gozando de

excelente saúde e organizando sua Nova Ordem Mundial. Recentemente, o New

York Times publicara matéria sobre laços sinistros com a maçonaria mantidos por

inúmeros personagens famosos: sir Arthur Conan Doyle, o duque de Kent, Peter

Sellers, Irving Berlin, o príncipe Philip, Louis Armstrong e mais um panteão de

conhecidos magnatas, industriais e banqueiros modernos.

Kohler apontou com ar zangado para o corpo de Vetra.

- Considerando-se as evidências, eu diria que talvez as teorias

conspiratórias estejam corretas.

- A impressão que se tem é realmente esta - disse Langdon, o mais

diplomaticamente possível. - A explicação mais plausível, porém, é que alguma

outra organização tenha assumido a marca dos Illuminati e a esteja usando para

seus próprios objetivos.

- Que objetivos? O que esse assassinato prova?

Boa pergunta, pensou Langdon. Ele também estava intrigado, imaginando

onde alguém teria desencavado a marca dos Illuminati depois de 400 anos.

- Só posso lhe dizer que, mesmo que os Illuminati estivessem ativos hoje

em dia, e isso eu posso praticamente garantir que não estão, jamais teriam

qualquer envolvimento com a morte de Leonardo Vetra.

- Não teriam?

- Não. Os Illuminati podem ter acreditado na abolição do cristianismo, mas

exerciam seu poder por meios políticos e financeiros, não através de atos

terroristas. Além disso, os Illuminati seguiam um rigoroso código moral com

relação ao tipo de pessoas que viam como inimigos. Tinham os homens de ciência

na mais alta conta. Não haveria possibilidade de assassinarem um companheiro

cientista como Leonardo Vetra.

O rosto de Kohler petrificou-se.

- Talvez eu tenha deixado de mencionar que Leonardo Vetra era mais do

que um cientista comum.

Langdon suspirou, paciente.

- Senhor Kohler, estou certo de que Leonardo Vetra era brilhante em

muitos aspectos, mas o fato é que...

Sem aviso, Kohler girou a cadeira de rodas e saiu em disparada da sala,

deixando atrás de si um rastro de espirais de fria névoa branca ao desaparecer por

um corredor.

Pelo amor de Deus..., gemeu Langdon, seguindo-o. Kohler esperava por ele

em um pequeno nicho no fim do corredor.

- Aqui era o gabinete de trabalho de Leonardo - disse Kohler, fazendo um

gesto em direção a uma porta de correr. - Depois de vê-lo, talvez o senhor

compreenda as coisas de outra maneira.

Com um resmungo desajeitado, Kohler deu um empurrão e a porta

deslizou, abrindo-se.

Langdon correu os olhos pelo interior do aposento e sentiu sua pele se

arrepiar. Santa Mãe de Deus, disse para si mesmo.

CAPÍTULO 12

Em um outro país, um jovem guarda estava sentado pacientemente diante

de uma ampla bancada de monitores de vídeo. Observava as imagens surgirem

uma após a outra, emitidas ao vivo de centenas de videocâmaras sem fio que

inspecionavam o extenso conjunto de construções. As imagens sucediam-se numa

progressão infindável.

Um corredor decorado. Um escritório particular. Uma cozinha industrial.

À medida que as imagens passavam, o guarda lutava contra os devaneios

que o acometiam. Estava próximo o fim de seu plantão e mesmo assim ele ainda

estava vigilante. Estar de serviço era uma honra.

Algum dia lhe concederiam sua recompensa definitiva.

Com seus pensamentos fluindo, uma imagem à sua frente registrou um

alerta. Súbito, com um reflexo brusco com o qual ele mesmo se espantou, sua mão

apertou um botão no painel de controle. A imagem imobilizou-se.

Inclinou-se em direção à tela para ver melhor, os nervos tensos. No

monitor, leu que a imagem estava sendo transmitida da câmera 86 - uma câmera

que deveria estar posicionada para um corredor.

Mas o que via naquele momento decididamente não era um corredor.

CAPÍTULO 13

Langdon olhava atônito para o gabinete de trabalho à sua frente.

- Que lugar é este?

A despeito da bem-vinda lufada de ar quente em seu rosto, um tremor o

agitava quando ele passou pela porta.

Kohler seguiu-o sem dizer palavra.

Langdon correu os olhos pelo ambiente sem conseguir entender o que via,

O aposento continha a mais peculiar mistura de objetos que jamais encontrara. Na

parede do fundo, dominando a decoração, havia um enorme crucifixo de madeira,

que Langdon classificou como sendo espanhol, do século XIV. Acima do

crucifixo, pendurado no teto, encontrava-se um móbile feito de metal

representando os planetas em órbita.

À esquerda havia uma pintura a óleo da Virgem Maria e, ao lado desta,

uma tabela periódica dos elementos feita de material laminado. Na parede lateral,

mais duas cruzes de bronze ladeavam um pôster de Albert Einstein com sua

famosa citação: DEUS NÃO JOGA DADOS COM O UNIVERSO.

À medida que andava pelo aposento, mais se surpreendia. Na escrivaninha

de Vetra, uma Bíblia de capa de couro fazia companhia a um modelo atômico de

Bohr e a uma réplica em miniatura do Moisés de Michelangelo.

Isso é que é ser eclético, pensou Langdon. O calor era agradável, mas

alguma coisa no ambiente causava mais arrepios em Langdon. Tinha a impressão

de estar presenciando o choque de dois titãs filosóficos, uma confusão indistinta

de forças opostas. Examinou os títulos dos livros na estante: A partícula de Deus,

O Tão da Física e Deus: a prova.

Em um dos suportes de livros estava escrita a citação:

A VERDADEIRA CIÊNCIA DESCOBRE DEUS

À ESPERA ATRÁS DE CADA PORTA.

- PAPA Pio XII

- Leonardo era um padre católico - disse Kohler.

Langdon virou-se para ele.

- Padre católico? Achei que tivesse dito que ele era físico.

- Era as duas coisas. Há outros precedentes na história de religiosos que

eram também homens de ciência.

Leonardo era um deles. Considerava a Física "a lei natural de Deus"

Alegava que a escrita de Deus era visível na ordem natural de tudo o que nos

cerca. Através da ciência, ele esperava provar a existência de Deus para as massas

incrédulas. Via a si mesmo como teofísico.

Teofísico? Para Langdon, a expressão parecia um incrível oximoro.

- O campo da Física de Partículas - explicou Kohler - fez algumas

descobertas de grande impacto ultimamente, descobertas de implicação muito

espiritual. Leonardo foi responsável por muitas delas.

Langdon estudou o diretor do CERN, ainda tentando processar o bizarro

ambiente.

- Espiritualidade e física?

Langdon passara sua carreira estudando história religiosa e, se havia um

tema recorrente, era o que afirmava que ciência e religião haviam sido desde

sempre como o óleo e a água, arquiinimigas, nunca se misturavam.

- Vetra estava na vanguarda da Física de Partículas - acrescentou Kohler.

- Estava começando a fundir Física e religião, demonstrando que uma

complementava a outra de maneiras jamais previstas. Chamava a esse campo

Nova Física.

Kohler tirou um livro da prateleira e o entregou a Langdon. Ele examinou a

capa e leu o título: Deus, milagres e a Nova Física, por Leonardo Vetra.

- O campo é restrito - Kohler prosseguiu -, mas tem trazido novas respostas

para algumas velhas perguntas.

Sobre a origem do universo e sobre as forças que ligam todos nós.

Leonardo acreditava que sua pesquisa tinha potencial para converter milhões de

pessoas a uma vida mais espiritual. No ano passado, ele provou categoricamente a

existência de uma forma de energia que une todos nós. Demonstrou de fato que

estamos todos fisicamente vinculados uns aos outros, que as moléculas de seu

corpo estão entrelaçadas às moléculas do meu, que uma única força se move

dentro de todas as pessoas.

Langdon ficou desconcertado. E o poder de Deus unirá todas as gentes.

- O senhor Vetra realmente descobriu uma forma de demonstrar que as

partículas estão ligadas?

- Descobriu provas conclusivas. Um artigo recente da Scientific American

saudou a Nova Física como um caminho mais seguro para se chegar a Deus do

que a própria religião.

O comentário calou fundo. Langdon de repente se viu pensando nos

Illuminati anti-religiosos.

Relutantemente, forçou-se a realizar uma momentânea incursão intelectual

ao impossível. Se os Illuminati ainda estivessem ativos, teriam matado Leonardo

para impedi-lo de levar sua mensagem religiosa às massas? Langdon descartou a

idéia. Absurdo! Os Illuminati são história antiga! Todos os acadêmicos sabem

disso!

- Vetra tinha uma porção de inimigos no mundo científico - continuou

Kohler. - Muitos cientistas puristas desprezavam-no. Até aqui, no próprio CERN.

Achavam que usar física analítica como apoio para princípios religiosos era trair a

ciência.

- Mas não é verdade que os cientistas de hoje estão um pouco menos na

defensiva com relação à Igreja?

Kohler resmungou, irritado.

- Que motivos teríamos para isso? A Igreja pode não estar mais queimando

cientistas na fogueira, mas, se acha que afrouxaram seu domínio sobre a ciência,

por que será que a metade das escolas em seu país não está autorizada a ensinar a

evolução? Por que será que a Coalizão Cristã dos EUA é o lobby mais influente

contra o progresso científico no mundo? A batalha entre ciência e religião ainda

está em andamento, senhor Langdon, só que saiu dos campos de batalha para as

salas de reunião das diretorias.

Langdon percebeu que Kohler tinha razão. Na semana anterior, a Escola de

Teologia de Harvard fizera uma manifestação de protesto no prédio de Biologia

contra a inclusão de engenharia genética no programa de graduação. O diretor do

Departamento de Biologia, o famoso ornitólogo Richard Aaronian, defendeu seu

currículo pendurando uma enorme faixa na janela de seu escritório. A faixa

mostrava um "peixe", o símbolo cristão, modificado, com quatro pequenos pés,

um tributo, segundo Aaronian, à evolução dos peixes dipnóicos africanos para a

terra firme. Sob os peixes, em vez da palavra "Jesus", a proclamação "DARWIN!"

O som de um bipe agudo cortou o ar e Langdon levantou a cabeça. Kohler

voltou a atenção para o equipamento eletrônico em sua cadeira de rodas. Tirou um

pequeno aparelho de seu suporte e leu a mensagem que chegara.

- Ótimo. É a filha de Leonardo. A senhorita Vetra está chegando no

heliponto neste momento. Vamos ao encontro dela. Acho melhor que ela não

venha aqui e veja seu pai nesse estado.

Langdon concordou. Seria um choque que nenhum filho merecia receber.

- Vou pedir à senhorita Vetra que explique o projeto em que ela e seu pai

vinham trabalhando, e talvez isso lance alguma luz sobre o motivo por que ele foi

morto.

- Acha que mataram Vetra por causa do trabalho dele?

- É bem possível. Leonardo contou-me que estava trabalhando em algo

pioneiro. Só me disse isso. Andava cheio de segredos sobre o projeto. Tinha um

laboratório particular e exigia isolamento, o que eu de bom grado lhe concedi por

causa de seu brilhantismo. Seu trabalho ultimamente vinha consumindo uma

quantidade enorme de energia elétrica, mas eu me abstive de questioná-lo sobre o

assunto. - Kohler girou a cadeira na direção da porta do gabinete. - Há uma coisa,

porém, que o senhor precisa saber antes de sair deste apartamento.

Langdon não estava muito certo se queria escutar o que era.

- Algo foi roubado de Vetra por seu assassino.

-Algo?

- Venha comigo.

O diretor dirigiu sua cadeira de volta para a sala enevoada. Langdon foi

atrás, sem saber o que esperar.

Kohler manobrou até ficar a centímetros do corpo de Vetra e então parou.

Fez um sinal para que Langdon se aproximasse. Langdon veio para perto, a bílis

subindo-lhe à garganta por causa do cheiro da urina congelada da vítima.

- Olhe o rosto dele - disse Kohler.

Olhar o rosto dele? Langdon não compreendia. Pensei que alguma coisa

tivesse sido roubada.

Hesitante, Langdon ajoelhou-se. Tentou enxergar o rosto de Vetra, mas a

cabeça fora torcida 180 graus para trás e o rosto estava pressionado contra o

tapete.

Lutando contra sua deficiência, Kohler inclinou-se e virou com cuidado a

cabeça gelada de Vetra.

Estalando, o rosto do morto girou e ficou à mostra, contorcido de agonia.

Kohler manteve-o naquela posição por um momento.

- Meu Deus! - exclamou Langdon, recuando horrorizado.

O rosto de Vetra estava coberto de sangue. Um único olho castanho

devolveu-lhe um olhar sem vida. A outra órbita estava estraçalhada e vazia.

- Roubaram o olho dele?

CAPÍTULO 14

Langdon saiu do Edifício C para o ar livre, contente por estar fora do

apartamento de Vetra. O sol ajudou a dissipar a imagem da órbita ocular vazia que

ficara gravada em sua mente.

- Por aqui, por favor - Kohler falou, dando uma guinada e enveredando por

uma subida íngreme. A cadeira de rodas elétrica acelerava sem esforço. - A

senhorita Vetra vai chegar a qualquer momento.

Langdon corria para acompanhá-lo.

- Então - perguntou Kohler -, ainda duvida do envolvimento dos

Illuminati?

Langdon não sabia mais coisa alguma. O fato de Vetra ser religioso era

inegavelmente perturbador, mas ainda assim Langdon não se convencia a deixar

de lado todas as evidências acadêmicas que sempre pesquisara. Além disso, havia

o olho...

- Ainda acho - declarou, com mais ênfase do que pretendia - que os

Illuminati não são responsáveis por esse crime, O olho que falta é uma prova

disso.

- O quê?

- Mutilação aleatória - explicou Langdon - é um ato muito pouco

característico dos Illuminati. Os especialistas em cultos dizem que a desfiguração

sem propósito é típica de seitas marginais, de fanáticos que cometem atos de

terrorismo ao acaso. Os Illuminati sempre demonstraram mais deliberação.

- Deliberação? Remover cirurgicamente o globo ocular de alguém não é

demonstrar deliberação?

- Não transmite nenhuma mensagem clara. Não serve a nenhum objetivo

maior.

A cadeira de rodas de Kohler parou subitamente no alto da ladeira. Ele se

virou.

- Senhor Langdon, acredite, aquele olho que falta serve realmente a um

objetivo maior, muito maior.

Quando os dois homens atravessaram a elevação coberta de grama, ouviuse

o ruído das hélices de um helicóptero a oeste. O aparelho apareceu e descreveu

um arco no vale aberto, vindo na direção deles.

Inclinou-se bastante para um lado e depois diminuiu a velocidade, pairando

acima de um heliponto pintado na grama.

Langdon observava, distante, sua mente em um redemoinho como o das

hélices, pensando se uma boa noite de sono seria capaz de acabar com aquela

desorientação, tornar suas idéias mais claras. De alguma forma, duvidava muito

disso.

A aeronave tocou o chão, um piloto saltou e começou a descarregar

material. Havia um bocado de bagagem: apetrechos de acampamento bolsas

impermeáveis de vinil, cilindros de oxigênio e engradados que pareciam conter

equipamento de alta tecnologia para mergulho.

Langdon ficou confuso.

- Esse é o equipamento da senhorita Vetra? - gritou para Kohler em meio

ao ruído dos motores.

Kohler assentiu e gritou de volta:

- Ela estava fazendo pesquisas biológicas no mar Balear.

- Pensei que tivesse dito que ela era física!

- E é. Ela é biofísica de Quantum Entanglement, ou emaranhamento

quântico. Estuda a interconexão dos sistemas de vida. O trabalho dela está

intimamente relacionado com o do pai. Recentemente, ela refutou uma das teorias

fundamentais de Einstein usando câmeras atomicamente sincronizadas para

observar um cardume de atuns.

Langdon examinou o rosto de seu anfitrião em busca de qualquer vestígio

de humor. Einstein e atuns?

Ele começava a se questionar se o avião espacial X-33 não o teria deixado

no planeta errado por engano.

Um momento depois, Vittoria Vetra saiu do helicóptero. Robert Langdon

percebeu que aquele seria realmente um dia de intermináveis surpresas. Ao descer

da aeronave, de short cáqui e blusa branca sem mangas, Vittoria Vetra em nada se

parecia com a cientista circunspecta que ele esperava. Ágil e graciosa, era alta,

com pele morena e longos cabelos negros, que o vento dos rotores agitava. Seu

rosto era inegavelmente italiano, sem ser bonita demais porém com traços largos e

fortes que, mesmo à distância, transpiravam uma sensualidade crua. As lufadas de

ar colavam sua roupa ao corpo, acentuando-lhe o torso esbelto e os seios

pequenos.

- A senhorita Vetra é uma mulher de tremenda força pessoal - disse Kohler,

parecendo notar a fascinação de Langdon. - Passa meses a fio trabalhando em

sistemas ecológicos perigosos. É uma vegetariana rigorosa e o guru residente de

hata-ioga do CERN.

Hata-ioga? Langdon ponderou. A antiga arte budista de meditação e

alongamento parecia uma estranha habilidade para uma física filha de um padre

católico.

Langdon observou-a enquanto se aproximava. Obviamente, ela estivera

chorando, seus olhos escuros e profundos cheios de emoções que Langdon não

saberia identificar. Ainda assim, movia-se em direção a eles com ímpeto e

firmeza. Seus braços e pernas eram fortes e de músculos bem trabalhados,

irradiando a saudável luminosidade da pele mediterrânea que passara muitas horas

ao sol.

- Vittoria - disse-lhe Kohler -, meus sentimentos. É uma perda terrível para

a ciência e para todos nós aqui no CERN.

Vittoria agradeceu com um gesto de cabeça. Quando falou, sua voz era

macia, com um sotaque gutural.

- Já sabe quem é o responsável?

- Ainda estamos trabalhando nisso.

Ela se voltou para Langdon, estendendo-lhe a mão esguia.

- Meu nome é Vittoria Vetra. O senhor deve ser da Interpol?

Langdon apertou a mão dela, momentaneamente enfeitiçado por seu olhar

profundo.

- Robert Langdon - apresentou-se, sem saber o que dizer mais.

- O senhor Langdon não está com as autoridades - explicou Kohler. - Ele é

um especialista vindo dos Estados Unidos. Está aqui para nos ajudar a localizar o

responsável por esta situação.

Vittoria pareceu meio insegura.

- E a polícia?

Kohler suspirou, mas não disse nada.

- Onde está o corpo? - exigiu ela.

- Sendo cuidado.

A mentira caridosa surpreendeu Langdon.

- Quero vê-lo - disse Vittoria.

- Vittoria - instou Kohler -, seu pai foi brutalmente assassinado. Seria

melhor que se lembrasse dele como era.

Ela começou a falar, mas foi interrompida.

- Ei, Vittoria - vozes chamaram de longe. - Seja bem-vinda de volta!

Ela se virou. Um grupo de cientistas que passava perto do heliponto acenou

alegremente.

- Desmentiu mais alguma teoria de Einstein? - gritou um deles.

- Seu pai deve estar orgulhoso!

Vittoria acenou, sem jeito, quando eles passaram. Então, voltou-se para

Kohler, o rosto com uma expressão confusa.

- Ninguém sabe ainda?!

- Decidi que discrição era fundamental.

- O senhor não contou à equipe que meu pai foi assassinado? - Agora havia

uma certa raiva no seu tom de voz.

Kohler replicou com dureza:

- Talvez tenha esquecido, senhorita Vetra, que, assim que eu comunicar a

morte de seu pai, haverá uma investigação no CERN. Incluindo uma vistoria

completa neste laboratório. Sempre procurei respeitar a privacidade de seu pai.

Ele me contou apenas duas coisas sobre o seu projeto atual: que tem potencial

para trazer milhões de francos para o CERN em contratos de licença na próxima

década e que não está pronto para divulgação pública porque ainda é uma

tecnologia de risco. Considerando-se esses dois fatos, preferiria não ter gente

estranha bisbilhotando o laboratório dele e, quem sabe, roubando o trabalho dele

ou morrendo ao fazê-lo e tornando o CERN responsável por isso em seguida.

Ficou bem claro?

Vittoria parou, calada. Langdon percebeu nela um respeito e uma aceitação

relutantes pela lógica de Kohler.

- Antes de comunicarmos qualquer coisa às autoridades - disse Kohler -,

preciso saber em que vocês dois estavam trabalhando. Preciso que nos leve ao seu

laboratório.

- O laboratório é irrelevante - disse Vittoria. - Ninguém sabia o que meu

pai e eu estávamos fazendo. A experiência não poderia de jeito algum ter a ver

com a morte dele.

A respiração de Kohler soou irritada, aflita.

- Não é o que indicam as evidências.

- Evidências? Que evidências?

Langdon fazia-se a mesma pergunta.

Kohler mais uma vez enxugou a boca.

- Por enquanto, vai ter de confiar em mim.

Estava claro, pela intensidade do olhar, que ela não confiava.

CAPÍTULO 15

Langdon caminhou em silêncio atrás de Vittoria e Kohler na volta para o

saguão principal onde sua estranha visita começara. As pernas de Vittoria

moviam-se com fluida eficiência - como a de um mergulhador olímpico -, sem

dúvida, imaginou Langdon, como resultado da flexibilidade e controle obtidos

com a prática da ioga. Notou que ela respirava lenta e deliberadamente, como se

tentasse filtrar sua dor.

Langdon queria dizer-lhe alguma coisa, apresentar suas condolências. Ele

também já sentira o vazio abrupto de perder um pai inesperadamente. Lembravase

sobretudo do dia do enterro, cinzento e chuvoso. Dois dias depois de seu

aniversário de 12 anos. A casa ficou cheia de homens do escritório, vestidos com

ternos escuros, homens que apertavam sua mão com força demais. Todos

murmuravam palavras como cardíaco e estresse. Sua mãe, com os olhos cheios de

lágrimas, brincava que conseguia acompanhar o mercado de ações só segurando a

mão de seu marido.., o pulso dele era sua fita particular do registrador de cotações

da bolsa.

Certa vez, quando seu pai era vivo, Robert escutara a mãe pedindo-lhe que

"parasse um pouco para sentir o perfume das rosas". Naquele ano, Langdon

comprou para o pai no Natal uma pequena rosa de vidro soprado. Era o objeto

mais lindo que o menino já vira.., encantou-se com a maneira como o sol se

refletia nela, lançando um arco-íris de cores na parede. "É linda" dissera o pai ao

abrir o presente, beijando a testa de Robert. "Vamos procurar um lugar seguro

para ela." Então, seu pai colocou cuidadosamente a rosa em uma prateleira alta e

empoeirada no ponto mais escuro da sala de estar.

Dias mais tarde, Langdon subiu em um banco, apanhou a rosa e devolveu-a

à loja. O pai nunca percebeu que ela não estava mais lá.

O som da campainha do elevador trouxe-o de volta ao presente. Vittoria e

Kohler estavam à sua frente, entrando no elevador. Langdon hesitou diante da

porta aberta.

- Alguma coisa errada? - perguntou Kohler, mais impaciente do que

preocupado.

- Não, nada - disse Langdon, forçando-se a embarcar no cubículo apertado.

Só usava elevadores quando absolutamente necessário. Preferia os espaços mais

abertos das escadarias.

- O laboratório do doutor Vetra é subterrâneo - esclareceu Kohler.

Maravilha, pensou Langdon ao entrar, sentindo um vento gelado subir das

profundezas do poço. As portas se fecharam e o elevador começou a descer.

- Seis andares - disse Kohler inexpressivamente, como uma máquina.

Langdon imaginou a escuridão do poço abaixo deles. Tentou bloquear o

pensamento olhando para o painel numerado dos andares. Curiosamente, o painel

do elevador só indicava duas paradas. TÉRREO e LHC.

- O que quer dizer LHC? - perguntou Langdon, esforçando-se para não

parecer nervoso.

- Large Hadron Collider, o Grande Colisor de Hádrons - respondeu Kohler.

- Um acelerador de partículas.

Acelerador de partículas? O termo era-lhe vagamente familiar. Ouvira-o

pela primeira vez em um jantar com colegas na Dunster House, em Cambridge.

Um físico amigo deles, Bob Brownell, chegara enfurecido naquela noite.

- Os malditos imbecis cancelaram tudo! - praguejou Brownell.

- Cancelaram o quê? - perguntaram os outros.

- OSCS!

- O quê?

- O Super Colisor Supercondutor!

Alguém deu de ombros.

- Não sabia que Harvard estava construindo um.

- Não é Harvard! - exclamou. - São os Estados Unidos! Seria o acelerador

de partículas mais poderoso do mundo! Um dos mais importantes projetos

científicos do século! Puseram dois bilhões de dólares nisso e o Senado dispensou

o projeto! Aqueles lobistas desgraçados, protestantes fundamentalistas!

Quando Brownell finalmente se acalmou, explicou que um acelerador de

partículas é um grande tubo circular dentro do qual partículas subatômicas eram

aceleradas. Dentro do túnel, ímãs são ativados e desativados em rápida sucessão

para "empurrar" as partículas adiante até que alcancem velocidades. As partículas

totalmente aceleradas circulam pelo tubo a quase 300 mil quilômetros por

segundo.

- Mas é quase a velocidade da luz - exclamou um dos professores.

- É isso aí - disse Brownell.

E continuou a falar, explicando que, ao acelerar duas partículas em

direções opostas à volta do tubo e depois fazê-las colidir, os cientistas podem

desintegrar as partículas nas partes em que são constituídas e assim ter uma noção

a respeito dos componentes fundamentais da natureza.

- Os aceleradores de partículas - declarou Brownell - são cruciais para o

futuro da ciência. A colisão de partículas é a chave para se compreender os blocos

de que é formado o universo.

O Poeta Residente de Harvard, um homem sossegado chamado Charles

Pratt, não se impressionou muito.

- Para mim, isso parece mais - disse Pratt - uma abordagem científica de

Neanderthal... igual a espatifar relógios para conhecer o mecanismo interno deles.

Num rompante, Brownell largou o garfo e saiu da sala pisando duro.

Quer dizer que o CERN tem um acelerador de partículas? - pensou

Langdon, conforme o elevador descia. Um tubo circular para despedaçar

partículas. Gostaria de saber por que era subterrâneo.

Quando o elevador parou, Langdon ficou feliz em sentir terra firme de

novo sob os pés. Assim que as portas se abriram, porém, seu alívio evaporou-se.

Encontrava-se outra vez em um mundo totalmente estranho.

O corredor estendia-se indefinidamente em ambas as direções, esquerda e

direita. Tratava-se de um túnel revestido de cimento liso, largo o suficiente para

permitir a passagem de um caminhão de cinco eixos.

Profusamente iluminado no ponto onde estavam, mais adiante o corredor

tornava-se negro como breu. Um vento úmido, sussurrando, vinha da escuridão -

um lembrete inquietante de que se encontravam agora muitos metros abaixo do

solo. Langdon quase sentia o peso da terra e das pedras acima de sua cabeça. Por

um instante, voltou a ter nove anos de idade, a escuridão forçando-o a voltar às

cinco horas de trevas sufocantes que ainda o assombravam. Cerrando os punhos,

lutou contra aquela sensação.

Vittoria manteve-se em silêncio ao sair do elevador e seguir sozinha sem

hesitar para o corredor escuro. No teto, conforme ela passava, as luzes

fluorescentes iam aos poucos se acendendo para iluminar seu caminho. O efeito

era perturbador, como se o corredor estivesse vivo, prevendo cada um dos

movimentos dela. Langdon e Kohler seguiam-na a certa distância. As luzes

apagavam-se automaticamente atrás deles.

- Esse acelerador de partículas - disse Langdon em voz baixa - está aqui

embaixo neste túnel?

- Está ali. - Kohler apontou para a sua esquerda, onde um tubo cromado,

polido, corria pela parede interna do túnel.

Langdon olhou para o tubo, perplexo.

- Isso é o acelerador?

Não era nem um pouco como ele havia imaginado. Completamente reto,

com uns noventa centímetros de diâmetro, estendia-se na horizontal pela extensão

visível do túnel até desaparecer na escuridão. Lembra mais um cano de esgoto

high-tech, pensou Langdon.

- Achei que os aceleradores de partículas fossem circulares.

- Este acelerador é circular - disse Kohler. - Parece ser reto, mas isto é uma

ilusão de ótica. A circunferência deste túnel é tão grande que a curva é

imperceptível. Como a da Terra.

Langdon estava admirado.

- Isto é um círculo? Mas então... deve ser imenso!

- O LHC é a maior máquina do mundo.

Langdon olhou de novo o tubo para ter certeza de que não se enganara.

Lembrou-se do motorista do CERN comentando sobre uma enorme máquina sob a

terra. No entanto...

- Tem mais de oito quilômetros de diâmetro e vinte e sete quilômetros de

extensão.

Langdon virou rapidamente a cabeça para o diretor, depois para o túnel

escuro à sua frente.

- Vinte e sete quilômetros? Este túnel tem vinte e sete quilômetros de

comprimento?

Kohler concordou.

- Cavados em um círculo perfeito. Vai até a França e volta para cá. As

partículas aceleradas percorrem o tubo mais de dez mil vezes em um único

segundo antes de colidirem.

As pernas de Langdon ficaram bambas ao olhar para a abertura negra do

túnel.

- Está dizendo que o CERN removeu milhões de toneladas de terra só para

espatifar partículas minúsculas?

Kohler ergueu os ombros.

- Às vezes, para encontrar a verdade, é preciso remover montanhas.

CAPÍTULO 16

A quilômetros do CERN, uma voz soou através de umwallde-talkje.

- 0K, estou no corredor.

O técnico que monitorava as telas de vídeo apertou o botão de seu

transmissor e disse:

- A câmera que você está procurando é a 86. Deve estar no fim do

corredor. Seguiu-se um longo silêncio no rádio. Um ligeiro suor cobriu o rosto do

técnico que esperava. Finalmente, seu rádio deu um estalido.

- A câmera não está no lugar - disse a voz. - Mas dá para ver onde estava

instalada. Alguém deve tê-la tirado daqui.

O técnico respirou fundo.

- Obrigado. Espere só mais um segundo, está bem?

Suspirando, voltou a atenção para as telas de vídeo à sua frente. Grande

parte do conjunto de prédios era aberta ao público, e câmeras sem fio já haviam

sumido antes, em geral roubadas por visitantes engraçadinhos em busca de

suvenires. Entretanto, assim que a câmera saía dos prédios e ficava fora de

alcance, o sinal se perdia e a tela ficava em branco. Perplexo, o técnico olhava

para o monitor. Uma imagem clara como água ainda vinha da câmera 86.

Se a câmera foi roubada, refletia ele, como ainda estamos recebendo o

sinal? Sabia que só havia uma explicação para isso. A câmera ainda estava dentro

dos prédios, alguém apenas a trocara de lugar. Mas quem? E por quê?

Estudou o monitor durante algum tempo. Por fim, pegou seu walkie-talkie.

- Há algum armário embutido nesse poço de escada? Algum móvel com

portas, algum nicho escuro?

A voz que respondeu parecia um tanto espantada.

- Não. Por quê?

O técnico fez uma cara feia.

- Por nada. Obrigado pela ajuda.

Desligou o walkie-talkie e apertou os lábios.

Considerando-se o tamanho pequeno da câmera de vídeo e o fato de não ter

fio, o técnico sabia que a câmera 86 podia estar transmitindo de qualquer lugar do

fortemente vigiado complexo de construções - um conjunto compacto de 32

prédios independentes em um raio de 800 metros. A única pista é que a câmara

parecia ter sido posta em um lugar escuro. Claro que isso não ajudava grande

coisa. Havia milhares de lugares escuros ali - armários de manutenção, dutos de

aquecimento, galpões de utensílios de jardinagem, armários de quartos de dormir

e até um labirinto de túneis subterrâneos. Poderiam levar semanas para encontrar

a câmera 86.

Mas esse é o menor dos meus problemas.

Além do dilema da nova localização da câmera, havia outra questão muito

mais preocupante a resolver. O técnico levantou o olhar para a imagem que a

câmera perdida estava transmitindo. A de um objeto imóvel. Um aparelho

moderno que não se parecia com nada que o técnico conhecesse. Ele examinou o

mostrador eletrônico que piscava na base do aparelho.

Embora o guarda tivesse passado por um rigoroso treinamento que o

preparava para situações de tensão, ainda assim sentia seu pulso acelerando. Disse

a si mesmo para não entrar em pânico. Tinha de haver uma explicação. O objeto

parecia pequeno demais para oferecer perigo significativo. De qualquer forma,

sua presença ali dentro era perturbadora. Muito perturbadora, na verdade.

Logo hoje, pensou.

Segurança era sempre uma prioridade para seu empregador, mas hoje, mais

do que em qualquer outro dia nos últimos 12 anos, segurança era uma questão da

maior importância. O técnico observou o objeto durante muito tempo e escutou o

ruído de trovoadas de uma tempestade que se aproximava ao longe.

Então, suando, discou para seu superior.

CAPÍTULO 17

Poucas crianças podem dizer que se lembram do dia em que encontraram

seu pai, mas Vittoria Vetra podia. Tinha oito anos e morava no lugar de sempre, o

Orfanotrofio di Siena, um orfanato católico perto de Florença, abandonada por

pais que nunca conhecera. Estava chovendo naquele dia. As freiras já tinham

chamado por ela duas vezes para ir jantar, mas ela fingia não ouvir. Continuava lá

fora, deitada no pátio, com o rosto voltado para o alto, para as gotas de chuva,

sentindo-as bater em seu corpo, tentando adivinhar onde iriam cair em seguida. As

freiras chamaram de novo, ameaçando-a de pegar uma pneumonia, o que tornaria

aquela criança insuportavelmente cabeça-dura muito menos curiosa sobre a

natureza.

Não estou escutando vocês, pensava Vittoria.

Estava encharcada quando o jovem padre saiu para buscá-la. Ele era novo

ali. Vittoria esperou que ele viesse arrastá-la para dentro. Mas ele não o fez. Para

surpresa dela, deitou-se ao seu lado, molhando a batina em uma poça.

- Disseram que você faz uma porção de perguntas - disse o moço.

Vittoria replicou, mal-humorada:

- E é ruim fazer perguntas?

Ele riu.

- Acho que não.

- O que você está fazendo aqui fora?

- O mesmo que você: pensando por que as gotas de chuva caem.

- Não estou pensando por que elas caem! Eu já sei!

O padre olhou espantado para ela.

- Você sabe?

- A irmã Francisca disse que as gotas de chuva são lágrimas dos anjos que

caem para lavar nossos pecados.

- Puxa! - ele disse, em um tom admirado. - Então, está explicado.

- Não, não está! - disparou a menina. - As gotas caem porque tudo cai!

Tudo! Não é só a chuva!

O padre coçou a cabeça.

- Sabe, mocinha, você tem razão. Tudo cai mesmo. Deve ser a gravidade.

- Deve ser o quê?

Ele olhou para ela com ar incrédulo.

- Você nunca ouviu falar da gravidade?

- Não.

O padre fez um gesto decepcionado.

- É uma pena. A gravidade responde a uma porção de perguntas.

Vittoria sentou-se.

- O que é gravidade? - perguntou, exigente. - Diga para mim!

O padre piscou o olho para ela.

- E se eu explicar a você durante o jantar?

O jovem padre era Leonardo Vetra. Embora tivesse ganho prêmios de

Física quando aluno da universidade, ouvira um outro chamado e fora para o

seminário. Leonardo e Vittoria tornaram-se grandes amigos, por mais improvável

que fosse, naquele mundo solitário de freiras e regulamentos. Vittoria fazia

Leonardo rir e ele tomou-a sob sua proteção, ensinando-lhe que belas coisas como

o arco-íris e os rios tinham muitas explicações. Falou-lhe sobre a luz, os planetas,

as estrelas e toda a natureza, tanto do ponto de vista de Deus quanto do da ciência.

O intelecto e a curiosidade inatos de Vittoria faziam dela uma aluna cativante.

Leonardo a protegia como a uma filha.

Vittoria também estava feliz. Nunca sentira a alegria de ter um pai.

Enquanto todos os outros adultos respondiam às suas perguntas com um ar de

repreensão, Leonardo passava horas mostrando-lhe livros.

Até perguntava o que ela achava, quais eram suas idéias sobre os assuntos.

Então, certo dia, seu pior pesadelo virou realidade. Padre Leonardo disse-lhe que

iria sair do orfanato.

- Vou me mudar para a Suíça - explicou ele. - Recebi uma subvenção para

estudar Física na Universidade de Genebra.

- Física? - exclamou Vittoria. - Pensei que você amasse a Deus!

- Eu amo, e muito. Por isso é que quero estudar suas regras divinas. As leis

da Física são a tela que Deus estendeu para pintar sua obra-prima.

Vittoria ficou arrasada. Mas o padre Leonardo tinha mais novidades. Disse

a Vittoria que conversara com seus superiores e eles haviam concordado que

Leonardo a adotasse.

- Você gostaria que eu a adotasse? - perguntou Leonardo.

- O que significa adotar? - perguntou Vittoria por sua vez.

O padre Leonardo explicou.

Vittoria abraçou-o durante cinco minutos seguidos, chorando de alegria.

- Ah, eu quero, quero sim!

E ele disse que teria de partir e ficar longe por algum tempo, até instalar

seu novo lar na Suíça, mas que mandaria buscá-la dentro de seis meses. Seria a

mais longa espera da vida de Vittoria, mas Leonardo manteve a palavra. Cinco

dias antes de seu aniversário de nove anos, Vittoria mudou-se para Genebra.

Freqüentava a Escola Internacional de Genebra durante o dia e estudava com seu

pai à noite.

Três anos depois, Leonardo Vetra foi contratado pelo CERN. Vittoria e

Leonardo mudaram-se para um país das maravilhas como jamais a pequena

Vittoria pudera imaginar.

Vittoria Vetra sentia seu corpo entorpecido enquanto percorria o túnel do

LHC. Via nele o reflexo de sua imagem silenciosa e percebia a ausência de seu

pai. Normalmente, ela vivia em um estado de profunda calma, em harmonia com o

mundo à sua volta. Agora, porém, de repente, nada mais fazia sentido. As últimas

três horas haviam sido como um borrão indistinto.

Eram dez da manhã quando a chamada de Kohler chegou nas ilhas

Baleares. Seu pai foi assassinado. Volte imediatamente para casa. A despeito do

calor abafado no convés do barco de mergulho, ela gelara até os ossos com

aquelas palavras, o tom de voz de Kohler, despojado de qualquer emoção,

ferindo-a tanto quanto a notícia.

Agora, ela voltara para casa. Mas que casa, afinal? O CERN, seu mundo

desde os 12 anos, parecia de repente estrangeiro. Seu pai, o homem que o tornara

mágico, estava morto.

Respire fundo, disse a si mesma, mas não conseguia acalmar sua mente. As

perguntas sucediam-se uma à outra cada vez mais depressa. Quem matara seu pai?

E por quê? Quem era aquele "especialista" americano? Por que Kohler insistia em

ver o laboratório?

Kohler dissera que existiam evidências de que o assassinato de seu pai

estava relacionado com o projeto em curso. Que evidências? Ninguém sabia em

que estávamos trabalhando! E, mesmo que alguém descobrisse, por que o

matariam?

Andando pelo túnel do LHC a caminho do laboratório de seu pai, Vittoria

se deu conta de que estava prestes a revelar o trabalho mais importante de seu pai

sem que ele estivesse presente.

Imaginara aquele momento de forma muito diferente: seu pai convocando

os maiores cientistas do CERN, mostrando-lhes sua descoberta, vendo as

expressões de admiração e respeito em seus rostos. Em seguida, radiante de

orgulho paterno, ele explicaria a eles como havia sido uma idéia de Vittoria que o

ajudara a transformar o projeto em realidade.., que a participação de sua filha

havia sido essencial naquele trabalho pioneiro. Vittoria sentiu um nó na garganta.

Meu pai e eu deveríamos estar juntos dividindo este momento. E lá estava ela

sozinha. Sem colegas. Sem rostos felizes. Só um americano estranho e

Maximilian Kohler.

Maximilian Kohler. Der Kônig.

Mesmo quando criança, Vittoria não simpatizava com ele. Embora tivesse

aprendido a respeitar seu intelecto poderoso, aquelas maneiras gélidas sempre lhe

pareceram desumanas, a antítese exata do comportamento caloroso de seu pai.

Kohler buscava na ciência a lógica imaculada; seu pai, o deslumbramento

espiritual. E, no entanto, por estranho que fosse, sempre parecera existir um tácito

respeito entre os dois homens. Alguém explicara a ela que o gênio aceita outro

gênio incondicionalmente.

Gênio, pensou ela. Meu pai... papai. Morto.

A entrada para o laboratório de Leonardo Vetra era um comprido e

asséptico corredor inteiramente revestido de azulejos brancos. Langdon teve a

impressão de estar entrando em uma espécie de asilo de loucos subterrâneo.

Alinhadas nas paredes do corredor havia dezenas de imagens em preto-e-branco

emolduradas. Langdon construíra sua carreira estudando imagens, mas aquelas lhe

eram inteiramente desconhecidas. Pareciam negativos caóticos de riscos e espirais

aleatórios. Arte moderna? - arriscou ele. Jackson Pollock depois das anfetaminas?

- São diagramas de dispersão - disse Vittoria, notando o interesse de

Langdon. - Representações em computador da colisão de partículas. Esta é a

partícula Z - disse ela, apontando para um leve traço, quase invisível na confusão.

- Meu pai descobriu-a faz cinco anos. Pura energia, sem massa nenhuma. Pode

muito bem ser o menor bloco estrutural na natureza. A matéria nada mais é do que

energia capturada.

Matéria é energia? Langdon inclinou a cabeça para um lado. Isto soa muito

zen. Examinou o minúsculo traço na fotografia e imaginou o que diriam seus

amigos no Departamento de Física de Harvard quando lhes contasse que passara o

fim de semana em um grande colisor de hádrons admirando partículas Z.

- Vittoria - falou Kohler quando se aproximaram da imponente porta de aço

do laboratório -, tenho de avisá-la que vim aqui esta manhã procurar seu pai.

Vittoria enrubesceu ligeiramente.

-Veio?

- Sim. E fiquei muito surpreso ao ver que ele trocou a fechadura de

segurança padronizada do CERN por algo diferente.

Kohler indicou um aparelho eletrônico complicado ao lado da porta.

- Desculpe - disse ela. - Mas sabe como ele se preocupava com a

privacidade. Não queria que mais ninguém além de nós dois tivesse acesso ao

laboratório.

- Muito bem - disse Kohler. - Abra a porta.

Vittoria ficou parada por algum tempo. Então, respirando fundo,

encaminhou-se para o mecanismo instalado na parede.

Langdon não estava preparado para o que aconteceu em seguida.

Vittoria aproximou-se do aparelho e, com cuidado, alinhou seu olho direito

com uma lente protuberante que parecia um telescópio. Depois, apertou um botão.

Ouviu-se um estalido dentro da máquina. Um facho de luz oscilava de um lado

para outro, escaneando o globo ocular dela como se fosse uma máquina

copiadora.

- É um scanner de retina - explicou ela. - Segurança infalível. Programado

para aceitar apenas dois padrões de retina, o meu e o do meu pai.

Robert Langdon parou, horrorizado com a revelação. A imagem de

Leonardo Vetra voltou-lhe à cabeça em detalhes assustadores - o rosto

ensangüentado, o único olho castanho fitando-o de volta, a órbita vazia.

Tentou recusar a verdade óbvia, mas então viu no chão de azulejos

brancos, abaixo do scanner, minúsculas gotas vermelhas. Sangue seco.

Vittoria, ainda bem, nada percebeu.

A porta de aço abriu-se deslizando e ela entrou.

Kohler fixou em Langdon um olhar implacável. A mensagem era clara: É

como eu lhe disse. O olho que falta serve realmente a um objetivo maior.

CAPÍTULO 18

As mãos da mulher estavam amarradas, os pulsos agora roxos e inchados

por causa do atrito. O Hassassin de pele cor de mogno estava deitado ao lado dela,

esgotado, admirando sua presa nua.

Pensava se aquele sono leve a que ela estava entregue no momento não

seria um truque, uma tentativa patética de evitar prestar-lhe mais serviço.

Ele não se importava. Já se recompensara o suficiente. Saciado, sentou-se

na cama. Em seu país, as mulheres eram propriedades, posses. Fracas.

Instrumentos de prazer. Escravas para serem negociadas como gado. E sabiam

qual era o lugar delas. Mas ali, na Europa, elas fingiam ter uma força e uma

independência que o divertiam e excitavam ao mesmo tempo. Forçá-las à

submissão física era uma gratificação que ele sempre apreciava.

Agora, a despeito do contentamento sexual, o Hassassin percebia que um

outro apetite crescia dentro dele. Ele matara na noite anterior, matara e mutilara, e

para ele matar era como heroína, cada ocasião satisfazendo-o apenas

temporariamente antes de aumentar sua ânsia por mais. A animação da véspera

havia passado. O desejo ardente estava de volta.

Analisou a mulher adormecida perto dele. Correndo a palma da mão por

seu pescoço, excitou-o saber que poderia acabar com a vida dela em um instante.

Que importância isso teria? Ela era subumana, apenas um veículo de prazer e

serviços. Seus dedos fortes envolveram a garganta dela, saboreando sua pulsação

delicada. Então, lutando contra o desejo, ele retirou a mão. Tinha um trabalho a

fazer. Servir a uma causa mais elevada que seu próprio desejo.

Saiu da cama e exultou com a honra da tarefa que o aguardava. Ainda não

era capaz de avaliar a influência desse homem chamado Janus e da antiga

fraternidade que ele comandava.

Maravilhava-se com o fato de ter sido escolhido por essa fraternidade. De

alguma forma, conheciam seu ódio e suas habilidades. Como, ele nunca saberia.

Suas raízes estendem-se até muito longe.

Haviam concedido a ele a honra máxima. Ele seria suas mãos e sua voz.

Seu assassino e seu mensageiro. Aquele a que seu povo chamava de Malak al-haq,

o Anjo da Verdade.

CAPÍTULO 19

O laboratório de Vetra era extremamente futurístico.

Todo branco e rodeado por todos os lados de computadores e equipamento

eletrônico especializado, lembrava uma sala de cirurgia. Langdon perguntava a si

mesmo que segredos aquele lugar guardaria que justificassem alguém arrancar o

olho de uma pessoa para entrar ali.

Kohler mostrava-se apreensivo, esquadrinhando o ambiente como se

procurasse um intruso.

Mas o laboratório estava deserto. Vittoria também se movia devagar,

parecendo desconhecer o laboratório sem seu pai.

A atenção de Langdon concentrou-se imediatamente no centro do

aposento, onde uma série de colunas baixas erguia-se do chão. Como uma

miniatura de Stonehenge, umas 10 ou 12 colunas de aço polido formavam um

círculo no meio da sala. Tinham cerca de 90 centímetros de altura, semelhantes às

que os museus utilizam para expor pedras preciosas. Aquelas colunas, porém, não

se destinavam a jóias valiosas.

Cada uma servia de apoio a um tubo transparente do tamanho aproximado

de uma lata de bolas de tênis.

Aparentemente, os tubos estavam vazios.

Kohler olhou para os tubos com um ar de incompreensão. Pareceu ter

decidido ignorá-los a princípio.

Voltou-se para Vittoria:

- Alguma coisa foi roubada?

- Roubada? Como? - argumentou ela. - O scanner de retina só permite a

nossa entrada.

- Dê uma olhada.

Vittoria suspirou e correu os olhos pela sala durante uns poucos momentos.

Deu de ombros.

- Tudo está como meu pai sempre deixa. Um caos ordenado.

Langdon via que Kohler pesava suas opções, como se avaliasse até que

ponto levar Vittoria e o que deveria contar-lhe. E que mais uma vez resolvera

adiar a decisão. Moveu sua cadeira de rodas para o centro da sala e examinou o

misterioso agrupamento de tubos supostamente vazios.

- Segredos - disse ele finalmente - são um luxo que não podemos mais nos

permitir.

Vittoria inclinou a cabeça assentindo, de repente parecendo emocionada,

como se estar ali lhe trouxesse um mar de lembranças.

Dê um minuto a ela, pensou Langdon.

Preparando-se para o que ia revelar, Vittoria fechou os olhos e respirou

fundo. E respirou fundo mais uma vez. E outra vez...

Langdon observava-a, começando a ficar preocupado. Será que ela está

passando bem? Relanceou os olhos para Kohler, que se mostrava imperturbável,

talvez por já ter presenciado aquele ritual antes.

Passaram-se dez segundos até Vittoria reabrir os olhos.

A metamorfose foi incrível. Vittoria Vetra transformara-se. Seus lábios

cheios descontraíram-se, os ombros relaxaram-se, o olhar suavizou-se. Tinha-se a

impressão de que ela realinhara todos os músculos de seu corpo para aceitar a

situação. O clarão de ressentimento e angústia apagara-se de alguma forma sob

uma frieza de águas profundas.

- Por onde começar... - disse ela, imperturbável, com seu sotaque.

- Pelo começo - pediu Kohler. - Conte-nos sobre as experiências de seu pai.

- Alinhar a ciência com a religião sempre foi o sonho da vida de meu pai -

disse Vittoria. - Ele esperava provar um dia que ciência e religião são dois campos

totalmente compatíveis, duas abordagens diferentes para se encontrar a mesma

verdade. - Fez uma pausa, como se mal acreditasse no que iria dizer a seguir. - E,

recentemente, ele concebeu um modo de fazer isto.

Kohler não fez nenhum comentário.

- Ele arquitetou um invento com que tinha esperanças de resolver um dos

conflitos mais amargos da história da ciência e da religião.

Langdon perguntou-se que conflito seria esse. Havia tantos.

- O criacionismo - declarou Vittoria. - A batalha sobre como surgiu o

universo.

Ah, pensou Langdon, o Grande Debate.

- A Bíblia, é claro, afirma que Deus criou o universo - explicou. - Deus

disse:

"Faça-se a luz" e tudo o que vemos surgiu de um grande vazio.

Infelizmente, uma das leis fundamentais da Física declara que a matéria não pode

ser criada do nada.

Langdon já lera sobre esse impasse. A idéia de que Deus supostamente

criara "algo do nada" era totalmente contrária às leis aceitas pela Física moderna

e, portanto, alegavam os cientistas, o Gênese era cientificamente absurdo.

- Senhor Langdon - disse Vittoria, voltando-se para ele. - Presumo que

conheça a Teoria do Big-Bang?

- Mais ou menos.

O que ele sabia sobre o Big-Bang é que era o modelo cientificamente

aceito para explicar a criação do universo. Não o compreendia realmente, mas, de

acordo com a teoria, um único ponto de energia intensamente concentrada

estourava em uma explosão cataclísmica, expandindo-se para formar o universo.

Ou algo assim.

Vittoria continuou.

- Quando a Igreja Católica apresentou pela primeira vez a Teoria do Big-

Bang em 1927, o... - Desculpe! - Langdon interrompeu, antes que pudesse se

conter. - Disse que o Big-Bang foi uma idéia católica?

A pergunta surpreendeu Vittoria.

- Claro. Apresentada por um monge católico, Georges Lemaitre, em 1927.

- Mas eu pensei... - ele hesitou. - A Teoria do Big-Bang não foi

apresentada por um astrônomo de Harvard, Edwin Hubble?

Kohler fechou a cara.

- Mais uma vez, a arrogância científica dos norte-americanos. Hubble

publicou seu trabalho em 1929, dois anos depois de Lemaitre.

Langdon zangou-se.

O telescópio chama-se Hubble, senhor, e nunca ouvi falar de nenhum

telescópio Lemaitre!

- O senhor Kohler tem razão - disse Vittoria -, a idéia pertenceu a Lemaitre.

Hubble somente a comprovou reunindo as provas de que o Big-Bang era

cientificamente provável.

- Ah - disse Langdon, imaginando se os fanáticos por Hubble no

Departamento de Astronomia de Harvard alguma vez mencionavam Lemajtre em

suas palestras.

- Quando Lemaitre apresentou pela primeira vez a Teoria do Big-Bang -

Vittoria prosseguiu -, os cientistas afirmaram que era absolutamente ridícula. A

matéria, dizia a ciência, não podia ser criada a partir do nada.

Assim, quando Hubble chocou o mundo provando cientificamente que o

Big-Bang era verdade, a Igreja cantou vitória, alardeando isso como prova de que

a Bíblia era cientificamente correta. A verdade divina.

Langdon balançou a cabeça concordando e agora escutando com toda a

atenção.

- É claro que não agradou nada aos cientistas ver suas descobertas usadas

pela Igreja para promover a religião, de modo que imediatamente

"matematizaram" a Teoria do Big-Bang, removeram-lhe todas as implicações

religiosas e tomaram-na para si. Lamentavelmente, para a ciência, suas equações

ainda hoje têm uma séria deficiência que a Igreja gosta de apontar.

Kohler resmungou:

- A singularidade. - Ele pronunciou a palavra como se aquilo fosse a

maldição de sua existência.

- Sim, a singularidade - repetiu Vittoria. - O exato momento da criação. A

hora zero. Até hoje, a ciência não conseguiu compreender o momento inicial da

criação. Nossas equações explicam o universo inicial com bastante eficiência,

mas, quando recuamos no tempo e nos aproximamos da hora zero, nossa

matemática se desintegra e tudo deixa de ter sentido.

- Correto - disse Kohler, mordaz. - E a Igreja sustenta que essa deficiência

é a prova do miraculoso envolvimento de Deus. Vá direto ao ponto.

A expressão de Vittoria ficou distante.

- Meu pai sempre acreditou no envolvimento de Deus no Big-Bang.

Embora a ciência fosse incapaz de compreender o divino momento da criação, ele

acreditava que algum dia isso aconteceria. - Ela se encaminhou para uma frase

impressa em papel pregada na parede da área de trabalho de seu pai. - Meu pai

costumava abanar este papel diante de meu rosto toda vez que eu tinha dúvidas.

Langdon leu a mensagem:

A CIÊNCIA E A RELIGIÃO NÃO ESTÃO EM DESACORDO. É QUE

A CIÊNCIA AINDA É MUITO JOVEM PARA COMPREENDER.

- Meu pai queria levar a ciência a um nível mais elevado, um nível em que

a ciência corroborasse o conceito de Deus. - Ela passou a mão pelo cabelo

comprido com ar melancólico. - Resolveu dedicar-se a algo que nenhum cientista

jamais pensara em realizar. E que ninguém até então tivera tecnologia para

realizar. - Fez uma pausa, sem saber muito bem como pronunciar as palavras

seguintes. - Ele criou uma experiência para provar que o Gênese era possível.

Provar o Gênese?, pensou Langdon. Que se faça a luz? Matéria a partir do

nada?

O olhar mortiço de Kohler cruzou a sala.

- Como disse?

- Meu pai criou um universo.., a partir do nada.

Kohler virou a cabeça em todas as direções.

- O quê?

- Ou melhor, ele recriou o Big-Bang.

Kohler parecia prestes a ficar de pé.

Langdon estava oficialmente perdido. Criar um universo? Recriar o Big-

Bang?

- Foi feito em muito menor escala, evidentemente - disse Vittoria, agora

falando mais depressa. - O processo era extremamente simples. Ele acelerou dois

feixes de partículas ultrafinas em direções opostas no tubo acelerador. Os dois

feixes colidiram de frente a uma extraordinária velocidade, entrando um pelo

outro e comprimindo toda a sua energia em um único ponto. Assim, ele conseguiu

obter densidades extremas de energia.

Ela começou a citar uma longa sucessão de unidades e os olhos do diretor

se arregalaram.

Langdon esforçava-se para acompanhar o assunto.

Quer dizer que Leonardo Vetra estava simulando o ponto comprimido de

energia a partir do qual o universo supostamente nasceu.

- O resultado - disse Vittoria - foi nada mais nada menos do que

maravilhoso. Quando for publicado, vai abalar a própria estrutura da Física

moderna.

- Ela passou a falar devagar, saboreando a dimensão daquilo que estava

revelando. - De repente, dentro do tubo do acelerador, desse ponto de energia

altamente concentrada, partículas de matéria começaram a aparecer do nada.

Kohler não esboçava qualquer reação, olhava para ela estático.

- Matéria - repetiu Vittoria. - Brotando do nada. Um incrível espetáculo de

fogos de artifício subatômicos.

Um universo em miniatura desabrochando para a vida. Meu pai não só

provou que a matéria pode ser criada do nada, como demonstrou que o Big-Bang

e o Gênese podem ser explicados se simplesmente aceitarmos a presença de uma

imensa fonte de energia.

- Você quer dizer Deus? - perguntou Kohler.

- Deus, Buda, A Força, Iavé, a singularidade, o ponto de unicidade, chame

como quiser, o resultado é o mesmo. Ciência e religião apóiam a mesma verdade:

a energia pura é a mãe da criação.

Quando Kohler finalmente falou, sua voz era soturna.

- Vittoria, você me deixou perdido. Será que está mesmo me dizendo que

seu pai criou matéria.., a partir do nada?

- Estou. - Vittoria apontou para os tubos. - A prova está ali. Naqueles

tubos, há espécimes da matéria que ele criou.

Kohler tossiu e dirigiu-se para os tubos como um animal desconfiado

rodeando alguma coisa que, por instinto, pressente não ser boa.

- Eu devo ter perdido alguma parte da sua explicação - disse ele. - Como

quer que eu acredite que esses tubos contêm partículas de matéria criada por seu

pai? Poderiam ser partículas vindas de qualquer lugar.

- Na verdade - disse Vittoria, confiante -, não poderiam. Essas partículas

são únicas. São um tipo de matéria que não existe em nenhum lugar da Terra,

portanto, só poderiam ter sido criadas.

O rosto de Kohler tornou-se sombrio.

-Vittoria, o que quer dizer com "um tipo de matéria"? Só existe um tipo,

e...

- Kohler parou de falar.

Vittoria tinha uma expressão triunfante no rosto.

- O senhor mesmo falou sobre o assunto em suas palestras, diretor. O

universo contém dois tipos de matéria. É um fato científico. - Vittoria voltou-se

para Langdon. - Senhor Langdon, o que a Bíblia diz sobre a criação? O que Deus

criou?

Langdon ficou embaraçado, sem saber o que aquilo tinha a ver com a

questão.

- Humm, Deus criou.., luz e trevas, céu e inferno...

- Exato - interrompeu Vittoria. Deus criou tudo em opostos. Em simetria.

Em perfeito equilíbrio. - Voltou-se novamente para Kohler. - Diretor, a ciência

afirma o mesmo que a religião, que o Big-Bang criou tudo no universo com um

oposto.

- Inclusive a própria matéria - Kohler murmurou, como se falasse para si

mesmo.

Vittoria balançou a cabeça.

- E quando meu pai realizou essa experiência, indiscutivelmente, dois tipos

de matéria apareceram.

Langdon especulava o que isso significaria. Leonardo Vetra criou o oposto

da matéria?

Kohler parecia zangado.

- A substância a que você se refere só existe em algum outro lugar do

universo. Certamente não na Terra. E possivelmente nem na nossa galáxia!

- Exatamente - replicou Vittoria. - O que prova que as partículas que estão

nesses tubos teriam de ser criadas.

O rosto de Kohler endureceu.

- Vittoria, você não pode estar dizendo que esses tubos contêm espécimes

de verdade?

- Estou - e ela olhou com orgulho para os tubos. - Diretor, o senhor está

diante dos primeiros espécimes do mundo de antimatéria.

CAPÍTULO 20

Fase dois, pensou o Hassassin, caminhando a passos largos pelo túnel

escuro.

A tocha na mão dele era um exagero, ele sabia. Mas servia para causar

efeito. Efeito era tudo. O medo, aprendera, era seu aliado. O medo mutila mais

depressa do que qualquer implemento de guerra.

Não havia nenhum espelho no caminho para ele apreciar seu disfarce, mas,

pela sombra ondulante do manto, dava para perceber que estava perfeito.

Misturar-se às pessoas fazia parte do plano, parte da depravação da intriga. Em

seus sonhos mais loucos, jamais imaginara desempenhar aquele papel.

Duas semanas antes, teria considerado a tarefa que o esperava no final

daquele túnel como sendo impossível. Uma missão suicida. Entrar desarmado no

covil do leão. Mas Janus transformara a definição de impossível.

Os segredos que Janus partilhara com o Hassassin nas duas últimas

semanas haviam sido muitos - aquele túnel era um deles. Antigo, mas ainda

perfeitamente usável.

À medida que se aproximava de seu inimigo, o Hassassin ponderava se o

que o esperava lá dentro seria mesmo tão fácil quanto Janus prometera. Janus

garantira que alguém no interior faria os arranjos necessários. Alguém no interior.

Incrível. Quanto mais refletia, mais chegava à conclusão de que seria brincadeira

de criança.

Wahad... tintain... thalatha... arbaa, disse para si mesmo em árabe ao se

aproximar do final. Um...dois... três... quatro...


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